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Uma viagem por todos os contrastes de Puglia, o 'salto da bota' da Itália

Porto de Molfetta Imagem: Anelise Sanchez

Anelise Sanchez

Colaboração para Nossa

31/01/2024 04h05Atualizada em 31/01/2024 12h18

Os brasileiros aprenderam rápido que a Puglia, o "salto da bota" da Itália, merecia ser incluída em um roteiro de viagem pelo país. Metas como Polignano a Mare ou os "trulli" de Alberobello, na província de Bari, viralizaram nas redes sociais e durante o verão ficam lotadas.

O que muitos ainda não sabem é que essa região do sul do país é uma terra plural e, por isso, dificilmente classificável com um único adjetivo. Existe mais de uma Puglia dentro da Puglia. Nossa viajou por cidades menos frequentadas por turistas e faz aqui um relato com todas as dicas.

São lugares que podem ser visitados o ano inteiro, não ligados exclusivamente ao turismo de veraneio e unidos em um roteiro que mescla história, cultura, praias e belezas naturais das províncias de Bari e Barletta-Andria-Trani, além do Salento, o "rosto" mais eclético e miscigenado da Puglia.

Cores e contrastes

Imagem: iStock

E é por Salento que começa essa viagem. Nessa parte da Itália existem cidades de onde, em dias límpidos, é possível avistar a Albânia, e vilarejos onde ainda se fala orgulhosamente um dialeto neogrego chamado de grico.

No Salento não há espaço para cores ou sentimentos desbotados. A terra pode ser vermelha intenso, como aquela da pedreira de bauxita de Otranto. O branco das igrejas barrocas chega a ofuscar a vista. O cheiro do pescado que desembarca no porto invade as narinas.

Dança folclórica apuliana chamada pizzica ou taranta na rua de verão de Lecce Imagem: iStock

A música ritmada da "pizzica", uma dança popular que é quase um ritual, não deixa ninguém indiferente e chega a se transformar em catarse coletiva. Ela surgiu do tarantismo, uma crença segundo à qual as pessoas picadas por tarântulas, o que acontecia principalmente durante a colheita do trigo, poderiam se curar dançando freneticamente, quase entrando em transe.

Como chegar a Salento

Torre di Sant'Andrea Imagem: Anelise Sanchez

Indo do Brasil para Roma ou Milão, para ir até o Salento a melhor opção é pegar um voo interno até Brindisi e alugar um carro no aeroporto, já que a Puglia é extensa e as distâncias entre uma província e outra podem ser consideráveis.

As companhias que cobrem esse trajeto são a ITA e Ryanair, com voos que custam, em média, entre 36 e 88 euros (só ida). De Milão até Brindisi o voo dura aproximadamente 1h40. De Roma, cerca de uma hora.

Grotta della Poesia nos arredores de Otranto Imagem: Anelise Sanchez

Esse roteiro parte de Brindisi, seguindo inicialmente até Lecce para chegar ao extremo sul da região, em Santa Maria di Leuca. Na volta, segue rumo ao norte, voltando na direção da capital da Puglia, Bari, até as salinas de Margherita di Savoia.

De Bari, existem várias opções de voos diretos para Roma ou Milão, ou então é possível pegar um trem rápido (FrecciaRossa da Trenitalia) que chega até a cidade eterna em cerca de quatro horas, ou da companhia Italo Treno, que percorre o mesmo percurso em 4h20.

Primeira parada: Lecce

Anfiteatro Romano em Lecce Imagem: Anelise Sanchez

A primeira etapa da viagem até o Salento é Lecce, originariamente uma colônia grega e, mais tarde, um importante centro do império romano. Aqui, a arquitetura fala mais alto, já que Lecce é a máxima expressão do barroco no sul da Itália, que teve seu apogeu no século 17.

A riqueza de detalhes na decoração de seus palácios, edifícios públicos e igrejas é explicada pelo material usado pelos escultores da época, a chamada pietra leccese, facilmente modelável.

Giuseppe Zimbalo, também conhecido como Lo Zingarello, é um nome que você ouvirá com frequência em Lecce, já que ele foi o grande expoente desse estilo considerado quase redundante por alguns. A igreja Chiesa del Rosario, de 1691, é considerada sua obra mais importante, além do palácio episcopal que decora a Piazza Duomo e a igreja de Santa Croce.

Detalhes barroco em Lecce Imagem: Anelise Sanchez

Outras atrações de Lecce são: a coluna Sant'Oronzo, padroeiro da cidade, e o anfiteatro romano do século 1 a.C. Se tiver pouco tempo, suba na torre do Duomo, o ponto mais alto da cidade (43 metros), para contemplar uma vista panorâmica da cidade, do mar Adriático e até do litoral albanês. Os ingressos custam 12 euros e cada turno dura 20 minutos. Consulte a programação completa no site www.chieselecce.it.

Antes de ir embora não deixe de provar o clássico caffè leccese, à base de leite de amêndoas e gelo, quem sabe no Caffé Alvino (Piazza Sant'Oronzo). Para os amantes de praias, vale a pena saber que a cerca de 40 km do centro histórico de Lecce fica Punta Prosciutto, uma das mais belas de todo o Salento.

