Esqueça o mago e a espada: o que há de real na história do Rei Artur

Tintagel é um vilarejo isolado no sudoeste da Inglaterra. As ruínas de seu castelo, com uma vista inspiradora para o Atlântico, recebem cerca de 250 mil turistas por ano. Por mais bonito que seja o lugar, tanta gente não viaja até esse canto escondido da Cornualha, o condado que ocupa toda a ponta sul do Reino Unido, para ver apenas algumas ruínas.

Elas vão porque aquele é o castelo do Rei Artur. Ou pelo menos é o que diz a lenda.

Os turistas podem visitar a caverna do Mago Merlin, se hospedar em um hotel inspirado em Camelot e comprar lembranças na loja Pendragon, batizada em homenagem ao pai do rei. Satisfeitos, voltam para casa com uma excalibur de plástico.

Tintagel, na Cornualha
Tintagel, na Cornualha Imagem: Getty Images/iStockphoto

Historiadores da Cornualha criticam a forma como o turismo local está transformando Tintagel, segundo eles, em um parque de diversões. Trata-se de uma relação complicada, porque apesar de Artur ser um personagem fictício, sua conexão com Tintagel não é.

A origem da lenda

Tapeçaria retratando Artur como um dos Nove da Fama
Tapeçaria retratando Artur como um dos Nove da Fama Imagem: Domínio público

Em 1136, o clérigo galês Geoffrey de Monmouth escreveu "História dos Reis da Bretanha", uma crônica que se propunha a traçar a história britânica desde que o país foi fundado por exilados de Troia - ou seja, era uma narrativa com altas doses de mitologia.

Geoffrey situou um certo rei Uther Pendragon no século 6º d.C. Segundo o autor, Pendragon, com o auxílio da magia de um mago chamado Merlin, se fez passar por um duque para entrar em seu castelo, em Tintagel. Uma vez lá, ele enganou a esposa do duque, Ygerna (ou Igraine). Dessa relação, nasceria Artur, "o mais famoso dos homens".

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Foi a primeira vez que a lenda foi associada a Tintagel. Mas ela é bem mais antiga. A figura de Artur já aparecia na poesia galesa, mais de 500 anos antes, como um herói que liderou os bretões contra os invasores saxões. O poema "Y Gododdin", feito em algum momento entre os anos 540 e 640 d.C., descreve um soldado caído que é comparado a um certo Artur, o que seria um indicativo de que havia um guerreiro chamado Artur, tão célebre que a grandeza de outros se media comparando-as a ele.

Um fascículo do poema Y Gododdin, um dos mais famosos textos em galês antigo no qual Artur é o protagonista
Um fascículo do poema Y Gododdin, um dos mais famosos textos em galês antigo no qual Artur é o protagonista Imagem: Domínio público

Por volta de 830, um monge chamado Nênio descreveu a saga de um guerreiro chamado Artur, que liderou 12 vitórias contra os saxões.

Ou seja, há 1.500 anos já se fala num certo Artur. Mas foi a obra de Geoffrey, no século 12, que lhe deu outra dimensão - e muita gente comprou a história.

Em 1191, os monges da Abadia de Glastonbury desenterraram dois esqueletos e decidiram que eram os restos do rei Artur e de sua esposa, a rainha Guinevere, só para atrair visitantes crédulos. Em 1233, o conde Ricardo da Cornualha fez um negócio arriscado. Trocou três propriedades por Tintagel, um pequeno promontório, sem árvores, separado da Grã-Bretanha por um istmo. Um local sem função estratégica, remoto, mas que, para ele, teria importância política.

Convencido de que Artur teria reinado a partir daquelas ruínas 700 anos antes, Ricardo ergueu ali um castelo, a fim de se portar como descendente direto do mítico rei.

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Rei Artur em uma ilustração do século 15, da versão em galês da obra de Godofredo de Monmouth
Rei Artur em uma ilustração do século 15, da versão em galês da obra de Godofredo de Monmouth Imagem: National Library of Wales

Mas o que havia antes em Tintagel?

Quando o domínio romano sobre a Grã-Bretanha acabou no século 5º d.C., o caos reinou. A economia entrou em colapso, as instituições evaporaram, fome e violência ocupavam o dia a dia das pessoas. Os saxões, povo germânico que invadiu a Grã-Bretanha, provocou a fragmentação do país em feudos dominados por homens igualmente brutos e violentos.

Mas havia um ou outro lugar próspero. Segundo arqueólogos que trabalharam em Tintagel na década passada e descobriram muitos itens de luxo do Mediterrâneo e da África, o local teria sido, no século 6º, um porto importante, protegido da costa. Era uma fortaleza relativamente pujante, com uma elite mercantil que podia governar milhares de pessoas e controlar um bom naco da Cornualha.

