É nosso! Rede americana erra feio e vende 'brigadeiro de Portugal'
Glau Gasparetto
Colaboração para Nossa
28/09/2023 04h00
Apesar de não ser oficializado, podemos afirmar que o brigadeiro é um patrimônio brasileiro. Teorias não faltam para seu surgimento e, ainda assim, vez ou outra surgem argumentos de que o docinho icônico teria sido inventado em outro país.
Foi o que aconteceu há poucos dias com a rede americana Trader Joe's, que disponibilizou nos freezers de suas lojas um produto chamado "Brigadeiros". Na embalagem, há uma referência enorme a Portugal, atribuindo aos lusitanos a criação do que é descrito como "bombons com chocolate granulado" (fudgy bonbons with chocolate sprinkles).
Uma das influenciadoras que compartilharam a ocorrência é Aline Costa, 29 anos, que mora há 3 anos em meio em Nova York. Segundo ela, o assunto já vinha sendo abordado em grandes grupos de brasileiros nos Estados Unidos, o que a motivou a gravar o conteúdo, atualmente com quase 900 mil visualizações em sua conta no Tik Tok.
Obviamente, a comunidade brasileira não deixou por menos, depois que influenciadores que vivem nos Estados Unidos começaram a relatar o episódio.
As reações seguem reverberando nos perfis digitais da rede americana, com uma enxurrada de comentários que não cessa. A maioria traz uma boa dose de indignação, dividindo espaço com piadas entre as nações.
"Realmente não esperava essa repercussão. Depois do meu vídeo, os comentários passaram de 1 mil para mais de 10 mil", diz. Na gravação, Aline faz o unboxing do produto, prova-o e o compara ao Moça Fiesta de brigadeiro, produto da Nestlé.Aqui nos Estados Unidos, não é em todo supermercado que você encontra produtos brasileiros para fazer brigadeiro, como leite condensado. Fiquei muito feliz quando soube que uma rede tão famosa estava vendendo brigadeiro. Na verdade, gostaria que eles apenas corrigissem o erro e continuassem a vender, opina.
Empresa errou?
Na página em que divulga o produto (vendido a US$ 3,79, algo em torno de R$ 18,90) em seu site, a Trader Joe's descreve os brigadeiros assim:
Ouvimos dizer que, se você for a alguma festa no Brasil, há grandes chances de encontrar brigadeiros na mesa de doces. Eles são a 'trufa nacional' oficial do país. Agora, por tempo limitado, você pode obter a versão da Trader Joe's dessas guloseimas em nossos freezers.
Os Brigadeiros Trader Joe's são feitos, para nós, em Portugal, onde também são um doce precioso. (...).
Mesmo que a versão do site não tenha sido atualizada, indicando que o produto é apenas produzido no país europeu para a Trader Joe's, há pelo menos mais uma informação controversa. No texto, afirma-se que o brigadeiro é um doce "precioso" em Portugal.
Imigrantes e nascidos no país ibérico divergem nas discussões virtuais. Há quem afirme que os brigadeiros já podem ser encontrados em qualquer "pastelaria" - estabelecimento que se parece com nossas confeitarias. Em contrapartida, tem muita gente afirmando nunca ter visto as bolinhas de chocolate inconfundíveis por lá.
O brigadeiro pode até estar mais presente em Portugal, mas, se for para avaliar as características da cozinha lusitana, fica claro que o doce não se encaixa no cenário gastrocultural.
"A confeitaria portuguesa não tem nada a ver com nosso brigadeiro. A maior parte dos doces portugueses tem como base ovos e açúcar, diferente do brigadeiro e da doçaria brasileira, que tem um uso extensivo do leite condensado", destaca Taila Cerqueira, professora de gastronomia da Anhembi Morumbi.
Segundo ela, não existe uma popularização do brigadeiro pelo mundo. "Na verdade, existem imigrantes brasileiros em todos os lugares que levam, com eles, nossos costumes alimentares. Mas se perguntar para estrangeiros sobre o brigadeiro, dificilmente eles saberão o que é", pontua.
Questão de idioma
Há, também, quem alegue ser falta de interpretação de texto da turma de cá. Não é o caso. Cynthia Pichini, professora de letras e dos cursos de licenciatura na Universidade São Judas, mostra que o argumento é falho.