Igreja em Galatina

Detalhes basilica em Galatina Imagem: Anelise Sanchez

No meio do caminho entre Lecce e Otranto, faça uma parada em Galatina, onde fica aquela que é considerada a Capela Sistina do Salento, a Basilica di Santa Caterina d'Alessandria.

O templo é riquíssimo de afrescos e mescla diversos estilos arquitetônicos como o românico, o gótico, normando e bizantino.

Otranto, a base para explorar Salento

Imagem: Anelise Sanchez

Otranto sempre foi um dos portos mais importantes de comércio com a Ásia Menor e a Grécia e o próprio nome da cidade deriva de duas palavras gregas que significam "água" e "monte".

Para provar a Puglia autêntica hospede-se em uma masseria, antiga fazenda ou conjunto de edifícios rurais construídos entre os séculos 16 e 18 e transformados em refinadas estruturas hoteleiras. A combinação perfeita entre cultura camponesa, requinte e gastronomia de primeira.

Sala da Masseria Montelauro Imagem: Anelise Sanchez

Nos arredores de Otranto, eu me hospedei na Masseria Montelauro. A masseria é circundada por oliveiras e amendoeiras, tem uma piscina, pergolados sob glicínias onde você pode relaxar e quartos de decoração minimalista, mas arquitetura típica pugliese, como arcos realizados com a pietra leccese e pavimentação com pedras antigas e artesanais.

Outra atração de Otranto é o seu castelo aragonês. O domínio bizantino está evidente em suas muralhas e na arquitetura da pequena Basílica di San Pietro. A história do lugar é bastante conturbada. Em 1480, Otranto foi atacada pelos turcos, que dizimaram a população local.

Somente 800 pessoas sobreviveram e a elas foi oferecida a liberdade em troca da renúncia ao cristianismo. Elas não aceitaram, foram decapitadas e as relíquias dos 800 mártires ficam no Duomo, um dos mais belos de toda a Itália. Não deixe de observar seus mosaicos de 1166, composto por mais de 600 mil peças e um dos mais bem preservados de toda a Europa.

Duomo de Otranto Imagem: Anelise Sanchez

Antes de partir, passe pela doceria Alessandro Merola e prove o famoso pasticciotto, um doce bem fofinho, recheado de creme e assado no forno, que é um dos emblemas do Salento.

Praias e água cristalina

Os arredores de Otranto esbanja belas praias, várias delas mais selvagens, menos urbanizadas, como é o caso da Baia delle Orte, frequentada pelos locais. O lugar também é ideal para quem gosta de snorkeling.

Baia di Santo Stefano Imagem: Anelise Sanchez

Outros lugares imperdíveis são: a Grotta della Poesia, considerada uma das piscinas naturais mais fascinantes do mundo, Torre Sant'Andrea, com suas águas com diversos tons de azul turquesa e picos rochosos, e a Baia di Santo Stefano, onde é frequente encontrar pescadores.

Se você prefere praias mais movimentadas, uma boa pedida é a Baia dei Turchi, um pouco escondida porque para chegar lá precisa percorrer um bosque a pé.

Paisagem insólita

Farol de Punta Palascia Imagem: Anelise Sanchez

Ainda em Otranto, na chamada Baia delle Orte, fica o farol de Punta Palascia, o ponto mais ao leste da costa. Cerca de 72 quilômetros o separam da Albânia e é ali que nasce o sol na Itália, antes de qualquer outro lugar.

Para chegar até lá é preciso percorrer um agradável percurso de trekking com vista para o mar que une o farol a uma pedreira de bauxita, facilmente reconhecível pela terra vermelha característica e por um lago de cor verde esmeralda. Uma combinação que cria uma paisagem insólita, que a gente não espera encontrar na Itália.

Na verdade, se trata de um tesouro da arqueologia minerária, já que ali, durante décadas (de 1940 até 1976), foi extraído um dos elementos que compõem o alumínio, a bauxita. A cor de ferrugem é o resultado da presença de óxidos e hidróxidos de ferro e alumínio no terreno.

Pedreira de bauxita Imagem: Anelise Sanchez

Já o lago se formou depois que a pedreira foi abandonada porque era pouco rentável, graças a infiltrações de água do lençol freático presente na região.

Santa Maria di Leuca

De Otranto, é preciso percorrer cerca de 60 quilômetros para se dar conta de que você está chegando ao extremo sul do salto da Itália, Santa Maria di Leuca. Ali onde o mar Adriático encontra o Jônio a sensação que temos é a de que chegamos à Grécia.

Gruta em Santa Maria di Leuca Imagem: Anelise Sanchez

Leuca é o local ideal para quem quer fugir da agitação, mas quer apreciar as belezas da Puglia. A melhor maneira de fazer isso é com um passeio de barco. Você poderá contemplar o Farol de Punta Meliso, o lugar exato que separa o mar Adriático do Jônio, e nadar nas belíssimas grutas com águas cristalinas. Uma das mais belas é a Grotta Verdusella.

