Como choripán virou 'pão com mortadela' dos peronistas na eleição argentina

Na noite do dia 22 de outubro de 2023, primeiro turno das eleições mais incertas dos últimos quarenta anos da Argentina, uma multidão de pessoas cobria a avenida Corrientes, na região do bairro Chacarita, para acompanhar o resultado do primeiro turno e esperar para escutar o candidato peronista e atual ministro da economia Sergio Massa, que falaria à militância após o resultado oficial da votação.

Entre a multidão, um cheiro inconfundível e uma fumaça característica: tratava-se de um churrasco em plena manifestação política de rua. O cheiro de chorizo (linguiça) na brasa esquentava os corações dos militantes que faziam fila para comprar o sanduíche enquanto aguardavam ansiosos os resultados das urnas.

Se não tem choripán, não é uma marcha peronista
Militante, durante a marcha

Churrasco de choripán em marcha peronista em Buenos Aires, na Argentina
Churrasco de choripán em marcha peronista em Buenos Aires, na Argentina Imagem: Amanda Cotrim/UOL

Com o passar dos anos, o setor turístico criou versões mais gourmets da clássica receita argentina, mas, na rua, a regra é clara: uma linguiça suína crocante por fora e bem cozida, dentro do pão, e adereços como chumichurri e vinagrete ao gosto do cliente.

É praticamente impossível estar em manifestações massivas como atos peronistas, futebol e manifestações de movimentos sociais e não encontrar uma ou mais barracas de choripán na rua.

Vendedora de choripán durante manifestação peronista em Buenos Aires; foto de outubro de 2022
Vendedora de choripán durante manifestação peronista em Buenos Aires; foto de outubro de 2022 Imagem: Reuters

O símbolo da iguaria é tão marcante nas marchas políticas que os opositores ao peronismo fazem inúmeras provocações a respeito do choripán, como a militante Alba Quintar, que apoia o candidato a presidente de ultradireita Javier Milei, do partido Liberdade Avança: "O apoio das pessoas a Milei é genuíno, sem a necessidade do choripán", disse em entrevista a uma rádio argentina.

Relacionar pejorativamente o sanduíche de linguiça à esquerda argentina — tal como o pão com mortadela tende a ser "colado" à imagem da esquerda no Brasil — foi uma constante na eleição deste ano no país hermano. Mas esta polarização "gastropolítica" não é de hoje.

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Em 2017, o ex-presidente argentino, opositor do peronismo, Mauricio Macri, disse que em sua campanha as pessoas não precisam nem de ônibus e nem de choripán para irem aos atos.

A provocação caiu mal e logo depois Macri pediu desculpas e posou em uma foto comendo o sanduíche com linguiça.

Linguiça suína aberta no pão francês e coberta de chimichurri: o choripán clássico
Linguiça suína aberta no pão francês e coberta de chimichurri: o choripán clássico Imagem: Getty Images

Juan Domingo Perón amava choripán

A figura mais importante do movimento peronista é o Coronel Juan Domingo Perón, que governou o país em três mandatos (1946 a 1952. 1952 a 1955 e 1973 a 1974). Embora ainda seja uma figura controversa, ele e sua esposa Eva Perón são ícones da história argentina e amados pelos peronistas.

O historiador Esteban Ocampo contou em entrevista que o choripán era o prato preferido do Coronel Perón, constatação que está presente em diversas biografias sobre o político.

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Há uma história pitoresca que ele estava num hospital, no bairro de Belgrano, preso, antes de ser presidente, na década de 1940, e todos os dias comia choripán
Esteban Ocampo, historiador

De acordo com Ocampo, a receita se popularizou em atos massivos por ser uma comida mais rápida, calórica e barata. "Com o passar dos anos, se relacionou o choripán a tudo que era popular", contextualizou.

