Babou pelo bolo alagado hit das redes? Doce afetivo sustenta imigrantes
Se você é fã de bolo bem molhadinho, um aviso: depois de ler este texto, é muito provável que saia correndo para a cozinha ou atrás de algum confeiteiro. Tudo porque é praticamente impossível ficar imune diante da receita-tentação que tem pipocado nas redes sociais e elevado o bolo de "três leites" a outro patamar.
A sobremesa não é nova, diga-se. Há quem a chame de bolo e quem a defina como torta. Afinal, a massa é banhada por uma calda adocicada e chega à mesa sempre acompanhada pelo líquido espesso.
A novidade está justamente nesta calda. Em quantidades bem mais generosas, num primeiro momento, chega a cobrir toda a parte sólida, o que rendeu denominações curiosas ao prato, como "bolo afogado", "bolo alagado" e "bolo atolado".
@nelascakes Com amor Com as minhas alegrias Com as minhas tristezas eu comecei uma jornada aqui no Brasil e vou continuar sendo a mesma pessoa que chegou com mala cheia de sonhos. Vou entregar um tesouro que guardo com muito amor para quem valore e aceite ele com o mesmo amor como vai ser entregado. Não é uma receita são a minhas vivências. Beijos ??#venezolanosencuritiba #venezuela #redeempreendedorescomamor #empatia #respeito #empreendimento #tresleites #amor?? ? Epic Inspiration - DM Production
A reação mais comum é questionar como deve ser consumido - em pedaços cortadinhos ou às colheradas? O que a maioria das pessoas não sabe é que a massa absorve praticamente toda a calda, já que a receita costuma ser preparada de um dia para o outro.
De onde veio?
Nicarágua, México e Venezuela disputam o posto de local de origem, mas a verdade é que o "tres leches" - bolo de três leites, no Brasil - é bem comum em toda a América Latina e mesmo na América do Sul. Para se ter uma ideia, na Venezuela, até o McDonald's tem a versão Tres Leches do seu McFlurry.
Por aqui, foi justamente uma venezuelana quem trouxe o "tres leches" à cena novamente, por adotar uma quantidade quase exagerada de calda. Nelasry Lanz, ou Nelas, como é conhecida, mora em Curitiba e está no Brasil há cinco anos. Há duas décadas, ela trabalha com bolos decorados e tal receita nunca saiu do seu cardápio.
Até pouco tempo atrás, seus conterrâneos eram os principais clientes deste tipo de bolo. A divulgação de seu trabalho nas plataformas sociais, sobretudo no TikTok, fez brasileiros engrossarem o time e terem vontade de preparar a própria versão da sobremesa, que acabou virando trend - a hashtag #boloalagado beira os 62 milhões de visualizações.
@almanaquesos Testamos a receita de bolo alagado e a versão bolo 3 Leches (bolo agalado) #AprendaNoTikTok #EuTeEnsino #AgoraVoceSabe #boloafogado #boloagalado ? som original - Almanaque SOS
Nem sempre foi desta maneira que a confeiteira apresentou a sobremesa. Em abril passado, Nelas adotou uma nova roupagem do "tres leches", montando-o em uma embalagem redonda para bolos, mas na posição invertida. Antes, havia tentado oferecê-lo em caixas de acrílico quadradas, formato comum adotado na Venezuela.
A ideia era que o bolo fosse apresentado como um "presente", para que as pessoas pudessem oferecer a outras. Não vingou, pois a porção era pequena.
Estamos acostumados a comer muito 'tres leches'; não em pouca quantidade, como naquela embalagem, avalia a confeiteira de 53 anos.
Assim surgiu a opção na forma arredondada, capaz de receber bastante líquido para deixar o bolo muito (mesmo!) molhadinho.
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O que tem na calda
Na versão abrasileirada, o bolo de três leites é preparado com leite condensado, creme de leite e leite em pó ou somente leite de coco. A receita de Nelas troca o leite em pó por um ingrediente tradicionalmente venezuelano: o leite evaporado - produto pouco comum por aqui, que apresenta menos água e uma textura não tão espessa como o condensado, além de ser desprovido de açúcar.
A confeiteira conta que há cerca de 20 anos, quando começou a produzir bolos, o produto era importado para a Venezuela e impossível de ser comprado devido ao alto valor do dólar. Por isso, aprendeu a fazer o próprio leite, testando inúmeras receitas. Segue usando sua versão até hoje, combinada com leite condensado e creme de leite.
Outra diferença é a massa do bolo. Ela opta pelo pão de ló em vez do que é geralmente usado - chiffon ou massa amanteigada. "Prefiro o pão de ló porque suga mais a calda. Não fica mole ou ensopado e, sim, fofinho", afirma.
A receita original ainda leva rum ou alguma outra bebida alcoólica na calda. Também pode ser recheada com creme de confeiteiro e é coberta por merengue, o que foi substituído por Nelas por chantilly. "Quando comecei os bolos, era tão caro comprar ovos na Venezuela para fazer o merengue que era mais fácil conseguir o chantilly", explica.