Para reservar um passeio de barco, consulte o site das empresas Colaci Nautica (www.colacinautica.it) ou Leuca Explorer (www.leucaexplorer.it) para ver os valores e as datas disponíveis.

Rumo ao norte: Bari

Chegou a hora de retornar na direção norte, dirigindo até Bari, a vibrante capital da Puglia, por cerca de 233 quilômetros. Não descarte passar pelo menos um dia nesta cidade que está se transformando rapidamente e cujo centro histórico (Bari Vecchia) soube conquistar os turistas do mundo todo nos últimos anos.

Senhora Nunzia prepara orecchiette em Bari Imagem: Anelise Sanchez

Passear por suas ruas para provar a focaccia do Panificio Fiore, fotografar as senhoras que preparam o macarrão tipo orecchiette na frente de suas casas na Via di Arco Basso, sentir a emoção dos devotos locais na catedral dedicada à San Nicola, pedalar percorrendo o seu lungomare ou explorar as lojas dos artesãos na Piazza del Ferrarese são experiências que vão estimular os seus cinco sentidos.

A empresa Velo Service oferece passeios guiados.

Molfetta

A menos de 35 quilômetros de Bari, uma bela surpresa é Molfetta, uma cidade onde existe uma forte simbiose entre seus habitantes e o mar. Um de seus palácios de maior prestígio, um antigo seminário que já foi sede da alfândega marítima local, hoje abriga um hotel de luxo (Dogana Resort) com vista para o porto e ao lado do belíssimo Duomo.

Mercado peixes em Molfetta Imagem: Anelise Sanchez

Ali, logo cedo, a gente cruza com os pescadores que chegam no porto com o próprio pescado e nos estaleiros navais é possível encontrar os últimos artesãos idosos que constroem manualmente grandes embarcações, os chamados maestri d'ascia.

Ainda hoje existe o costume de inserir uma imagem de Cristo na popa, antes que ela seja coberta pela madeira, e uma da Madonna dei Martiri na proa.

Museo del mare cidade Molfetta Imagem: Anelise Sanchez

Para descobrir essas e outras tradições, visite o Museo Etnografico del Mare (Via San Domenico) e a sede da associação Il Popolo Granchio, que periodicamente organiza mostras que narram os costumes locais.

Em seu centro histórico, não perca a biblioteca diocesana do seminário Vescovile, que te deixará boquiaberto com seus afrescos, e a vista do alto do Torrione Passari, construída para proteger militarmente a cidade de eventuais ataques marítimos e hoje um complexo residencial e expositivo.

Catedral de Trani Imagem: Anelise Sanchez

Trani

De Molfetta, percorrendo cerca de 20 quilômetros se chega à Trani, onde a principal atração é o seu branquíssimo Duomo, construído em pedra calcária. Erguida a partir de 1159, a catedral é dedicada a santo milagroso chamado São Nicolau o Pegregino.

Impossível resistir à tentação de uma foto diante de sua fachada branquíssima e de seu portão de bronze, emoldurado pelo azul intenso do mar. Uma outra bela experiência é chegar ao antigo bairro judaico que abriga a Sinagoga Scola Nova, no passado também usada como igreja.

Margherita di Savoia

Margherita di Savoia, que leva o nome da rainha homônima, a primeira first lady da Itália unida, é a cidade que não existia. Isso porque até 1879 ela era chamada Saline di Barletta, em alusão à atividade de extração do sal que sempre foi o ganha-pão de gerações.

Antes, ela era um punhado de casas de palha ao redor de 20 quilômetros de salinas onde trabalhavam famílias inteiras, mas somente os homens eram remunerados. As mães, para proteger as crianças descalças, inventavam uma sola de sapato com a argila seca grudada nos pés.

Salinas de Margherita di Savoia Imagem: Anelise Sanchez

Muitos trabalhadores ficaram cegos com o reflexo da luz no branco ofuscante das salinas. Para contribuir com a renda familiar, mulheres podiam esconder um punhado de sal nos seios, sujeitando-se a frequentes queimaduras.

Essas e outras histórias são contadas no Museo Storico della Salina (Corso Vittorio Emanuele, 99) que, apesar de pequeno e de não contar com o auxílio de dispositivos multimídia, é eloquente porque nos lembra que aquele que hoje é um ingrediente que consideramos secundário, o sal, já foi moeda de troca.

Os soldados das legiões romanas podiam ser pagos com porções de sal, as Salarium Argentum, e foi esse pagamento em sal que deu origem à palavra salário.

Depois do museu, a experiência continua com uma visita às extensas salinas, hoje reserva natural e local habitado por centenas de flamingos, onde é possível praticar o bird watching. Um passeio ideal no final da tarde, com o pôr do sol. Para reservas: info@museosalina.it ou prolocomargherita@gmail.com.

No final desse roteiro, de volta para casa, a Puglia deixará saudade e ocupará um lugar entre as metas para as quais você precisa voltar.

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