Como tijolo em aula levou à descoberta de fazenda nazista em São Paulo

Que estudar a nossa própria história é essencial para nos desenvolvermos como sociedade é sabido (ou deveria ser). Mas são raras as ocasiões em que uma aula de história ajuda a desvendar um episódio do passado do Brasil.

O momento meta-histórico aconteceu em 1998, quando Sidney Aguilar Filho dava aula no terceiro ano do Ensino Médio. Falava de nazismo, quando uma aluna levantou a mão e disse que na fazenda da família encontraram, ao demolir uma antiga construção, diversos tijolos marcados com a suástica.

Meses depois, Aguilar Filho decidiu visitar o local, em Campina do Monte Alegre, na região de Sorocaba, interior paulista. O dono da fazenda, José Ricardo Rosa Maciel, já havia encontrado a marca nazista antes, quando porcos, fugindo, quebraram uma parede. Ao vasculhar antigas fotos da propriedade, Maciel tinha achado uma imagem de um time de futebol posando com uma bandeira nazi.

Aguilar Filho decidiu investigar, vasculhar documentos, encontrar antigos funcionários, perguntar na vizinhança. Acabou constatando que o local, nos anos 1930, misturava adoradores de Hitler com escravidão à brasileira - mais de 40 anos após a Lei Áurea.

 Sr José Ricardo Rosa, 55, conhecido como "Tatão" segurando um tijolo com a suastica nazista
Sr José Ricardo Rosa, 55, conhecido como "Tatão" segurando um tijolo com a suastica nazista Imagem: Carlos Cecconello/Folhapress

Contexto histórico

Surgida em 1932, a Ação Integralista Brasileira (AIB), o primeiro partido político dirigido às massas, com inserção nacional, conquistou muitos adeptos nas classes médias urbanas. O movimento era comandado por Plínio Salgado e tinha intelectuais como Miguel Reale e Gustavo Barroso entre seus líderes, que conseguiram emplacar suas ideias na Constituição de 1934.

A face mais notória do integralismo era a simpatia pela extrema-direita em ascensão na Europa. "No auge de seu crescimento, em 1937, a AIB chegou a reunir entre 100 mil e 200 mil adeptos em todo o país", explicam Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling em "Brasil: Uma Biografia" (Companhia das Letras). "Era a face escancarada do fascismo."

Reproducao de fotos encontradas nas fazendas da família Rocha Miranda em Campina do Monte Alegre interior de Sao Paulo, onde o gado era marcado com a suástica nazista
Reproducao de fotos encontradas nas fazendas da família Rocha Miranda em Campina do Monte Alegre interior de Sao Paulo, onde o gado era marcado com a suástica nazista Imagem: Carlos Cecconello/Folhapress
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O integralismo se guiava pelo discurso anticomunista, antilberal, cristão e, às vezes, antissemita. Ou seja, não era a mesma coisa que o nazismo, mas as chances de um fã de Hitler no Brasil ser também seguidor de Plínio Salgado naquela época eram grandes.

A família Rocha Miranda tinha membros que se encaixavam no perfil. Um dos mais poderosos e tradicionais clãs do Rio de Janeiro, ela tinha uma porção de negócios (era, por exemplo, sócia dos Guinle nos hotéis Copacabana Palace e Glória). O industrial Renato Rocha Miranda e dois de seus filhos, Otávio e Osvaldo, integravam a Câmara dos Quarenta, a elite da AIB.

Em sua pesquisa, Aguilar Filho descobriu que, em 1933, Osvaldo Rocha Miranda solicitou a guarda legal de 50 órfãos de cerca de dez anos de idade no Rio de Janeiro. Foi atendido e os levou a uma fazenda da família no interior paulista.

 Sr José Ricardo Rosa, 55, conhecido como "Tatão" segurando um tijolo com a suastica nazista. Após herdar a fazenda Cruzeiro do Sul na cidade de Campina do Monte Alegre ele encontrou por acaso tijolos com o sinal nazista usados na construção das dependências da fazenda
Sr José Ricardo Rosa, 55, conhecido como "Tatão" segurando um tijolo com a suastica nazista. Após herdar a fazenda Cruzeiro do Sul na cidade de Campina do Monte Alegre ele encontrou por acaso tijolos com o sinal nazista usados na construção das dependências da fazenda Imagem: Carlos Cecconello/Folhapress

Osvaldo e outro irmão, Sérgio, eram mais ligados a agropecuária, aviões, iates e caçadas, como explica Aguilar Filho em sua tese de doutorado pela Unicamp. Os irmãos eram respeitados no meio pelo pioneirismo na importação e aprimoramento genético do gado nelore trazido da Índia.

Os bois tinham outro diferencial. Eram marcados com a suástica.

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Campo de trabalho forçado

A fazenda, que servia também para sediar eventos dos integralistas, era um grande country club de agronazistas. Além dos tijolos dos galpões e do lombo do gado, a suástica aparecia até em documentos, como talonário de pedigree animal. Sérgio Rocha Miranda era um fazendeiro assumidamente nazista, segundo Aguilar Filho.

Foi para esse lugar que Osvaldo decidiu levar os 50 órfãos do Educandário Romão de Mattos Duarte (48 pretos ou pardos), com o aval da madre diretora do orfanato e do Juizado de Menores do Rio. Para escolher os meninos, ele jogava balas no chão e observava aqueles mais ágeis para pegar as guloseimas. Apontava os escolhidos e o motorista os separava.

