Brasileiro vai ao local da tragédia de 'Sociedade da Neve': 'É inóspito'
De Nossa, em São Paulo
20/01/2024 04h02Atualizada em 14/02/2024 14h55
O editor de livros Maurício Decker, 48, cresceu imerso nas histórias do Old Christians, clube uruguaio de rugby que sofreu um acidente em 1972 na Cordilheira dos Andes, cuja história é contada em "Sociedade da Neve" (Netflix). Quando a tragédia completou 50 anos, Decker decidiu prestar uma homenagem às vítimas e sobreviventes em uma viagem de cerca de 2 mil quilômetros até os destroços do avião.
Partindo de Montevidéu, da casa de Roberto Canessa, um dos sobreviventes, Decker atravessou rios e montanhas para chegar ao Vale das Lágrimas, onde ocorreu o acidente, em uma viagem que durou cerca de três semanas.
Quando fiquei solitário no Vale das Lágrimas, entendi o lugar que eles caíram. Até o último rio antes de chegar lá, você vê lagartixas, passarinhos, mas quando você cruza ele e vai se aproximando ao local onde o avião caiu, realmente não existe vida nenhuma. Fui no verão e já é assim, fiquei imaginando como seria no inverno.
Maurício Decker, 48, editor de livros e cicloviajante
A origem da viagem
Ele conheceu a história dos sobreviventes do Old Christians quando tinha 16 anos. "Meus pais eram professores e tinham uma biblioteca em casa. Meu pai tinha o livro 'Sobreviventes', que falava dessa tragédia. Li e fiquei impressionado com tudo. Já viajava bastante pela América do Sul de bicicleta e sou montanhista, então, quando a data dos 50 anos foi se aproximando, planejei fazer essa homenagem."
Ele fez uma camiseta para os sobreviventes e para o chileno que ajudou a resgatá-los. "Mandei confeccionar camisetas com a mesma diagramação do time de rugby deles. Fiz uma para o Roberto Canessa e outro para o Nando Parrado, com o nome deles e o número 16, que indica a quantidade de pessoas que sobreviveram graças ao esforço deles, que saíram caminhando para buscar ajuda. Também fiz para a família do Sérgio Catalán [morto em 2020], que foi quem encontrou eles e uma para deixar na tumba, com o número de mortos, 29. Além disso, tinham duas comigo para usar na viagem."
Entrando em contato com Canessa
Antes de sair, Decker fez muitas pesquisas sobre o trajeto. "Sabia que havia grupos que iam a cavalo ou por peregrinação, mas queria fazer solitário. Fui me informando sobre como era possível: com os horários de degelo dos rios, a altitude, o clima, o quanto deveria levar de comida e muito mais coisas."
E nisso encontrou um conhecido de Canessa. "Vi que havia um cara de Chapecó que tinha feito o trajeto até lá. Ele tinha perdido muitos amigos na tragédia da Chapecoense e o Canessa foi muito solidário com as vítimas e amigos. Quando soube que ele conhecia o Canessa, pedi para ele intermediar o nosso contato."
Durante uma viagem, Decker fez um desvio para conhecer o sobrevivente. "Estava em uma viagem de carro com o meu sobrinho pela Argentina e pensei em passar no Uruguai. Mandei uma mensagem para o Canessa e ele me ligou logo em seguida, me convidando para visitá-lo. Ele ainda mora no mesmo bairro de quando aconteceu a tragédia."
Estar na casa dele como convidado foi uma experiência transcendental. Não perguntei muito sobre o acidente porque é algo já muito documentado. Falamos de mais coisas pessoais e ele me contou que o mais difícil da história foi o momento da avalanche, que sepultou todo mundo.
Maurício Decker, 48, editor de livros e cicloviajante
Depois desse encontro, Decker voltou para o Brasil e decidiu começar a viagem saindo da casa de Canessa. "Saí no dia 21 de fevereiro de 2022. Determinar que sairia de lá foi uma coisa simbólica."
Como foi a viagem
Ele tinha um prazo para chegar ao local do acidente para não enfrentar surpresas climáticas. "Tinha que chegar antes que viessem as grandes nevascas. Assim, poderia entrar com segurança. Fiz um cronograma de pedalar 100 km por dia. Alguns dias fiz mais, como 150 km. Além da bicicleta, carregava uma mochila de 15 kg."
