Até ameaça de morte: a vida de quem ganha para avaliar hotel e restaurante
Trabalhar avaliando restaurantes e até hotéis diariamente parece o trabalho dos sonhos. Quem nunca quis comer ou dormir de graça em locais considerados os melhores do mundo e ainda receber por isso?!
Essa profissão ficou popularmente conhecida como cliente oculto ou mystery shopper.
Ser um cliente oculto consiste em ir até determinados lugares e agir como um cliente convencional, mas dando nota para tudo. Mesmo parecendo divertido, a função não deixa de ser um trabalho e exige muito comprometimento.
Isabele Ferreira, 40, turismóloga, trabalhou dez anos atrás como cliente oculto em Madri, na Espanha. Ela encontrou a vaga fazendo pesquisas no Google, se candidatou e foi aprovada.
Isabele atuava avaliando restaurantes e lojas de luxo e, em troca, recebia valores para utilizar em uma loja grande de eletrodomésticos na cidade.
Mesmo não pagando bem naquela época, a brasileira diz que servia para fazer uma renda extra e economizar com algumas compras. "Eles pagavam 5 euros por cada visita mais o reembolso de todos os gastos. Eu precisava pagar com antecedência e depois levar o tíquete para eles reembolsarem", relembra.
Ela avaliou centenas de restaurantes e conta que alguns chegaram a suspeitar que ela estava ali dando nota para o espaço.
Por mais que seja muito discreto, uma vez um funcionário perguntou se eu era mistery shopper, por que não era comum uma pessoa sozinha, ainda mais mulher, comer um prato de entrada mais um prato principal mais uma sobremesa. Isabele Ferreira
A rotina incluía comer fora todo dia e avaliar diversos lugares pelos bairros da capital espanhola.
Avaliação minuciosa
Embora não recebesse nenhum treinamento para avaliar cada restaurante ou loja, ela tinha que usar uma lista de itens e não se esquecer de que estava ali a trabalho.
Era preciso seguir à risca um formulário com instruções criteriosas para cada restaurante, tais como:
Cronometrar o tempo que os garçons disponibilizavam assentos ao cliente;
Cronometrar também o tempo que o garçom demorava para atender;
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Quero receberContar o tempo que a comida demorava a chegar e para os pratos serem retirados da mesa;
Avaliar se o local estava limpo;
Verificar se o garçom oferecia pratos de comidas adicionais e se oferecia "cartão fidelidade", caso o restaurante tivesse;
Era necessário verificar se havia banner de promoção vigente, no momento da visita.
Nas lojas de luxo, a abordagem era um pouco diferente. Ela precisava ir com roupas normais, sem chamar atenção, e observar se alguém a atendia de forma adequada, sorrindo e sem nenhum tipo de discriminação.
Além disso, era necessário escolher um produto, que podia ser uma bolsa, carteira ou outra peça, e fazer perguntas. "Era importante fazer perguntas para saber se o vendedor ia falar informações sobre o material que era feito e outros", diz.
Com relação ao valor, ela precisava avaliar a resposta da vendedora, analisando se ela adicionava informações que agregassem o produto, por exemplo "custa 12 mil euros porque é um peça de coleção, fabricada artesanalmente, peça exclusiva e olha esses detalhes".
Como não podia revelar sua verdadeira identidade, ela tinha que se mostrar bem natural quando as vendedoras falavam sobre o preço dos produtos. O mais chocante, segundo ela, foi realmente saber que uma bolsa custava 12 mil euros e que ainda tinha fila de espera para comprá-la. "Tive que manter a calma e fazer cara de normalidade", relembra.
Em relação aos restaurantes, por incrível que pareça, comer todo dia fora de casa enjoa e a comida caseira fazia falta, conta Isabele. Foi justamente por isso que ela deixou o trabalho como cliente oculto.
"Saí porque chega uma hora que cansa almoçar e jantar todos os dias em um restaurante, fora que algumas vezes eu cheguei a passar mal de tanta comida que precisava consumir. Fiz por um ano para ganhar uma grana extra, mas não faria mais dessa maneira diária como antes. Quanto às lojas de luxo, essas são muito raramente", diz.
Até ameaça de morte
O cliente oculto Marcus (ele se apresenta apenas com o primeiro nome) trabalha avaliando restaurantes há mais de uma década. A paixão pela gastronomia começou em um blog no passado, e depois evoluiu para avaliação de restaurantes.
Ele conta que estudou muitas finalizações de pratos e começou a se especializar nessa área para escrever as críticas. Hoje, o empresário tem um Instagram (@gastronomium) com mais de 126 mil seguidores e sempre posta avaliações isentas e sem qualquer publicidade.
Inclusive, segundo ele, é o que o diferencia de outros críticos ou influencers, já que ele não ganha um real com a prática. Além disso, trabalhar fazendo críticas ou até como cliente oculto nesse segmento exige uma série de cuidados, além de muita imparcialidade.
Sempre levo em consideração o custo-benefício. Isso até para um boteco de esquina. Se vou em um restaurante premiado, que a pessoa vai me cobrar R$ 200 em um prato, vou avaliar com critérios mais duros. Marcus
Como ao longo desses anos ele já visitou centenas de restaurantes, o cliente oculto já vivenciou de tudo. Inclusive ameaças de morte.