Na fazenda, as crianças trabalhavam na lavoura em troca de comida. Capangas e cães de guarda garantiam que elas andassem na linha: quem reclamava apanhava de palmatória ou era encarcerado. Escola era só para os menores de 11 anos. Os mais velhos tinham que trabalhar, e o único momento de alegria era o futebol, que rendia fotos como a encontrada décadas depois por Maciel.

Sr Aloysio Silva, 89, foi uma das crianças trazidas de um orfanato do Rio de Janeiro na decada de 30 para trabalhar na Fazenda Santa Albertina de propriedade de Oswaldo Rocha Miranda
Sr Aloysio Silva, 89, foi uma das crianças trazidas de um orfanato do Rio de Janeiro na decada de 30 para trabalhar na Fazenda Santa Albertina de propriedade de Oswaldo Rocha Miranda Imagem: Carlos Cecconello/Folhapress

Em 2014, Aloysio Silva, um dos meninos escravizados, já com mais de 90 anos de idade, lembrou em entrevista à rede BBC a rotina daqueles tempos. Os garotos viajaram para São Paulo com a promessa de que iriam andar a cavalo, estudar, jogar bola. Em vez disso, arrancavam ervas daninhas e limpavam currais. Não tinham direito nem a ser chamados pelo próprio nome. Na fazenda, eles eram apenas números.

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Eles tinham fotografias de Hitler, você era obrigado a fazer uma saudação. Eu não entendia nada daquilo, lembrou Argemiro Santos, outro sobrevivente, na mesma reportagem.

"Tinha um portão e um dia eu o deixei aberto. Naquela noite, fugi. Ninguém viu."

O experimento naziescravocrata paulista durou até 1943. Após dez anos privados da liberdade, poucos meninos conseguiram superar o trauma e se adaptar à vida em sociedade. A maioria morreu jovem, sem família e com marcas de violência. Silva e Santos foram exceções. Santos chegou a se alistar na Marinha e serviu na Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil integrou a grande aliança internacional contra os nazistas.

Tijolos com a suastica nazista encontrados na fazenda Cruzeiro do Sul de propriedade de Sergio Rocha Miranda, que era simpatizante do nazismo durante a decada de 30 e 40
Tijolos com a suastica nazista encontrados na fazenda Cruzeiro do Sul de propriedade de Sergio Rocha Miranda, que era simpatizante do nazismo durante a decada de 30 e 40 Imagem: Carlos Cecconello/Folhapress

Repercussão

Na década passada, o caso ganhou repercussão nacional após a defesa da tese de Aguilar Filho, em 2011, e publicações na imprensa, em 2012. Naquele ano, especialistas da Secretaria de Cultura de São Paulo, ao vistoriar a fazenda para possível tombamento, relataram que um antigo armazém fora totalmente destruído.

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Os estragos, apontaram, foram causado por ação humana, não pelo tempo. Era um claro sinal de tentativa de apagamento histórico, depois que a tragédia humanitária veio à tona.

Em 2013, em entrevista à "Folha de S.Paulo", Maurício Rocha Miranda, sobrinho-neto de Sérgio, declarou que a simpatia do fazendeiro pelo nazismo acabou já em 1934, anos antes do início da guerra e do Holocausto. Ele defendeu o parente ao dizer que os meninos tinham que ser "controlados", mas que jamais foram escravizados.

O caso inspirou obras de não-ficção. Aloysio Silva, que morreu em 2015, estampa a capa do livro "Entre Integralistas e Nazistas", que Aguilar Filho publicou pela Alameda Editorial em 2021. Silva também é o foco do documentário "Menino 23", de Belisário Franca, lançado em 2016.

Em 2022, o governo estadual aprovou o tombamento da Fazenda Cruzeiro do Sul e da Estação Ferroviária Engenheiro Hermillo, por onde os meninos desembarcaram trazidos do Rio. O tombamento tem o objetivo de preservar a história dos locais e de ser "uma reparação simbólica do Estado acerca da exploração de mão de obra de pessoas negras no século 20".

Deborah Neves, historiadora e técnica da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico, da Secretaria de Cultura, explicou ao UOL que proteger um lugar do tipo pode parecer controverso, mas é necessário. "O que estamos preservando são os lugares onde ocorreram violações de direitos humanos. A partir do conhecimento dos lugares, criamos políticas de prevenção", disse.

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Segundo Aguilar Filho, as três fazendas vizinhas onde os "meninos do Romão Duarte" trabalharam tinham relações próximas com o nazismo.

Sérgio Rocha Miranda, dono da Cruzeiro do Sul, foi um propagandista de Hitler - se não a vida toda, no mínimo durante um período. Renato Rocha Miranda, dono da Santa Albertina, manteve negócios com as empresas Krupp durante o regime nazista. A Krupp (hoje Thyssenkrupp) é um dos maiores e mais tradicionais conglomerados industriais da Alemanha e foi um dos sustentáculos estratégicos de Hitler.

Após a guerra, Otávio Rocha Miranda vendeu sua fazenda, ironicamente chamada Retiro Feliz, a Alfried Krupp. Proeminente industrial, grande líder capitalista alemão, foi condenado por crimes contra a humanidade ao implementar trabalho escravo em suas fábricas durante a guerra.

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