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Como surgiu Atlântida? Mito que intriga a humanidade é culpa de Platão

Ilustração de Athanasius Kircher (1602-1680) mostraria Atlântida perto de Gibraltar Imagem: Ann Ronan Pictures/Print Collector/Getty Images

Felipe van Deursen

Colaboração para Nossa

10/12/2023 04h00

Navegador, matemático, astrólogo, soldado e erudito, Pedro Sarmiento de Gamboa foi um dos grandes exploradores do Império Espanhol. Teve uma vida enorme. Foi perseguido pela Inquisição, navegou até as Ilhas Salomão, no Pacífico Sul, e protegeu o Estreito de Magalhães, numa viagem em que sua frota teve um navio naufragado em Florianópolis.

Além disso, Gamboa escreveu, em Cusco, no recém-conquistado Peru, uma obra importante, apenas 40 anos após a derrota do incas para os espanhóis. "A História dos Incas" é um detalhado relato da vida e da mitologia daquele povo sob o ponto de vista dos europeus.

Estudado até hoje, o manuscrito é um importante documento, porque se trata de um instrumento bastante enviesado, que pintou os líderes incas como tiranos que precisavam ser destronados. Tudo a serviço da coroa espanhola.

Pedro Sarmiento de Gamboa Imagem: Raimundo Pastor

A obra é interessante também porque mostra como era o mundo em 1572. Em dado momento, Gamboa deduz que toda a terra "da foz do Marañon [Amazonas] até o Mar do Sul, que é o que hoje se chama América" é a porção que não submergiu do antigo continente de Atlântida.

Sim, para ele, a mítica Atlântida englobava o território brasileiro e seus vizinhos. Outros autores também defendiam que Atlântida era esse enorme continente, que ia de uma área imediatamente a oeste da Espanha até a ponta sul da América do Sul.

Já se afirmou que ela ficava, na verdade, em tudo que é lugar. Atlântida é o reino inexistente mais onipresente que existe.

É difícil até dizer onde ela não esteve. Sua localização já foi apontada, ao longo do tempo, nas Ilhas Britânicas, na costa da Espanha, na Escandinávia, no Polo Norte e em diversas ilhas do Atlântico e do Mediterrâneo, como Açores, Canárias, Chipre e Sardenha.

Atlântida ficava na Antártida ou no Saara, no Marrocos ou na Turquia (onde teria outro nome mítico, Troia). Já se afirmou que ela teria sido um imenso império transcontinental, centrado numa ilha fictícia no Atlântico, estendendo-se do Chile à Finlândia, do Canadá à Índia.

Mas onde e quando a lenda surgiu?

Culpe Platão. Mas não muito, porque não era a intenção dele espalhar que Atlântida era um lugar real. O filósofo grego menciona o lugar em duas obras, "Timeu" e "Crítias", de 360 a.C.

Ilustração de onde estaria Atlântida Imagem: ullstein bild/ullstein bild via Getty Images

A própria história começa com um telefone sem fio danado. Crítias diz que seu avô ouviu de Sólon (estadista que viveu mais de 200 anos antes de Platão), que ouviu dos egípcios a respeito de um antigo império que existia, muito tempo atrás, no Atlântico e governava diversas ilhas e territórios na Europa e na África.

Era um país de solo rico, arquitetura extravagante e engenheiros talentosos. Uma potência naval, rica em ouro e prata, com uma biodiversidade esplendorosa.

Mas então Atlântida travou uma guerra contra o resto da Europa e a Ásia, e acabou derrotada por uma pequena cidade-Estado chamada Atenas. "A história é claramente uma parábola", explica a historiadora N.S. Gill, especialista em Grécia Clássica, em um artigo no site "ThoughtCo".

O mito de Platão é o de duas cidades que competem entre si, não por motivos legais, mas culturais e políticos e, em última análise, pela guerra. Uma cidade pequena mas justa triunfa sobre um poderoso agressor.

