Brasileira desafiou racismo e comandou melhor restaurante secreto de Paris

Das melhores lembranças da infância, Célia Regina Miranda Dalla Colletta de Mattos, 49 anos, resgata os almoços que a avó fazia quando os seus 12 filhos iam a sua casa, embaixo de uma mangueira em Barra Bonita, interior de São Paulo. "Era muita comida e cachaça."

A afetividade desta memória talvez já entregasse, há muito, como a ex-professora de inglês e caixa de supermercado iria parar não só na Academia de Culinária da França como no comando de uma destilaria de cachaças premium junto ao marido, também chef de cozinha. Para ela, ambas as empreitadas envolvem o rompimento de barreiras e preconceitos. "Tem que acabar com a ideia de que cachaça é uma bebida de pobre", protesta.

Apesar de ter alcançado uma posição incrivelmente bem-sucedida em sua carreira, Célia ainda enxerga falta de reconhecimento do trabalho das mulheres que atuam na cozinha. No entanto, ela acredita que seu pioneirismo — ela foi a primeira mulher a fazer parte da centenária Academia — pode abrir portas.

"Esse prêmio me fez sentir uma profissional preparada para poder estar em meio a tantas pessoas da culinária."

"Não tem salário que pague o racismo"

Mais nova de quatro irmãs, Célia conta que sempre foi uma criança educada, com boa autoestima e inteligente. Comunicativa, entrega que o único "problema" na adolescência era ser namoradeira.

A mãe trabalhou de boia fria a empregada doméstica, essa última função também foi exercida pelas suas irmãs. Já o pai era um mecânico que não conseguia parar nos empregos por causa do alcoolismo. Apesar das dificuldades, ela garante que não faltou leitura e acesso à cultura em sua infância.

"Tive o grande privilégio de conviver com a Geni Mariano Guimarães, prêmio Jabuti de literatura. E com ela ouvia Bethânia, Djavan, Alcione, além de ler muito." Conversando com Nossa diretamente de Barra Bonita, cerca de três horas da capital paulista, Célia diz que, apesar de orgulhar-se da cidade natal, saiu de lá na adolescência por "um momento de raiva".

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"Eu era a preta e pobre, né? Lembro que, quando adolescente, o menino branco que gostava de mim só queria ficar comigo se fosse escondido. E tinha lugares como clubes que a gente não podia frequentar."

Aos 17, ganhou uma bolsa de estudos e foi fazer intercâmbio nos EUA. De volta ao Brasil depois de 11 meses e sem dinheiro para bancar uma faculdade, foi trabalhar como gerente de uma churrascaria. Apesar de ter se saído bem, ficou apenas uma semana na vaga. Foi convidada a se retirar sob justificativa de que precisavam testar mais pessoas.

"Ia trabalhar feliz, com as roupas legais. Até então, não tinha entendido minha saída." De lá foi direto para a caixa de um supermercado, mas após algumas semanas foi convidada a voltar para a churrascaria, para a mesma vaga e por um bom salário. Dessa vez não quis.

"Com toda educação, expliquei para a dona do lugar que tinha certeza de que fui dispensada porque era uma menina preta. E que não tem salário que pague o racismo."

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Naquela época, como uma de suas irmãs trabalhava como doméstica em São Paulo, Célia decidiu se mudar para a casa de um tio também na capital. Conseguiu emprego num curso de inglês, apaixonou-se pela sala de aula e conheceu o amor de sua vida num bar. Mas aí veio a demissão e, novamente, viu-se arrumando as malas.

De São Paulo para Le Cordon Bleu

Seu parceiro, o publicitário Gustavo Dalla Colletta de Mattos, estava infeliz trabalhando em uma lan house. Como os dois gostavam de cozinhar, ele teve a ideia de investir em um curso em uma escola de gastronomia. Foi com a ajuda do pai dele, em 1995, que o casal foi estudar na escola francesa Le Cordon Bleu, considerada a maior no ramo de culinária e hospitalidade de todo o mundo.

Durante o curso, Célia foi auxiliar dos chefs da casa durante as aulas por quase um ano, além de ter passado, junto a Gustavo, por restaurantes renomados como Maison Blanche e Apicius (com duas estrelas Michelin) respectivamente.

