Tem gente que jura que viu até no Brasil: como surgiu a lenda do pé grande
No dia 12 de maio de 1974, Jack Cochran, um lenhador que trabalhava em uma floresta no estado americano do Oregon, teve uma experiência insólita. Durante uma pausa na função de içar toras de madeira, ele avistou, da cabine do guindaste, uma figura grande e peluda, parada de pé, em silêncio, em uma clareira.
Um frio subiu na espinha. Cochran era caçador e ilustrador da vida selvagem nas horas vagas, então, quando percebeu que a criatura não era só mais um lenhador barbudo e peludo, resolveu estudá-la. Tinha uns dois metros de altura, ombros largos e era coberta por uma pelagem escura grossa.
Cochran agora tinha certeza que não se tratava de nenhum animal que ele já avistara nas redondezas. Só podia ser o pé-grande, concluiu.
O relato de Cochran foi um dos mais de 90 coletados por Peter Byrne, um caçador profissional que trabalhou anos perseguindo tigres no Nepal, até que teve um estalo. Decidiu lutar pela conservação dos tigres na Ásia e mirar suas espingardas para outra criatura, o pé-grande na América do Norte. Para tanto, ele usou a experiência que tinha adquirido ao caçar, no Himalaia, a figura conhecida como Iéti, ou Abominável Homem das Neves.
Byrne resolveu montar o Centro de Informações do Pé-Grande, em Dalles, cidadezinha do Oregon onde a lenda era bastante forte. Ele recolhia depoimentos e organizava buscas com uma rede de voluntários. Em 1976, Byrne reconheceu ao jornal "New York Times" que, pessoalmente, jamais avistara o pé-grande, mas os testemunhos naquela região se acumulavam desde os anos 1840.
As montanhas da Colúmbia Britânica, no Canadá, e a Cordilheira Cascade, nos estados americanos de Washington, Oregon e Califórnia, são o chamado território do pé-grande, que, especialmente naquela região, também é conhecido como Sasquatch. É uma área enorme, de cerca de 323 mil quilômetros quadrados, equivalente à do Maranhão.
Junte a isso o fato de o pé-grande ser nômade (bem, é o que seus caçadores afirmam) e temos uma noção da dificuldade de localizá-lo. A reportagem chama a atenção para esse detalhe geográfico. O pé-grande pertence à paisagem do noroeste americano e do sudoeste canadense assim como o monstro do Lago Ness é uma cria das Terras Altas escocesas.
Mas o que se destaca, quase 50 anos depois, é o espaço e a seriedade dada ao tema por um dos principais jornais do mundo. Os anos 1970 foram uma espécie de era dourada do pé-grande.
O que a ciência diz?
Em 2019, o FBI liberou documentos, até então secretos, sobre as investigações que conduziu naquela década, incluindo informações citadas na reportagem do NYT. Byrne enviara a matéria do jornal à agência a fim de mostrar a seriedade de seu trabalho.
Foi uma maneira, também, de chamar atenção para a causa: ele dizia que o interesse no "monstro americano" não se comparava às quantias cada vez maiores gastas por cientistas de renome nas buscas pela criatura do Lago Ness.
Entre as análises conduzidas pelo FBI, estavam amostras de pelos enviadas por Byrne. A bateria de testes incluiu estrutura radicular e medular e espessura da cutícula, a camada externa do cabelo. Os resultados apontaram que os pelos pertenciam a algum animal da família dos veados.
Foi uma má notícia, mas não uma novidade para os caçadores do pé-grande. Investigadores e cientistas sérios jamais comprovaram sua existência. Importa pouco para quem nele acredita. O pé-grande é um mito persistente, um dos maiores ícones da pseudociência.
Graças à influência cultural americana desde o século 20, o pé-grande se tornou uma figura popular, presente em dezenas e dezenas de livros, filmes, jogos e músicas. Apareceu em comerciais de pizzaria, cerveja, companhia de seguro e até em campanha pelo distanciamento social durante a pandemia. É um relevante atrativo turístico nos dois lados da fronteira, mobilizando convenções e outras atividades em torno do mito.
