Como choripán virou 'pão com mortadela' dos peronistas na eleição argentina
Amanda Cotrim
Colaboração para Nossa, de Buenos Aires, Argentina
18/11/2023 04h05
Na noite do dia 22 de outubro de 2023, primeiro turno das eleições mais incertas dos últimos quarenta anos da Argentina, uma multidão de pessoas cobria a avenida Corrientes, na região do bairro Chacarita, para acompanhar o resultado do primeiro turno e esperar para escutar o candidato peronista e atual ministro da economia Sergio Massa, que falaria à militância após o resultado oficial da votação.
Entre a multidão, um cheiro inconfundível e uma fumaça característica: tratava-se de um churrasco em plena manifestação política de rua. O cheiro de chorizo (linguiça) na brasa esquentava os corações dos militantes que faziam fila para comprar o sanduíche enquanto aguardavam ansiosos os resultados das urnas.
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Militante, durante a marcha
Com o passar dos anos, o setor turístico criou versões mais gourmets da clássica receita argentina, mas, na rua, a regra é clara: uma linguiça suína crocante por fora e bem cozida, dentro do pão, e adereços como chumichurri e vinagrete ao gosto do cliente.
É praticamente impossível estar em manifestações massivas como atos peronistas, futebol e manifestações de movimentos sociais e não encontrar uma ou mais barracas de choripán na rua.
O símbolo da iguaria é tão marcante nas marchas políticas que os opositores ao peronismo fazem inúmeras provocações a respeito do choripán, como a militante Alba Quintar, que apoia o candidato a presidente de ultradireita Javier Milei, do partido Liberdade Avança: "O apoio das pessoas a Milei é genuíno, sem a necessidade do choripán", disse em entrevista a uma rádio argentina.
Relacionar pejorativamente o sanduíche de linguiça à esquerda argentina — tal como o pão com mortadela tende a ser "colado" à imagem da esquerda no Brasil — foi uma constante na eleição deste ano no país hermano. Mas esta polarização "gastropolítica" não é de hoje.
Em 2017, o ex-presidente argentino, opositor do peronismo, Mauricio Macri, disse que em sua campanha as pessoas não precisam nem de ônibus e nem de choripán para irem aos atos.
A provocação caiu mal e logo depois Macri pediu desculpas e posou em uma foto comendo o sanduíche com linguiça.
Juan Domingo Perón amava choripán
A figura mais importante do movimento peronista é o Coronel Juan Domingo Perón, que governou o país em três mandatos (1946 a 1952. 1952 a 1955 e 1973 a 1974). Embora ainda seja uma figura controversa, ele e sua esposa Eva Perón são ícones da história argentina e amados pelos peronistas.
O historiador Esteban Ocampo contou em entrevista que o choripán era o prato preferido do Coronel Perón, constatação que está presente em diversas biografias sobre o político.
Há uma história pitoresca que ele estava num hospital, no bairro de Belgrano, preso, antes de ser presidente, na década de 1940, e todos os dias comia choripán
Esteban Ocampo, historiador
De acordo com Ocampo, a receita se popularizou em atos massivos por ser uma comida mais rápida, calórica e barata. "Com o passar dos anos, se relacionou o choripán a tudo que era popular", contextualizou.
Nem peronista e nem anti-peronista, o choripán é argentino
Apesar de haver indícios que o sanduíche surgiu na província de Córdoba, a mais anti-peronista da Argentina, a receita se popularizou por todo o país, principalmente, segundo Ocampo, em razão da praticidade e do baixo custo.
"O choripán é bem argentino, é nosso; está presente na prévia do nosso churrasco", considerou. De acordo com o historiador, o sentido negativo da relação da receita com o peronismo se contextualiza a partir do discurso de clientelismo político, no qual os opositores acusam a militância peronista de convencer as pessoas a irem às marchas para poderem comer choripán.
Segundo o historiador argentino Felipe Pigna, o choripán é uma receita popular, presente em atos de diversos partidos políticos, futebol e shows de massa. "É um símbolo popular, não do peronismo, ainda que obviamente faça parte dos atos peronistas".
Mas o choripán é do povo e o peronismo se identifica com o que é popular, trabalhador. O sanduíche está em diversas marchas populares. Onde há choripán, há povo
Felipe Pigna, historiador
A polarização em torno do choripán é tão grande que, em abril de 2019, a deputada peronista Beatriz Mirkin disse na tribuna que "alguns partidos oferecem choripanes, outros dão hambúrguer do McDonald's", ironizando a diferença ideológica materializada na comida.
O cientista político argentino Marcos Novaro, no entanto, ressaltou que essa polarização é uma forma superficial de entender a importância e o rechaço ao choripán. Segundo ele, a receita ficou famosa em marchas populares e a recusa ao símbolo surgiu de classes sociais que não se identificavam com o peronismo, mas que isso não significa necessariamente que são pessoas ricas e que pertencem ao status quo.
"A recusa também vem de pessoas que sofrem os efeitos do empobrecimento causado pela crise econômica argentina, os mais de 40% de pobreza que vive o país, a desvalorização do peso", analisou.
Ou seja, fatores reais que impactam a classe média e a classe média baixa, gerando um rechaço ao choripán como uma espécie de recusa ao populismo. É uma forma de se diferenciarem dos 'choripaneiros'
Marcos Novaro, cientista político
Livro aborda relação da comida de rua com o peronismo
A paixão do argentino por essa comida de rua é tão grande que o escritor argentino Sebastian Pandolfelli escreveu o livro "Choripán Social". No livro, um sindicato de choripaneros, que é comandado por um fascista, quer tomar o poder; dirigentes e militantes peronistas tentam evitar que isso ocorra e vivem uma série de aventuras até a batalha final.
Em entrevista ao UOL, o autor explicou que o choripán é central na trama porque é um símbolo inevitável da cultura popular argentina. "Falar sobre a Argentina sem falar sobre o peronismo é impossível", opinou. Para ele, grupos anti-peronistas tentaram se apropriar do choripán com receitas mais sofisticadas, mas não tiveram sucesso.
O choripán é nacional e popular. Como o peronismo, é um sentimento
Sebastian Pandolfelli
Peronista ou não peronista, se você é um autêntico amante comida de rua e está na Argentina, vale a pena provar essa receita local, que ficou em primeiro lugar entre os cinco melhores sanduíches do mundo pelo The Taste Atlas, desbancando o hot dog de Chicago (2º) e o brasileiro (6º).