Esqueça o mago e a espada: o que há de real na história do Rei Artur
Felipe van Deursen
Colaboração para UOL
17/12/2023 04h00
Tintagel é um vilarejo isolado no sudoeste da Inglaterra. As ruínas de seu castelo, com uma vista inspiradora para o Atlântico, recebem cerca de 250 mil turistas por ano. Por mais bonito que seja o lugar, tanta gente não viaja até esse canto escondido da Cornualha, o condado que ocupa toda a ponta sul do Reino Unido, para ver apenas algumas ruínas.
Elas vão porque aquele é o castelo do Rei Artur. Ou pelo menos é o que diz a lenda.
Os turistas podem visitar a caverna do Mago Merlin, se hospedar em um hotel inspirado em Camelot e comprar lembranças na loja Pendragon, batizada em homenagem ao pai do rei. Satisfeitos, voltam para casa com uma excalibur de plástico.
Historiadores da Cornualha criticam a forma como o turismo local está transformando Tintagel, segundo eles, em um parque de diversões. Trata-se de uma relação complicada, porque apesar de Artur ser um personagem fictício, sua conexão com Tintagel não é.
A origem da lenda
Em 1136, o clérigo galês Geoffrey de Monmouth escreveu "História dos Reis da Bretanha", uma crônica que se propunha a traçar a história britânica desde que o país foi fundado por exilados de Troia - ou seja, era uma narrativa com altas doses de mitologia.
Geoffrey situou um certo rei Uther Pendragon no século 6º d.C. Segundo o autor, Pendragon, com o auxílio da magia de um mago chamado Merlin, se fez passar por um duque para entrar em seu castelo, em Tintagel. Uma vez lá, ele enganou a esposa do duque, Ygerna (ou Igraine). Dessa relação, nasceria Artur, "o mais famoso dos homens".
Foi a primeira vez que a lenda foi associada a Tintagel. Mas ela é bem mais antiga. A figura de Artur já aparecia na poesia galesa, mais de 500 anos antes, como um herói que liderou os bretões contra os invasores saxões. O poema "Y Gododdin", feito em algum momento entre os anos 540 e 640 d.C., descreve um soldado caído que é comparado a um certo Artur, o que seria um indicativo de que havia um guerreiro chamado Artur, tão célebre que a grandeza de outros se media comparando-as a ele.
Por volta de 830, um monge chamado Nênio descreveu a saga de um guerreiro chamado Artur, que liderou 12 vitórias contra os saxões.
Ou seja, há 1.500 anos já se fala num certo Artur. Mas foi a obra de Geoffrey, no século 12, que lhe deu outra dimensão - e muita gente comprou a história.
Em 1191, os monges da Abadia de Glastonbury desenterraram dois esqueletos e decidiram que eram os restos do rei Artur e de sua esposa, a rainha Guinevere, só para atrair visitantes crédulos. Em 1233, o conde Ricardo da Cornualha fez um negócio arriscado. Trocou três propriedades por Tintagel, um pequeno promontório, sem árvores, separado da Grã-Bretanha por um istmo. Um local sem função estratégica, remoto, mas que, para ele, teria importância política.
Convencido de que Artur teria reinado a partir daquelas ruínas 700 anos antes, Ricardo ergueu ali um castelo, a fim de se portar como descendente direto do mítico rei.
Mas o que havia antes em Tintagel?
Quando o domínio romano sobre a Grã-Bretanha acabou no século 5º d.C., o caos reinou. A economia entrou em colapso, as instituições evaporaram, fome e violência ocupavam o dia a dia das pessoas. Os saxões, povo germânico que invadiu a Grã-Bretanha, provocou a fragmentação do país em feudos dominados por homens igualmente brutos e violentos.
Mas havia um ou outro lugar próspero. Segundo arqueólogos que trabalharam em Tintagel na década passada e descobriram muitos itens de luxo do Mediterrâneo e da África, o local teria sido, no século 6º, um porto importante, protegido da costa. Era uma fortaleza relativamente pujante, com uma elite mercantil que podia governar milhares de pessoas e controlar um bom naco da Cornualha.
