Deus e a erva: qual é a posição de diferentes religiões sobre a maconha?
A relação entre religiões e maconha é algo intenso, plural e que existe praticamente desde sempre. O uso em sacramentos e práticas ritualísticas era difundido em crenças antigas - do zoroastrismo da Pérsia ao xintoísmo do Japão. Há 1,5 mil anos, taoístas chineses já queimavam incensos com a planta com o intuito de se entorpecer.
A cannabis é uma planta originária da Ásia, e foi a partir da Índia que ela se disseminou pelo mundo. Foi na Índia que alguns dos relatos mais antigos entre fé e maconha surgiram. O Atarvaveda, um dos textos sagrados hindus, escrito em algum momento no segundo milênio antes do tempo comum, já listava a erva como uma das cinco plantas sagradas.
Assírios e egípcios, além de outras culturas do Oriente Médio, queimavam o cânhamo em incensos 3 mil anos atrás. O geógrafo americano Barney Warf, em um artigo na publicação científica "Geographical Review", diz que óleo de cannabis era algo comum na região antes, durante e depois dos tempos de Jesus.
A perseguição à planta é algo recente na história. Em 1961, a maconha entrou na lista da ONU de drogas perigosas e foi proibida em escala internacional. E foi também no século 20 que religiões ligadas diretamente à droga explodiu.
Veja a relação das principais religiões do mundo com a cannabis.
Hinduísmo
A maconha está intimamente ligada à cultura hindu. Segundo as escrituras sagradas, Shiva, uma das principais divindades da religião, bebeu um veneno que ameaçava afogar toda a humanidade. A deusa Parvati, sua esposa, o salvou dando-lhe "bhang". Trata-se de uma bebida feita com folhas de cannabis maceradas e misturadas a leite ou iogurte. Nos festivais Holi e Maha Shivratri, seu consumo é comum.
Esse suco verde da alegria é milenar. Inspirou o primeiro estudo governamental sobre as propriedades da cannabis, feito nos tempos da Índia britânica, em 1893, como lembra o historiador Henrique Carneiro na "Pequena Enciclopédia da História das Drogas e Bebidas" (Editora Campus). O uso consciente de "bhang" é visto como algo para se livrar de impurezas espirituais e se unir a Shiva. Em excesso, porém, é pecaminoso.
Budismo
Em 2022, a Tailândia, majoritariamente budista, descriminalizou o uso de maconha, o que fez o turismo relacionado à droga explodir no país de maneira semelhante a como já aconteceu em outros cantos do globo. Mas o conselho que regula as instituições budistas do país, antecipando um clima de "liberou geral", baniu monges de usar e plantar. Somente o uso medicinal é permitido.
O argumento empregado é o mesmo de outras lideranças budistas. Apesar de os ensinamentos de Buda não citarem explicitamente a droga, ela se enquadra nas substâncias entorpecentes citadas no último dos Cinco Preceitos, o código de conduta do budismo.
Em alguns tantras - textos escritos entre os séculos 8º e 15 que serviram para o desenvolvimento de práticas esotéricas no hinduísmo e no budismo -, a maconha tem papel importante. O Tantra de Mahakala, por exemplo, cita explicitamente o uso de erva medicinal.
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Quero receberIslamismo
Lideranças sunitas e xiitas, de maneira geral, condenam a maconha por suas propriedades entorpecentes. Por analogia, ela entra na categoria das bebidas alcoólicas. "Analogia" porque não há menção à droga no Corão, mas há ao álcool.
Não existem evidências de que a cannabis fosse usada na Arábia dos séculos 6º e 7º, quando Maomé viveu e o islamismo surgiu. Mas, 200 anos depois, o haxixe, forma de consumo de maconha típica no Oriente Médio e no Norte da África, já estava disseminado.
Gabriel Nahas, no livro "Escape of the Genie: A History of Hashish Throughout the Ages" ("O gênio saiu da lâmpada: uma história do haxixe ao longo dos tempos", em tradução livre), explica que desde o século 12 os seguidores do sufismo, corrente mística do Islã, fazem uso religioso de cannabis. O autor também lembra que, já no século 10º, médicos da chamada Idade de Ouro Islâmica alertavam para possíveis complicações do fumo em excesso e da mistura com outras drogas.
Judaísmo
Arqueólogos e paleobotânicos afirmam que a cannabis não fazia parte da vida dos primeiros hebreus, nos antigos reinos de Israel e Judá. Mas, em 2020, um estudo divulgado pelo "Journal of the Institute of Archaeology of Tel Aviv University", publicação científica de uma das principais universidades israelenses, disse ter encontrado resquícios canabinoides no altar de um antigo templo, o que sugere que a maconha pode ter sido usada em algum ritual israelita 2,7 mil anos atrás.
Em tempos modernos, rabinos ortodoxos explicam que o consumo de maconha é prejudicial ao corpo humano, o que fere os mandamentos da Torá. Coerentemente com a medicina, em 2013 um rabino israelense virou notícia ao afirmar que a cannabis medicinal não fere as leis judaicas, por ser algo benéfico à saúde.
Cristianismo
De maneira geral, todas as denominações cristãs condenam as drogas. Francisco, desde o início de seu pontificado, em 2013, já se manifestou algumas vezes contra a maconha. Quanto ao uso medicinal, a conversa é outra. No Brasil, existem evangélicas que se tornaram ativistas em prol da erva e padres como Ticão, morto em 2021, que era uma liderança no assunto.
Nos EUA, há exemplos de forças contrárias à aplicação médica da cannabis, como a Convenção Batista do Arkansas, e favoráveis. As Igrejas Presbiteriana, Metodista, Episcopal e Unida de Cristo já se manifestaram pela aprovação da maconha medicinal.
Religiões da maconha
Enquanto as outras debatem, no século 20 surgiram algumas religiões dedicadas à erva ou que a tratam como um sacramento. Inclusive no Brasil. Uma linha do Santo Daime, crença que nasceu no Acre dos anos 1930, usa maconha nos rituais e a chama de Santa Maria.
Nos EUA, existem a Igreja Livre da Maconha de Honolulu, o Ministério THC e o Templo 420. No Canadá, a Igreja do Universo prega o nudismo e associa a Árvore da Vida, citada na Bíblia, à planta de maconha. Na Jamaica, a mais famosa de todas essas religiões, o rastafarianismo, surgiu nos anos 1930 e defende o uso da "erva da sabedoria" para estreitar laços de comunidade, entre outros fins.
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