Após anos de uma rotina de trabalho de mais de 12 horas por dia, o casal decidiu mudar de vida. Morando num amplo apartamento na famosa rue Saint-Charles, com vista para a Torre Eiffel, investiram num jantar de alta gastronomia na própria sala, para até 10 pessoas. Nasceu assim o "Chez Nous Chez Vous" ('Nossa Casa, Sua Casa', em tradução livre), considerado pelo jornal The New York Times um dos melhores "restaurantes secretos" de Paris.

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O trabalho ainda ganharia destaque em jornais como Le Figaro e menção no prestigiado Guia Michelin, que elege anualmente o melhor da alta gastronomia internacional, por sua enorme qualidade. Por 150 euros (R$ 800), visitantes se deliciavam com um menu elaborado acompanhado de vinhos. Mas o local fechou na pandemia, quando a dupla voltou ao Brasil.

"Há quem não saiba que sou chef"

Criada em 1883, 12 anos antes da Le Cordon Bleu, a Academia de Culinária da França tem em seu quadro chefs renomados do mundo todo como Alain Ducasse, historiadores culinários e outros especialistas na área.

Até 2016, com mais de 130 anos de história, nenhuma mulher havia entrado para o seleto grupo — mas a Academia se encantou por Célia e admitiu sua primeira chef. Apesar do enorme reconhecimento internacional, a brasileira não vê o mesmo apreço e respeito por sua trajetória dentro do próprio país de origem.

"Eu tenho o mesmo diploma que muitos outros chefs, me formei no país da gastronomia e não sou reconhecida no Brasil. Há quem não saiba que sou chef. Já saí em algumas matérias, mas nunca com a mesma repercussão que outra chef branca tem."

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Sua compreensão de que a gastronomia é historicamente masculina e branca encontra embasamento nos números. Levantamento de 2022 do site especializado "Chef's Pencil" apontou que apenas 7% das cozinhas profissionais dos estabelecimentos mais renomados do Brasil são comandadas por mulheres. Outra pesquisa do mesmo ano feita pelo Instituto Ipsos a pedido da cervejaria Stella Artois mostrou que 47% das profissionais negras concordam que houve maior dificuldade para elas entrarem na profissão.

Da comida para a cachaça

Célia não se detém diante das dificuldades ou do cenário desigual. Após desembarcar no Brasil com Gustavo, ela começou a procurar algum investimento no país. A dupla pensou em criação de porcos orgânicos e também de galinhas, até que um primo, Gabriel, sugeriu a ideia de produzir cachaça — segundo ele, um negócio em expansão. "A minha família é cachaceira, né?", brinca Celinha.

Ideia comprada, começaram a procurar um local em que tudo fosse deles, inclusive a produção da cana, até acharem a fazenda de Torrinha, a 50 quilômetros de onde a chef nasceu.

Nasceu assim a Destilaria Octaviano Della Colleta, uma homenagem ao avô de Gustavo, que tinha um barril em casa e também fazia seu próprio blend e envelhecimento.

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Desde 2021. a dupla já produziu três cachaças: a Alzira, uma premium que ficou entre as 50 melhores do Brasil no ano passado — o nome é uma homenagem à avó de Gustavo —, a Cê Branca e uma Cê Double Wood que ainda não chegou ao mercado mas já ganhou um concurso na Bélgica.

Websérie de arquitetura e botecão

O olhar sofisticado para a gastronomia despertou em Célia outra paixão: a decoração. "Quando você vê um prato bonito, quer que tudo seja lindo, né?".

Entre um rótulo e outro, ela criou recentemente no Instagram a websérie "Apartamento 132", em que mostra aos mais de 11 mil seguidores o passo a passo da reforma do novo imóvel adquirido, onde antes morava o arquiteto autodidata Artacho Jurado.

Artacho foi responsável pela construção de diversos edifícios em São Paulo como o Bretagne, no nobre bairro de Higienópolis, e para onde Célia deve se mudar até o fim de 2024 junto com Gustavo.

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Paralelamente, ela ainda está investindo em um bar na cidade onde nasceu — o Alzira Bar. "É o bar da minha infância, onde ia tomar sorvete. E na adolescência, saía de um clube em frente e ia lá lanchar", relembrou.

Como o negócio iria fechar, a incansável chef decidiu recuperar o negócio em sociedade com um amigo.

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