Não seria implausível que essa sociedade tivesse algum líder memorável. Alguém chamado Artur, como indicaria a marca em uma pedra, insistem os mais fiéis à lenda.
Como o mito cresceu
A jornada do rei podia ser modulada de acordo com a agenda política de quem a narrava. O monge Nênio queria um herói para enfrentar os invasores infiéis saxões, então Artur tinha o apoio de Jesus e de Maria em sua luta justa contra os selvagens. Além disso, na versão de Nênio, Artur devia seu nome a um vitorioso general romano, o que estreitaria os laços com o antigo império.
No tempo de Geoffrey, quando as invasões de anglos e saxões estava no passado e eles já faziam parte da população da Grã-Bretanha, Artur foi transformado em um rei celta. Isso serviria para demonstrar a superioridade dos bretões (um dos povos celtas) em relação aos outros habitantes da ilha.
Além disso, desde o princípio, Artur serviu como um legitimador para as famílias reais. A dinastia Tudor, por exemplo, que assumiu o poder no fim do século 15, se dizia descendente direta dele.
Mais importante ainda, a história tinha apelo. Geoffrey introduziu elementos que fazem parte até hoje do enredo, como o mago Merlin (inspirado em antigos profetas galeses), uma espada mágica e a terra mítica de Avalon.
Era uma lenda que conquistava multidões. Mosteiros e bibliotecas reais pela Europa tinham cerca de mil cópias do manuscrito, um feito enorme em tempos pré-imprensa. Segundo a revista dos museus Smithsonian, o texto de Geoffrey era o mais famoso da Idade Média, atrás apenas da Bíblia.
Versões posteriores deixaram o universo mais rico e adicionaram os Cavaleiros da Távola Redonda e o triângulo amoroso em que Artur e Guinevere se metem. A espada mágica ganhou um nome, Excalibur, e uma história própria, presenteada a Artur pela Dama do Lago. Algumas versões dizem que é a mesma espada encravada na pedra, mas outras, mais tradicionais, as tratam como armas diferentes.
O mais importante desses autores que incrementaram o folclore arturiano foi o poeta francês Chrétien de Troyes. No século 12, ele adicionou à lenda sir Lancelot, o santo graal e o reino de Camelot.
Cem anos mais tarde, a história era contada da Itália à Alemanha. Os manuscritos eram tão populares que acabavam reciclados, servindo para embalar tortas, por exemplo, o que dá uma dimensão de como esses contos es espalhavam.
Com personagens com falhas, mais próximos do público, aventuras épicas e uma linha narrativa que podia ser aproveitada ao sabor dos ventos políticos, a lenda do Rei Artur atravessou o tempo, contada e recontada desde os poemas galeses de 15 séculos atrás até filmes como "A Lenda do Cavaleiro Verde" (2021), inspirada em Gauvain, um dos Cavaleiros da Távola Redonda. O apelo resiste.
As pessoas reais que podem ter inspirado o mito
No século 20, havia algum debate entre historiadores se Artur teria sido alguém de verdade ou não. Atualmente, o consenso entre especialistas é de que se trata de algo 100% fictício.
Mas alguns personagens históricos podem ter servido de inspiração para o surgimento da lenda. Entre eles estão Ambrósio Aureliano, guerreiro que liderou a Bretanha romana contra os saxões no século 5º d.C., e Riotamo, outro guerreiro da Bretanha romana do século 5º, mas que lutou ao lado dos gauleses contra os godos.
A popularidade da lenda se explica por seus atributos narrativos. Mas a persistência do mito de um Rei Artur real cai naquilo que o arqueólogo Francis Pryor diz no livro "Britain AD: A Quest for Arthur, England and the Anglo-Saxons" (sem edição brasileira). Provar a inexistência é tão difícil quanto provar a existência. A ciência já não perde tempo com algo tão claramente fictício.
Segundo um artigo da publicação acadêmica "Comitatus", dedicada a estudos da Idade Média e do Renascimento, o realismo do Rei Artur está banido das universidades e centros de pesquisa. Vive apenas onde a ficção pode brilhar: livros para o público geral, filmes, videogames e qualquer outra mídia em que o mítico guerreiro desfila suas histórias mirabolantes.