Por que viajantes têm escolhido trabalhar em troca de hospedagem e comida?
Beatriz Neves
Colaboração para VivaBem
07/12/2023 04h05
Uma modalidade de viagem que tem atraído muitos adeptos nos últimos tempos é o trabalho voluntário. Nele, o viajante se inscreve em uma plataforma e escolhe um tipo de trabalho por algumas semanas. São opções espalhadas pelo mundo todo: uma casa de campo perto de Paris, um camping no interior de São Paulo ou um orfanato na Índia.
Funciona como um sistema de troca, o viajante ganha estadia e alimentação, mas deve trabalhar algumas horas por dia no local. Os serviços são variados, como atendimento ao público, limpeza, restauração e até atividades de marketing e gerenciamento de redes sociais.
Vale a pena?
Quem viaja desse modo acredita que sim, porém muitos já relataram vários perrengues com os anfitriões. É o caso da estrategista de mídia social Thais Cunha. No início de 2023, por meio da plataforma Worldpackers, ela decidiu fazer trabalho voluntário em uma hospedagem em Belém, no Pará. Ela não precisaria pagar pela acomodação nem pelo café da manhã.
Estava tudo combinado: viu fotos do lugar e também avaliações de outras pessoas. Só que quando chegou lá, encontrou um cenário desanimador. "O local era muito sujo, sujeira antiga, entranhada já. Os banheiros fediam, a cama estava quebrada e os hóspedes caiam toda hora. Eram muitas baratas e a cozinha não oferecia o mínimo para cozinhar, como panelas e talheres", recorda.
O serviço de Thais consistia em montar uma estratégia de marketing para as redes sociais do hostel —algo que deixou de fazer sentido já que ela não acreditava no lugar. Como percebeu que não seria viável ficar ali, a profissional precisou buscar outro lugar para se acomodar, tendo que bancar a estadia completa.
"É preciso ter dinheiro sim. O trabalho voluntário cobre a hospedagem e às vezes o café da manhã. Mas você precisa se deslocar, comer o restante dos dias e fazer alguns passeios se quiser", afirma.
Para Thais, a economia que o voluntariado oferece é o que a permite viajar para tantos lugares. As horas de trabalho são curtas —de quatro a seis horas diárias— e, geralmente, os voluntários têm direito a uma refeição além da hospedagem. Se for viajar por meio de uma agência, o interessado deve pagar um valor anual e, durante esse ano, tem acesso a diversas vagas de voluntariado.
"No Brasil, com o trabalho voluntário, em troca de algumas horas por dia, você ganha hospedagem e uma refeição, geralmente o café da manhã. Mas se for em outros países tem local que dá três refeições. O que ajuda e muito", explica.
"Me mudou completamente"
Ao sair de um relacionamento abusivo que durou quatro anos, a empreendedora Gabrielle Peres Gomes não sabia direito o que fazer a partir dali. Em busca de autoconhecimento, ela decidiu, aos 21 anos, realizar a sua primeira viagem sozinha. Natural do Rio de Janeiro, escolheu como destino a cidade de Ilha Grande e se hospedou em um hostel da região.
"Tive contato pela primeira vez com um hostel e nele tinham voluntários. Acessei um universo completamente novo e diferente para mim. Fiquei fascinada pela diversidade cultural e com o formato totalmente diferente de tudo que já tinha experimentado", comenta.
Um ano depois, em 2019, ela partiu para um trabalho voluntário em um hostel em Puerto Vallarta, no México. Suas atribuições eram limpar as áreas comuns, arrumar os quartos dos hóspedes, recolher e separar o lixo. A empreendedora deveria trabalhar cinco horas por dia, no turno da manhã, e no restante da jornada poderia sair e explorar a cidade. A acomodação, café da manhã e almoço estavam incluídos.
Segundo ela, ela escolher viajar assim pela possibilidade de estar em contato com outras culturas, além do aprendizado gerado pela experiência.
"Sem sombra de dúvidas vivenciar um voluntariado me mudou completamente. Primeiro por ficar imersa culturalmente, segundo por me mostrar novos formatos de viagem e expandir meus horizontes quanto a isso. Voluntariar me tirou da zona de conforto e me fez entender que existe um universo de possibilidades. Somos, sim, capazes de desenvolver novas habilidades e de nos reinventar", diz.
Gabrielle conta que, embora a viagem tenha sido de forma geral positiva, ela passou por algumas situações desagradáveis no hostel. Por conta da barreira do idioma e da cultura, ela lembra que teve dificuldades em perceber que certas atitudes do seu anfitrião poderiam ser consideradas como assédio.
"Não entendia se era uma situação de assédio e desrespeito ou se era normal. Então impor limites e dizer não foi desafiador. Sempre tive muito medo de desagradar, mas aprendi com o voluntariado que era eu quem não poderia ficar desconfortável", conta.