Canessa deu um conselho que ele levou durante todo o trajeto. "Antes de sair, pedi algumas dicas para o Canessa e uma coisa preciosa que ele falou é que na natureza não se dá combate. Temos que ser amigos dela. Toda vez que um vento forte me agarrava ou até na cordilheira, quando eu estava muito sozinho, me lembrava dele. Era como se ele estivesse me guiando."
Decker contou com o apoio de muitas pessoas na estrada. "Um dia furei o pneu e encontrei uma senhora na beira da estrada, vendendo frutas. Quando ela viu a camiseta e perguntou o que se tratava, começamos a conversar. Ela pediu para eu dar um abraço a um amigo dela em uma vila seguinte, que não via há muito tempo. Quando cheguei lá perguntando por ele, ele me ofereceu uma janta por cortesia e, depois, fez uma carta de recomendação para um guia que estava no acampamento que serve de base para subir ao local do acidente. Esse homem tinha a concessão desse lugar e pediu ao guia que me recebesse. Cheguei lá e tinham tábuas de queijo, arroz carreteiro, fui tratado como um rei. Tudo por cortesia."
Foram três dias de caminhada, ida e volta. "Deixei minha bicicleta no acampamento e subi com a mochila de 15 kg. Fui cruzando os rios de degelo. Tinha que ser cedo porque depois a correnteza fica muito forte e rolam pedras enormes. Sabia onde poderia beber água porque ali também tem rios com substâncias químicas ricas em enxofre, por exemplo, que não dá para tomar. Estava já aclimatado com a altitude então isso não foi um problema. Fazia muito calor, mas à noite, a temperatura pode chegar a ser negativa."
Não dá para dimensionar nada à distância. "No filme da Netflix mostra uma cena na qual o pessoal sobe um pouco na montanha e não é mais possível enxergar os destroços do avião. E é exatamente assim. Estava a pouca distância da cruz onde estão as pessoas enterradas e já não conseguia vê-la. A proporção das montanhas é tão grandiosa que você se perde um pouco com a dimensão das coisas. Uma pedra que parece pequena e distante, quando você se aproxima, percebe que é do tamanho de uma casa de dois andares."
Ao chegar no cume, Decker viu ainda destroços do avião. "Tem pedaços de janela, de motor, trem de pouso. Queria dormir ali, mas o guia não recomendou. Disse que tempos antes, um grupo acampou por lá para fazer um documentário e bateu um vento tão forte que levou a barraca, com os equipamentos de cinema e uma pessoa dentro. Achei prudente desistir dessa ideia. Ali é um lugar que não é para o ser humano estar. É inóspito mesmo."
O retorno
Na volta, ele passou pelo maior perrengue da viagem, quase ficando ilhado nas montanhas. "Lá, os rios mudam muito. O rio que subi quando cheguei já não era mais o mesmo na volta. Na descida, já tinham vários braços e não conseguia achar a saída para o outro lado porque ele é muito longo e com correnteza forte. Fiquei preso e decidi ir saltando até a parte mais rasa. Joguei minha mochila para o outro lado, mas a força do vento fez ela cair no rio e com a correnteza, ela começou a andar. Estavam todos os meus pertences, incluindo comida."
Mas ele conseguiu recuperar tudo e sair de lá. "Fiquei nervoso porque estava sem casaco. Se fosse pernoitar ali, morreria de frio. Acompanhei a correnteza torcendo para um redemoinho trazer a mochila de volta para a margem e isso aconteceu. Como estava vento e sol, estendi tudo e fiquei 1h esperando para secar e seguir viagem."
Ele retornou no dia 15 de março e desde então mantém contato com Roberto Canessa. "Retornei de avião para o Brasil. Queria ir ao Chile entregar em mãos a camiseta para a família do Sérgio Catalán (primeira pessoa a encontrar com sobreviventes da tragédia), mas como tinha que pedir solicitação de entrada no país muitos dias antes, devido às restrições da covid-19, não consegui. Mas todos os sobreviventes ficaram sabendo da minha viagem e ficaram muito tocados com a homenagem."