Não seria implausível que essa sociedade tivesse algum líder memorável. Alguém chamado Artur, como indicaria a marca em uma pedra, insistem os mais fiéis à lenda.

Como o mito cresceu

A jornada do rei podia ser modulada de acordo com a agenda política de quem a narrava. O monge Nênio queria um herói para enfrentar os invasores infiéis saxões, então Artur tinha o apoio de Jesus e de Maria em sua luta justa contra os selvagens. Além disso, na versão de Nênio, Artur devia seu nome a um vitorioso general romano, o que estreitaria os laços com o antigo império.

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No tempo de Geoffrey, quando as invasões de anglos e saxões estava no passado e eles já faziam parte da população da Grã-Bretanha, Artur foi transformado em um rei celta. Isso serviria para demonstrar a superioridade dos bretões (um dos povos celtas) em relação aos outros habitantes da ilha.

Além disso, desde o princípio, Artur serviu como um legitimador para as famílias reais. A dinastia Tudor, por exemplo, que assumiu o poder no fim do século 15, se dizia descendente direta dele.

Merlin, conselheiro de Artur, em ilustração de 1300
Merlin, conselheiro de Artur, em ilustração de 1300 Imagem: Domínio público

Mais importante ainda, a história tinha apelo. Geoffrey introduziu elementos que fazem parte até hoje do enredo, como o mago Merlin (inspirado em antigos profetas galeses), uma espada mágica e a terra mítica de Avalon.

Era uma lenda que conquistava multidões. Mosteiros e bibliotecas reais pela Europa tinham cerca de mil cópias do manuscrito, um feito enorme em tempos pré-imprensa. Segundo a revista dos museus Smithsonian, o texto de Geoffrey era o mais famoso da Idade Média, atrás apenas da Bíblia.

Versões posteriores deixaram o universo mais rico e adicionaram os Cavaleiros da Távola Redonda e o triângulo amoroso em que Artur e Guinevere se metem. A espada mágica ganhou um nome, Excalibur, e uma história própria, presenteada a Artur pela Dama do Lago. Algumas versões dizem que é a mesma espada encravada na pedra, mas outras, mais tradicionais, as tratam como armas diferentes.

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O mais importante desses autores que incrementaram o folclore arturiano foi o poeta francês Chrétien de Troyes. No século 12, ele adicionou à lenda sir Lancelot, o santo graal e o reino de Camelot.

Cem anos mais tarde, a história era contada da Itália à Alemanha. Os manuscritos eram tão populares que acabavam reciclados, servindo para embalar tortas, por exemplo, o que dá uma dimensão de como esses contos es espalhavam.

Com personagens com falhas, mais próximos do público, aventuras épicas e uma linha narrativa que podia ser aproveitada ao sabor dos ventos políticos, a lenda do Rei Artur atravessou o tempo, contada e recontada desde os poemas galeses de 15 séculos atrás até filmes como "A Lenda do Cavaleiro Verde" (2021), inspirada em Gauvain, um dos Cavaleiros da Távola Redonda. O apelo resiste.

As pessoas reais que podem ter inspirado o mito

No século 20, havia algum debate entre historiadores se Artur teria sido alguém de verdade ou não. Atualmente, o consenso entre especialistas é de que se trata de algo 100% fictício.

Ambrósio Aureliano
Ambrósio Aureliano Imagem: National Library of Wales
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Mas alguns personagens históricos podem ter servido de inspiração para o surgimento da lenda. Entre eles estão Ambrósio Aureliano, guerreiro que liderou a Bretanha romana contra os saxões no século 5º d.C., e Riotamo, outro guerreiro da Bretanha romana do século 5º, mas que lutou ao lado dos gauleses contra os godos.

A popularidade da lenda se explica por seus atributos narrativos. Mas a persistência do mito de um Rei Artur real cai naquilo que o arqueólogo Francis Pryor diz no livro "Britain AD: A Quest for Arthur, England and the Anglo-Saxons" (sem edição brasileira). Provar a inexistência é tão difícil quanto provar a existência. A ciência já não perde tempo com algo tão claramente fictício.

Segundo um artigo da publicação acadêmica "Comitatus", dedicada a estudos da Idade Média e do Renascimento, o realismo do Rei Artur está banido das universidades e centros de pesquisa. Vive apenas onde a ficção pode brilhar: livros para o público geral, filmes, videogames e qualquer outra mídia em que o mítico guerreiro desfila suas histórias mirabolantes.

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