Segundo Marcus, há chefs que não gostam de receber críticas e, mesmo sem se identificar com frequência (ele troca o nome na hora de reservar um restaurante), há quem saiba quem é ele e passa a escrever mensagens de ódio.
"Já falei mal de restaurante a ponto de me ameaçarem de morte. Sempre tem um chef meio bravo. São pessoas que não aceitam críticas. Mexe com o ego e ninguém gosta de ser criticado", diz.
Ao longo dos anos, ele já provou de tudo, desde cérebro até risoto de sangue. Por isso, na hora das visitas, além do valor, Marcus também considera a construção de sabores e paladar.
E mesmo visitando estabelecimentos de diversos níveis, desde o cinco estrelas até o mais simples, ele conta que é muito comum lugares renomados e de chefs televisivos deixarem a desejar.
"Uma vez visitei um restaurante de um participante de reality e peguei um tufo de cabelo na comida. Era um tufo em prato de mexilhão", conta. Mesmo com esse imprevisto, ele conta é raro isso acontecer e que o mais comum é comer mal.
E ele ainda revela o melhor restaurante que já visitou até agora: The French Laundry, na Califórnia (EUA), com menu que varia de US$ 400 a US$ 500 por pessoa.
Resort cinco estrelas com tudo pago
Ana (@euclienteoculto) trabalha para a empresa "Seu Cliente Oculto" há alguns anos e, no passado, começou o trabalho avaliando supermercados. Na época, o intuito era ter uma renda extra e ver se a oportunidade ia pra frente.
Hoje, ela analisa diversos segmentos e um dos que mais ama fazer são os hotéis. Mas, mesmo parecendo o trabalho perfeito, ela conta que não é fácil. "É um trabalho. As pessoas confundem renda extra com renda fácil", diz.
Uma vez atuou como cliente oculto avaliando um resort cinco estrelas, podendo ficar dois dias, com o marido e os filhos. O trabalho já começava logo na entrada, analisando a abordagem dos carregadores de mala, mensageiro, recepcionistas e outros. "Tinha que analisar o atendimento do início ao fim e tinha algumas palavras que ele devia falar dessa rede", diz.
Ela também testou serviços de lavanderia e até limpeza de pele. E foi nesta última que a avaliação foi criteriosa. A profissional ofereceu um produto a ela, sem que outras pessoas soubessem, e a cliente oculto reportou na avaliação.
Tem um mito de que é para pessoa ser mandada embora, mas eu vejo como aperfeiçoamento. Se a pessoa fez algo ilícito, vai ser mandada embora. Caso contrário, não. Ana
À ocasião, ela também achou uma garrafa de bebida alcoólica vazia dentro do guarda-roupa do quarto.
No mesmo hotel, ela ainda acrescentou que uma funcionária sofreu assédio e como a hospedagem deveria agir nesses casos. "Ela estava servindo bebida para um grupo de homens e eles começaram a falar gracinhas. Em vez de voltar um homem para servi-los, a mulher continuou lá. Reportei isso na avaliação", recorda.
Ana ainda reforça que todas as avaliações precisam ser imparciais e que ela sempre foca no atendimento e na oferta de produtos.
Quando precisou avaliar um hotel com menos estrelas e um pouco mais simples, a falta de higiene deixou a desejar. "Tinha muito mosquito na hora do café da manhã. A vidraça estava suja. E a jacuzzi era por horário, mas em vez de trocarem a água na hora do uso, só jogavam um produto de limpeza. Ou seja, eu ia usar e entrar na mesma água que uma outra pessoa utilizou", diz.
Como ela mesma brinca, trabalhar como cliente oculto é para gente chata, que vai pegar todos os problemas, inclusive os mínimos detalhes. "Você precisa passar as informações verdadeiras, preencher o questionário, não pode ter achismos", conta.
Quer ser um cliente oculto?
A profissão vem ganhando adeptos há anos no Brasil e pode ser uma fonte de renda extra para quem está precisando de um dinheiro a mais. Segundo Ana, em cidades pequenas, o serviço não compensa, e o ideal é começar em locais com, pelo menos, 750 mil habitantes.
Já em cidades e estados maiores, ser um cliente oculto pode ser a principal fonte de renda, principalmente se a pessoa tem disponibilidade. "Conheço pessoas que conseguem tirar R$ 4.000, R$ 5.000 se dedicando integralmente", diz.
Quando não há tempo de sobra, o trabalho pode render de R$ 400 até R$ 2.000, sempre levando em consideração o segmento de atuação e as horas disponíveis para o trabalho. Geralmente, os serviços levam de meia a quatro horas, ou dias, como foi feito no resort em que se hospedou com os familiares.
Hoje, ela tem sua própria lavanderia e diz que aplica todos os aprendizados como cliente oculto em seu estabelecimento.
Mas é preciso ter calma e persistência, pois não é na primeira vez que a pessoa vai conseguir a oportunidade. É importante se inscrever nas empresas e aplicar para as vagas. Depois disso, as propostas começam a aparecer mais.
Os principais sites para trabalhar como cliente oculto ou mystery shopper aqui no Brasil são:
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