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Afinal, onde ela está? Bíblia mais antiga é cercada de confusão e polêmicas

Polêmica sobre autenticidade cerca os escritos descobertos pelo comerciante de antiguidades Moses Shapira. Na imagem, o anúncio de venda dos pergaminhos Imagem: Domínio Público

Felipe van Deursen

Colaboração para Nossa

19/09/2023 04h02

Há 140 anos, o anúncio de uma descoberta impressionante em uma caverna perto do Mar Morto virou notícia no mundo inteiro. Moses Shapira, um comerciante de antiguidades, dizia ter encontrado 15 fragmentos de manuscritos cujo conteúdo poderia mudar os estudos da Bíblia para sempre: aquilo seria o original do Deuteronômio, o quinto livro da Torá judaica - o Antigo Testamento, segundo a denominação cristã.

Shapira ofereceu vender a descoberta ao Museu Britânico, mas o francês Charles Simon Clermont-Ganneau, um arqueólogo com fama de fanfarrão e rival de longa data de Shapira, interveio.

Ele convenceu o museu a deixá-lo analisar parte do material, desde que não divulgasse seu veredicto antes da instituição. Clermont-Ganneau fingiu que não ouviu, e no dia seguinte declarou à imprensa que os manuscritos eram falsos. Não demorou e o especialista do museu também condenou o achado.

Shapira, desacreditado, deixou Londres. Seis meses depois, foi encontrado morto em um hotel holandês. Dois anos mais tarde, em 1885, os manuscritos foram leiloados por uma ninharia e sumiram no mapa.

Desde então, eles foram citados mais em histórias rocambolescas de mistério do que em estudos bíblicos sérios.

Importância "resgatada"

Até que, em 2021, o pesquisador Idan Dershowitz, especialista em Bíblia Hebraica da Universidade de Potsdam, na Alemanha, publicou um artigo provocador. A partir de transcrições dos manuscritos, ele alegou que os documentos de Shapira seriam uma espécie de precursores do Deuteronômio e que foram escritos há mais de 2,6 mil anos.

Ou seja, não só eles eram verdadeiros como eram importantíssimos para os estudos dos textos sagrados, porque mostrariam as origens mais remotas da Bíblia.

O artigo dividiu especialistas, e o debate será longo. Ainda mais porque os manuscritos estão desaparecidos, possivelmente viraram pó.

Afinal, qual a Bíblia mais antiga?

Mas existem milhares de manuscritos em pergaminhos e papiros bastante antigos, mesmo que não tanto como os documentos de Shapira, pelo menos segundo o novo estudo.

Esses manuscritos bíblicos estão organizados em rolos ou em códices (tipo de precursor do livro, com páginas feitas de papiro ou outro material), espalhados pelo mundo para contar as origens e a evolução do livro mais conhecido de todos os tempos.

Codex Sinaiticus, exposto no Museu Britânico, em 1968 Imagem: Peter King/Fox Photos/Getty Images

O especialista em estudos bíblicos antigos Brian Davidson lembra, em um artigo no site "Bible Odyssey", que "qual é a Bíblia mais antiga" é uma pergunta capciosa.

Se você busca uma Bíblia mais completa, o 'Codex Sinaiticus' (cerca de 350 d.C.) pode ser a resposta. Ele é uma tradução grega para a Bíblia Hebraica, mas não é a testemunha mais antiga que temos das escrituras hebraicas e aramaicas. Já os Manuscritos do Mar Morto (250 a.C. - 70 d.C.) são alguns séculos mais antigos, só que são extremamente fragmentados, bem distantes do que seria um livro completo, explica.

"Alguns consideram o Códice de Leningrado, por ser o mais antigo manuscrito da Bíblia Hebraica em hebraico. Mas ele é da Idade Média (cerca de 1000 d.C.)."

Há ainda os chamados Evangelhos de Garima, da Igreja Etíope, que datam de cerca de 390 d.C. Eles são os manuscritos mais antigos textos bíblicos com iluminuras (tipo de pintura decorativa) de que se tem notícia.

Muitas Bíblias, muitos livros

Essa complicação ocorre porque a Bíblia não é um livro só, escrito por uma pessoa durante um período curto de tempo. Ela é um conjunto de livros, elaborados a muitas mãos e ao longo de muitos séculos:

Os hebreus começaram a contar as primeiras histórias no século 10º a.C. O conjunto de livros que os cristãos chamam de Pentateuco e os judeus, de Torá, surgiu em 389 a.C. Contém "Gênesis", "Êxodo", "Levítico", "Números" e "Deuteronômio". Os textos que compõem os evangelhos começaram a ser escritos por volta de 60 d.C.

Em 325 d.C., o Concílio de Niceia determinou a lista oficial dos livros que contam a vida de Jesus e a saga do cristianismo. Muitos ficaram de fora.