É a história de uma civilização culta e refinada, mas que se corrompeu, tornou-se mesquinha e, sem motivo algum, quis invadir a pequena e democrática Atenas. Por isso, acabou punida pelos deuses. Terremotos e inundações trataram de levar o outrora reino poderoso para o fundo do mar.

Existe alguma inspiração real?

Maremotos e erupções vulcânicas devastadoras eram tragédias conhecidas dos gregos. Uma, em específico, inspirou gerações e gerações de contadores de histórias antes de Platão. Em cerca de 1500 a.C., o vulcão da ilha de Thera, no sul da Grécia, teve uma erupção tão monumental que a maior parte da ilha afundou e as cinzas suspensas no ar criaram um inverno de muitos anos. Para completar, o desastre, provavelmente, foi a maior causa do colapso da civilização minoica, que habitava a ilha.

Erupção de vulcão em Thera teria dado origem à lenda de Atlântida Imagem: Ann Ronan Pictures/Print Collector/Getty Images

Uma lenda a respeito pode ter surgido a partir desses eventos, e Platão a usou para difundir suas ideias. "O mito em 'Timeu' e 'Crítias' não deve ser visto como o experimento de um filósofo em geografia", explica o historiador James Romm no livro "The Edges of the Earth in Ancient Thought" ("Os limites da Terra no pensamento antigo" sem edição brasileira). "Mas um experimento de pseudogeografia a serviço da filosofia."

Mais de mil anos se passaram do desastre em Thera até a época de Platão, tempo suficiente para surgirem e desaparecem uma série de lendas. Mais ou menos da mesma forma, séculos depois de Platão, o mito de Atlântida ganhou novas formas - e começou a ser visto como um episódio histórico.

Filósofos cristãos e judeus mantiveram o mito vivo. No Renascimento, escritores como Francis Bacon trataram do tema. Em "Nova Atlântida" (1626), o filósofo inglês fala dessa ilha remota, agora localizada no Pacífico, cujos habitantes são muito instruídos e cristãos.

A era das Grandes Navegações trouxe quilos e quilos de questionamentos filosóficos para a Europa e a cristandade. Como entender novos continentes inteiros, habitados por povos tão diferentes, com costumes, culturas e rituais tão estranhos a eles? Acreditar que essas civilizações pudessem ter passado por suas próprias fases de desenvolvimento e evolução, com ritmos, objetivos e aspirações distintos, podia ser demais para os europeus. Então, ligá-los a antigos e conhecidos mitos, como Atlântida, poderia ser mais fácil.

É o que explica, em suas redes sociais, o arqueólogo americano David Anderson, que usa a internet para tentar derrubar esses mitos que parecem impossíveis de derrubar (segundo uma pesquisa de 2018, 58% dos americanos acreditam que Atlântida existiu).

No século 19, o padre francês Charles de Bourbourg coletou textos maias, conectou-os a Atlântida e fez uma obra inspiradora, que levou o arqueólogo Augustus Le Plongeon a buscar resquícios da antiga civilização na Península de Yucatán. Dá para ver que, ao longo de mais de 2 mil anos, o mito cresceu: aquele punhado de alegorias e metáforas de menor importância na obra de Platão foi parar em escavações reais nos arredores de Cancún.

Em 1882, o americano Ignatius Donnelly escreveu um livro que unificava duas histórias com milênios de popularidade. Para ele, o mesmo dilúvio bíblico, que fez Noé construir a arca, destruiu Atlântida. É um enredo com potencial, poderia estar até hoje no catálogo de editoras especializadas em ficções científicas e fantasias. Mas a obra foi publicada com uma pretensão arqueológica e, por sua vez, inspirou novas teorias, ao longo do século 20, cada vez mais distante da ideia original de Platão.

Ilha de Santorini, na Grécia Imagem: iStock

Atlântida é algo completamente fictício. Mas se ainda assim você quiser visitar o que mais se aproxima dessa lenda, e de Platão, a resposta está na Grécia. A antiga Thera se chama hoje Santorini. Graças à erupção de 3,5 mil anos atrás, a ilha tem esse formato de meia-lua, o que criou um pôr do sol de badalação internacional. Digno de um reino mitológico.

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