"O que está escrito na embalagem, por causa da preposição 'from', dá ideia de origem. Toda vez que usamos essa preposição significa lugar, de onde vem. Caso contrário, seria 'made in Portugal', como geralmente aparece nos pacotes", cita.
Na parte de trás da embalagem, lê-se "Product of Portugal", preposição que designa propriedade. "Do mesmo jeito que o 'from' fala de origem, 'of' fala de posse. 'A friend of mine' significa 'um amigo meu'; 'a friend of Brazil' quer dizer 'o meu amigo do Brasil'. Embora a tradução se inverta, é a mesma ideia, de posse. 'The president of the United States' é 'o presidente dos Estados Unidos'. 'Product of Portugal' está dizendo que é um 'produto de Portugal'", exemplifica a especialista.
Afinal, quem inventou o brigadeiro?
Na própria descrição do produto, a Trader Joe's cita a teoria mais conhecida sobre a origem do doce icônico e a definição de seu nome de batismo - ou seja, a que teria sido criada por um grupo de mulheres apoiadoras do brigadeiro Eduardo Gomes na disputa pela cadeira de presidente. A escolha do nome parece ser unânime, mas a concepção da receita pelas apoiadoras do militar está longe de ser a única hipótese.
Pedro von Mengden Meirelles é doutor em história e, durante a pandemia, resolveu checar se a história gastronômica tinha algum fundo de verdade. Acabou encontrando muitas informações, mesmo restrito aos livros que tinha em casa e em materiais digitalizados (como jornais da Hemeroteca Digital, da Fundação Biblioteca Nacional), devido à quarentena.
O conteúdo rendeu o artigo "'O mais popular dos doces brasileiros': História crítica do brigadeiro'", publicado na revista Aedos, vinculada ao corpo discente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em dezembro de 2019.
As teorias listadas por Pedro von Mengden Meirelles propõem que:
- Com a falta de vários produtos, dentre eles leite fresco, ovos, amêndoas e açúcar, ingredientes-chave para o preparo de guloseimas tempos atrás, algumas "santas mãos" resolveram cozinhar leite condensado, chocolate em pó e manteiga;
- A bolinha de chocolate que na década de 1940 viria se chamar brigadeiro já existia, pelo menos, há cerca de duas décadas e inicialmente era chamado de negrinho, nome que perdura no Rio Grande do Sul até hoje;
- O doce só teria surgido perto dos anos 1950 - ou seja, depois das eleições de 1945 -, já que a primeira receita "oficial" de brigadeiro publicada data de 1949, na extinta revista "O Cruzeiro".
Outro detalhe identificado pelo historiador é que boa parte dos cadernos culinários antigos ligam o brigadeiro a dois ingredientes específicos: leite Moça e "chocolate dos padres".
Assim, Menezes explica que o surgimento do docinho está diretamente vinculado à "criação de duas fábricas da São Paulo de 1921 - a do leite condensado Nestlé e a do chocolate em pó Gardano, em cuja embalagem havia uma imagem de dois frades preparando um doce à base de chocolate".
Informação extra: o leite condensado chegou ao mercado brasileiro em 1890 , mas só se popularizou três décadas depois, graças à Nestlé.
Para o historiador, mais elementos importantes influenciaram no surgimento do brigadeiro, sobretudo a crise de laticínios registrada na década de 1940, levando governo, médicos e até a mídia a empurrarem o leite condensado como ingrediente alternativo ao leite natural, além de o chocolate ter adquirido maior força na culinária nacional.
"De todo material que encontrei, e das hipóteses que consegui construir, acredito que é mais provável que o docinho tenha surgido no contexto de crise do leite, em alguma cozinha anônima, com alguma cozinheira experimentando esse ingrediente 'novo' que era o leite condensado", opina Menezes, que ampliou seu material acadêmico na thread do X (antigo Twitter).
Por falta de identificar informação contrária, é muito provável que o doce tenha realmente recebido o nome atual na campanha do brigadeiro Gomes. "Toda lenda tem um fundo de verdade", lembra o pesquisador.
O que diz a rede de mercados
A reportagem tentou contato com a Trader Joe's por três vezes, questionando se houve algum tipo de erro na criação do item que leva sua marca e se o produto seria retirado de cena, como foi especulado nas redes sociais.
A única resposta recebida foi o link direto para a página do produto. Ali, a informação é outra e há quem diga que o conteúdo foi alterado depois do "barulho" feito pelos brasileiros.