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Quero receberMas, em sua origem, não se trata de um fenômeno exclusivo dessa região. É algo mais global.
As origens dos vários pés-grandes
Lendas de criaturas grandes, bípedes, peludas e selvagens existem em outros lugares. O já citado iéti, do Himalaia, é o mais famoso. Os aborígenes australianos têm o yowie, os chineses, o yeren.
Na Amazônia, há o mapinguari. Alguns relatos o descrevem como uma preguiça gigante, outros como um enorme macaco.
"A maioria dos meus informantes karitiana [povo indígena que vive em Rondônia] afirma, entretanto, que o mapinguari e o bicho/macaco-preguiça gigante são o mesmo horripilante ser", explica o antropólogo Felipe Ferreira Vander Velden em um artigo a respeito.
Não morre com tiros porque seu peito e costas 'têm pedra'; tem a altura de um homem (cerca de dois metros) ou é grande 'como tratorzinho'; dispõe de braços fortes que matam animais com um abraço, e de unhas e dentes enormes; e, quando é encontrado na mata, grita como porco, o que engana caçadores.
Na enciclopédia digital "The Skeptic's Dictionary", o filósofo Robert Carroll, especializado no que ele define como "crenças controversas", explica que criaturas semelhantes a macacos teriam sido avistadas centenas de vezes em todo o mundo desde o século 19. O pé-grande é a mais conhecida, aquela que fincou os dois grandes pés, "com pegadas de 43 cm", na cultura pop.
A referência mais influente da crença no pé-grande é um vídeo de 1 minuto, registrado em 1967 no norte da Califórnia. O material foi analisado por especialistas de diversos campos, mas não ofereceu nenhum embasamento científico.
"Cheque o site do Big Foot Researchers Organization e faça uma lista acrítica de avistamentos", provoca Carroll.
Essa organização se vende como a única iniciativa científica a investigar o sasquatch. Mas, segundo Carroll, "as evidências da existência do pé-grande consistem, em geral, depoimentos de entusiastas, pegadas de origem questionável e fotos que podem facilmente ser de primatas ou de humanos vestidos de primatas. Sem ossos, sem fezes, sem artefatos, sem cadáveres, sem mães com filhotes, sem adolescentes, sem pelo, sem nada."
O avistamento mais recente listado pela organização ocorreu em outubro:
"Minha esposa e eu estávamos voltando para casa na N County Road 229 por volta das 23h45. Ao me aproximar da ponte Connor, notei uma figura bípede negra atravessando a estrada entre meu veículo e a ponte. Ela era muito grande e se movia rapidamente. Deu apenas dois ou três passos para atravessar a estrada e outro passo para cruzar o aterro e desaparecer na linha das árvores."
O episódio aconteceu na Flórida, do outro lado do país. A lista de depoimentos inclui muitos relatos bem distantes da costa do Pacífico, o que indicaria que o pé-grande "migrou", agora está em todo o território americano, presente no imaginário coletivo de leste a oeste.
Ainda assim, historicamente, o grosso dos avistamentos está no noroeste. O que a maioria das pessoas vê (quando vê) são, provavelmente, ursos-negros. Alguns estudos já relacionaram os locais onde o pé-grande teria sido visto com as regiões onde há mais ursos.
Em 2023, a cientista de dados Floe Foxon cruzou informações de avistamentos com populações desse animal. Ela concluiu que, para cada pessoa que alegou ter visto a criatura, vivem, em média, 900 ursos-negros naquela região. Em suma, quando alguém diz ter visto o pé-grande, as chances são grandes de ser um urso.
Mas por que essa lenda é tão grande e relevante até hoje? Jane Goodall, a revolucionária primatologista que mudou nosso entendimento sobre chimpanzés, talvez tenha a resposta. Em um programa de rádio na rede americana NPR, em 2002, ao ser perguntada a respeito, ela disse:
"Bem, talvez você se surpreenda se eu disser que tenho certeza que ele existe. Eu sou uma romântica, então sempre quis que eles existissem. Por que não há um corpo? Não sei responder isso, e talvez eles nem existam. Mas eu quero que existam."
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