Ao conversar com outra voluntária da hospedagem, ela percebeu que as investidas do anfitrião eram abusivas, podendo então impor os limites necessários e denunciar. "Nós mulheres temos que acreditar em nossa intuição e nos proteger sempre. Sinto que é importante verbalizar, tirar o pensamento de um lugar solto", afirma.
É seguro?
Existem vários meios para realizar o seu trabalho voluntário. Um deles é entrar em contato diretamente com os proprietários da hospedagem. Foi o que fez Rafaela Faggion, escritora e criadora de conteúdo de viagens, em 2018, ao ser voluntária em um santuário de elefantes na Tailândia.
"Costumo encontrar as oportunidades de voluntariado por meio de plataformas como a Worldpackers e Workaway. Mas dá para fazer de forma independente, se conectando diretamente com o projeto ou até por meio de agências, que pode ser uma boa alternativa para quem nunca viajou e ainda tem bastante medo", aconselha.
Rafaela conta que, na época, realizou uma pesquisa extensa para encontrar santuários confiáveis e que não maltratavam os animais. Ao entrar no site de um deles, ela encontrou a possibilidade de fazer voluntariado no local. Como já viajou por conta própria e também por meio de agências, ela comenta que a principal diferença é justamente a presença ou ausência de apoio ao viajante.
"A maior diferença de fazer por conta é que você tem que ir busca das ONGs e geralmente não consegue ver avaliações e o que as pessoas que já foram pensam. Não é possível ter mais informações além da que a que eles dão. Pelas plataformas têm mais amparo, você consegue ver mais opções e até mesmo descobrir algumas experiências que você nem pensava que existiam", diz.
De fato, a forma mais popular entre os viajantes são as plataformas online especializadas em voluntariado. É uma maneira de assegurar a integridade do viajante, já que os anfitriões devem passar por uma triagem ao se inscreverem.
Porém, é claro que pode acontecer de o anfitrião não cumprir com o combinado e, por isso, existem algumas medidas adotadas pelas agências. A plataforma escolhida por Thais, por exemplo, oferece até três noites de hospedagem em um quarto compartilhado em um hostel da região caso algo não saia como o esperado.
Ricardo Lima, co-fundador da Worldpackers, afirma que há uma equipe de suporte que pode ser acionada a qualquer hora pelos viajantes. "A gente tem uma equipe que avalia e aprova o que está lá. Temos também as reviews, são mais de 150 mil avaliações na plataforma, em que você pode ver e falar com viajantes que já ficaram ali antes", diz.
E projeto social?
Os projetos sociais também têm grande procura entre aqueles que optam pelo trabalho voluntário. Nesses casos, o indivíduo terá que trabalhar em uma entidade social, mas para isso deve pagar um valor determinado pela agência. Na maior parte das vezes, possuem acomodação e alimentação inclusas.
A Thais, já citada no início desta reportagem, viajou assim para Itacaré, na Bahia, em 2019. Para ajudá-la nessa empreitada, escolheu a empresa Exchange do Bem, especializada em levar voluntários para projetos sociais pelo mundo.
A estrategista de mídias sociais explica que, durante uma semana, ela trabalhou em um lixão e no projeto Recicla Itacaré. Os voluntários ajudaram a montar um centro de lazer para crianças apenas com objetos reciclados.
"O trabalho social é diferente porque mexe com a gente, nos deparamos com outras realidades. Quando fiz o trabalho voluntário em Itacaré, foi muito impactante, conheci famílias que viviam no lixão. Além de montar a praça com material reciclado, também tive vivência com as mulheres que viviam no lixão, aprendendo a fazer crochê com plástico. Era um espaço pra elas falarem de suas dores e felicidades", lembra.
Depois de alguns anos realizando voluntariado em diversas partes do mundo, Eduardo Mariano resolveu criar uma empresa que reunisse vários projetos em um único lugar. Foi aí que surgiu a Exchange do Bem, que apresenta opções da América Latina, África e Ásia.
Para garantir o bem-estar dos viajantes, Mariano explica que uma equipe responsável se dirige aos locais antes de enviarem os voluntários. "Enviamos o voluntário para um ambiente seguro. Então a gente monta uma equipe parceira no local, que vai buscar no aeroporto. Em relação a onde o voluntário vai ficar, a gente já dormiu lá, conhecemos muito bem todos os lugares", declara.
Para Mariano, a imersão cultural é um dos fatores que mais seduzem os viajantes —que conhecem não só a parte glamurosa e turística do destino, mas as suas mazelas, problemas e realidades. No mais, há também a possibilidade de aprender novas competências.
"As empresas valorizam muito, então conta para o currículo também. Em qualquer projeto, o voluntário desenvolve habilidades de integração e formação de equipe, empatia, colaboração e comunicação", finaliza.