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Seu último toque pessoal é decorar os bolos com desenhos feitos com pasta americana, trabalho que personaliza a partir dos pedidos que recebem do cliente. O processo costuma ser sempre igual: ela prepara a massa e a cobre com a calda na véspera. No dia seguinte, finaliza a decoração e leva à geladeira por outras três horas, antes de entregar a encomenda.
Versão com brigadeiro
Na melhor mistura Brasil com Venezuela, Nelas se arriscou em produzir uma versão do bolo "tres leches" de chocolate, a pedido de um cliente. A receita, é claro, inclui uma porção do rei dos doces, o brigadeiro. A versão tem sido bem requisitada e rendeu até reacts, como do confeiteiro Jackson, que já bateu a casa de 1,7 milhões de views.
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Apesar de o "tres leches" nunca ter faltado no cardápio de Nelas, não era um dos mais vendidos. Tudo mudou depois que os vídeos se tornaram virais. Antes, a confeiteira preparava no máximo 6 bolos desses por semana. Agora, são de 12 a 15 e respondem pela maioria das vendas. Um bolo grande, que serve até 20 pessoas, custa em média R$ 130. Se for de chocolate, R$ 140 e o recheado com creme de confeiteiro, R$ 150.
Não é só dinheiro
Lenas revela que o bolo é especial porque lhe traz lembranças do filho mais velho, que morreu aos 24 anos. "Quando eu ia vender o bolo em faculdades e meu ex-marido não podia ficar com ele e minha filha, tinha que levar os dois juntos. Só que meu filho, à época com uns 6 anos, saía correndo e eu tinha que ir atrás dele e não conseguia vender", diz ela, que se emociona ao lembrar.
O filho era fã do "tres leches" e, de vez em quando, assaltava a geladeira de madrugada. "Eu vendia o bolo em pedaços, em embalagens triangulares, mas deixava na forma de um dia para outro para só cortar e embalar antes de sair. Ele acordava, pegava a espátula, comia parte do bolo e voltava a dormir, sem fazer barulho. Quando eu acordava, faltavam pedaços de bolo", revela Nelas, que tem uma filha morando na Argentina e outro filho, mais novo, ainda vivendo na Venezuela.
Então não é só pelo dinheiro. O bolo 'tres leches' tem uma importância espiritual pra mim, fala.
Família, amigos e alegria
Yuriberh Zerpa, de 37 anos, é outra venezuelana que tem uma ligação especial com a receita tão popular em seu país de origem. A bacharel em Química está no Brasil há 11 anos e mora em Santo André, na Grande São Paulo. Para ela, o "tres leches" é sinônimo de família, amizade e alegria.
"Tenho lembranças muito especiais. Aprendi a fazer esse bolo quando criança, com uns 5, 6 anos. Ajudava minha irmã a preparar, porque ela e o namorado - hoje marido -, vendiam o 'tres leches' em pedaços, com um carrinho, no parque. Eu separava os ovos, lavava louças, ajudava a medir. Quando virei adolescente, ajudava a vender também. Fazer o bolo hoje em dia é honrar a minha irmã", comenta ela, que tem 37 anos.
Yuriberh costuma preparar a sobremesa a pedido de amigos, também venezuelanos.
Gosto de fazer porque esse bolo é sinônimo de alegria, família, comemoração, de se juntar, dar gargalhadas e compartilhar, define.
Ela segue a receita o mais tradicional possível, inclusive adotando merengue, preparado com essência de nata, e calda com rum, ambos trazidos da Venezuela. "Eu não bebo, mas tenho um rum em casa só para esse bolo. Esses dois ingredientes fazem com que o bolo tenha mais sabor e cheiro de bolo venezuelano", argumenta.
A única modificação é dobrar a quantidade de leite condensado e creme de leite para que a mistura fique bem concentrada. Na decoração, prefere a cobertura branquinha, tal qual a receita original, no máximo com canela por cima, como é costume entre sua turma.
Sobremesa de todo dia
Na maioria dos países latinos e sul-americanos, o "tres leches" não é um doce ligado a datas especiais, mas é tido como sobremesa comum, oferecida tanto em restaurantes quanto preparada em casa. O chef Enrique Paredes, do restaurante Ama.zo, conta que é bastante consumida em seu país de origem.
Ele, aliás, também guarda lembranças ligadas ao prato doce. "Quando comecei minha carreira na cozinha, com uns 17 anos, trabalhava em um restaurante grande, que atendia cerca de 300 pessoas por dia. Dentro do buffet, sempre tinha o 'tres leches' - o tradicional e com chocolate - e todas as noites, aguardava fechar o buffet para pegar um pouco do bolo que tinha sobrava. Ou seja, comia quase todos os dias", conta.
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