Venda de choripán durante manifestação; em setembro de 2022
Venda de choripán durante manifestação; em setembro de 2022 Imagem: Reuters

Nem peronista e nem anti-peronista, o choripán é argentino

Apesar de haver indícios que o sanduíche surgiu na província de Córdoba, a mais anti-peronista da Argentina, a receita se popularizou por todo o país, principalmente, segundo Ocampo, em razão da praticidade e do baixo custo.

"O choripán é bem argentino, é nosso; está presente na prévia do nosso churrasco", considerou. De acordo com o historiador, o sentido negativo da relação da receita com o peronismo se contextualiza a partir do discurso de clientelismo político, no qual os opositores acusam a militância peronista de convencer as pessoas a irem às marchas para poderem comer choripán.

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O choripán vem sendo usado politicamente para atacar os peronistas, tal como o pão com mortadela é relacionado por opositores à esquerda no Brasil
O choripán vem sendo usado politicamente para atacar os peronistas, tal como o pão com mortadela é relacionado por opositores à esquerda no Brasil Imagem: Aleksandr_Vorobev/Getty Images/iStockphoto

Segundo o historiador argentino Felipe Pigna, o choripán é uma receita popular, presente em atos de diversos partidos políticos, futebol e shows de massa. "É um símbolo popular, não do peronismo, ainda que obviamente faça parte dos atos peronistas".

Mas o choripán é do povo e o peronismo se identifica com o que é popular, trabalhador. O sanduíche está em diversas marchas populares. Onde há choripán, há povo
Felipe Pigna, historiador

A polarização em torno do choripán é tão grande que, em abril de 2019, a deputada peronista Beatriz Mirkin disse na tribuna que "alguns partidos oferecem choripanes, outros dão hambúrguer do McDonald's", ironizando a diferença ideológica materializada na comida.

O cientista político argentino Marcos Novaro, no entanto, ressaltou que essa polarização é uma forma superficial de entender a importância e o rechaço ao choripán. Segundo ele, a receita ficou famosa em marchas populares e a recusa ao símbolo surgiu de classes sociais que não se identificavam com o peronismo, mas que isso não significa necessariamente que são pessoas ricas e que pertencem ao status quo.

"A recusa também vem de pessoas que sofrem os efeitos do empobrecimento causado pela crise econômica argentina, os mais de 40% de pobreza que vive o país, a desvalorização do peso", analisou.

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Ou seja, fatores reais que impactam a classe média e a classe média baixa, gerando um rechaço ao choripán como uma espécie de recusa ao populismo. É uma forma de se diferenciarem dos 'choripaneiros'
Marcos Novaro, cientista político

Livro aborda relação da comida de rua com o peronismo

Capa do livro "Choripán Social", do escritor argentino Sebastian Pandolfelli
Capa do livro "Choripán Social", do escritor argentino Sebastian Pandolfelli Imagem: Reprodução

A paixão do argentino por essa comida de rua é tão grande que o escritor argentino Sebastian Pandolfelli escreveu o livro "Choripán Social". No livro, um sindicato de choripaneros, que é comandado por um fascista, quer tomar o poder; dirigentes e militantes peronistas tentam evitar que isso ocorra e vivem uma série de aventuras até a batalha final.

Em entrevista ao UOL, o autor explicou que o choripán é central na trama porque é um símbolo inevitável da cultura popular argentina. "Falar sobre a Argentina sem falar sobre o peronismo é impossível", opinou. Para ele, grupos anti-peronistas tentaram se apropriar do choripán com receitas mais sofisticadas, mas não tiveram sucesso.

O choripán é nacional e popular. Como o peronismo, é um sentimento
Sebastian Pandolfelli

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Peronista ou não peronista, se você é um autêntico amante comida de rua e está na Argentina, vale a pena provar essa receita local, que ficou em primeiro lugar entre os cinco melhores sanduíches do mundo pelo The Taste Atlas, desbancando o hot dog de Chicago (2º) e o brasileiro (6º).

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