Museu da Bíblia, na Universidade de Münster, na Alemanha Imagem: Guido Kirchner/picture alliance via Getty Images

No século 16, Martinho Lutero traduziu o Novo Testamento para o alemão. Mexeu ou excluiu nove livros, dando origem à Bíblia luterana.

Nesses cerca de 2,4 mil anos, muita coisa foi escrita, apagada, censurada, editada ou perdida para sempre. Mas também tem bastante material conhecido.

Segundo o Museu da Bíblia Dunham, em Houston, Estados Unidos, existem cerca de 5,8 mil manuscritos do Novo Testamento em grego, 10 mil em latim e 9,3 mil em outros idiomas.

Isso sem contar as muitas edições impressas, feitas após o advento da prensa de Gutemberg na Europa, o que inclui versões curiosas como a Bíblia Maldita, de 1631. Ela tem esse nome porque os copistas erraram os Dez Mandamentos. Comeram o "não" e o Livro Sagrado saiu com um: "Cometerás adultério". O rei Charles 1º ordenou sua destruição, mas alguns exemplares sobreviveram (um deles está no belo Museu da Bíblia, em Washington).

Tomas Bokedal, professor de Novo Testamento na Universidade de Aberdeen, Reino Unido, afirma que uma edição completa, ou quase, da Bíblia anterior ao século 4º d.C. é desconhecida.

Temos que nos contentar com os vários fragmentos mais antigos sobreviventes, escritos em papiro e que datam dos séculos 2º e 3º. Ao todo, eles compreendem versões completas ou parciais de 20 dos 27 livros do Novo Testamento.

As Bíblias mais emblemáticas

Codex Sinaiticus (325-360 d.C.)

Facsimile do Codex Sinaiticus Imagem: Sepia Times/Universal Images Group via Getty Images

O mundo exterior o descobriu em meados do século 19, no Mosteiro de Santa Catarina, aos pés do Monte Sinai, no Egito. Faltam partes do Antigo Testamento, mas o Novo Testamento está praticamente inteiro.

Onde está hoje: A maior parte do códice, escrito em grego, está na Biblioteca de Londres. Outros fragmentos estão no Mosteiro de Santa Catarina, na Universidade de Leipzig (Alemanha) e na Biblioteca Nacional Russa, em São Petersburgo.

Codex Vaticanus (300-350 d.C.)

Página do Codex Vaticanus Imagem: Reprodução

Até a descoberta do códice que estava no Egito, esta era a Bíblia de referência quando se falava na versão mais antiga do livro. Escrita em grego, é possivelmente um pouco mais antiga que a egípcia e também tida como quase completa.

Onde está hoje: Na Biblioteca do Vaticano. Aliás, está lá desde o século 15.

Evangelhos de Garima (390-570 d.C.)

Evangelhos de Garima Imagem: Reprodução/www.ethiopianheritagefund.org

Abba Garima é um dos nove santos responsáveis pela introdução do cristianismo na Etiópia, no século 4º. O país africano foi o segundo do mundo oficializar a religião, e acabou desenvolvendo um tipo único de cristianismo, representado pela Igreja Ortodoxa Etíope (há inclusive uma história que diz que a verdadeira Arca da Aliança está preservada no país).

Os evangelhos foram escritos em ge'ez, antigo idioma etíope, usado hoje somente como língua litúrgica no país. Eles são especiais porque são os manuscritos cristãos mais antigos que contêm iluminuras, aquelas ilustrações e recursos gráficos típicos da Idade Média.

Onde estão hoje: No Mosteiro de Garima, construído no século 6º na região do Tigré, considerada o berço da civilização etíope.

Códice de Leningrado (1008 d.C.)

Codex Leningradensis Imagem: Pictures From History/Universal Images Group via Getty Images

Esses pergaminhos são a cópia completa da Bíblia Hebraica mais antiga do mundo. A Bíblia Hebraica, ou Tanakh, contém os mesmos livros que o Antigo Testamento da Bíblia Protestante. Já a versão de católicos e ortodoxos tem alguns livros a mais.

Onde está hoje: Apesar de ter sido feito no Cairo, o códice tem esse nome porque desde o século 19 ele está na Biblioteca Nacional Russa, em São Petersburgo. Entre 1924 e 1991, a cidade se chamava Leningrado.

Errata: este conteúdo foi atualizado
A imagem de chamada da matéria trazia uma foto dos 'Manuscritos do Mar Morto', descobertos na década de 1940, como se fossem os escritos encontrados por Moses Shapira. A foto foi substituída.
A Etiópia foi o segundo país do mundo a adotar o cristianismo, e não o primeiro. O conteúdo foi corrigido.

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