Pratos 'levanta defunto' curam ressaca de foliões no Carnaval Brasil afora

A expressão "comida de Carnaval" muda bastante conforme o ponto de vista. Nesses dias de calor, canseira e excessos, médicos e nutricionistas sempre batem na tecla dos pratos leves, de fácil digestão, com proteínas magras e muitos vegetais.

Mas basta pesquisar as receitas tradicionais que a folia eternizou Brasil afora para compreender que, na opinião do povão, comida de Carnaval é aquela que dá sustança, mata a fome e combate a ressaca, estilo "levanta defunto" — de preferência, que não dê muito trabalho nem tome muito tempo.

"São receitas revigorantes, que forram o estômago, capazes de deixar o folião bem alimentado por mais tempo, já que ele vai dançar ou caminhar por longos períodos. Como se diz por aí, são pratos que enchem o bucho", conta o chef de cozinha Carlos Ribeiro vem estudando o tema há 26 anos.

Não é por acaso que boa parte delas tem textura caldosa e pode ser ingerida de pé, em cuias e copos - assim, ninguém precisa abandonar a folia para restaurar as energias. Conheça algumas delas.

Angu à baiana

Que fique claro: o angu à baiana é carioca da gema e tem origem africana. Esse mingau de fubá, servido em prato fundo sob molho encorpado de miúdos de boi e de porco, surgiu no Rio de Janeiro e, no século XIX, era vendido por mulheres negras livres nas ruas da cidade, como atestou Jean-Baptiste Debret em "Viagem Pitoresca pela História do Brasil", de 1834.

Também era servido nas casas de angu, no Centro do Rio, como contam Juliana Dias e Carolina Amorim em 'Angu do Gomes — Breve relato sobre o prato oficia da noite carioca".

Os locais serviam de abrigo para cativos, africanos e crioulos, onde encontravam comida e companhia, além de servir como esconderijo da polícia. O angu foi o elo dessa população, proporcionando convívio, provisão e segurança

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Com o tempo, virou comida da madrugada e símbolo da boêmia carioca.

A partir de 1955, a famosa barraca do Angu do Gomes, plantada na Praça XV, deu cria (chegou a ter nove pontos) e ajudou a popularizar a receita entre intelectuais. Daí para o mundo da música, foi um pulo.

Em 1958, segundo as autoras, o jovem João Nogueira, então com 17 anos, era diretor de um bloco carnavalesco no Méier e compôs um samba sobre o angu, o Espera, oh Nega.

Se a composição foi o começo da longa relação entre o angu à baiana e o mundo do Carnaval, difícil precisar, mas o fato é que as cuias cheias de angu e molho viraram o prato oficial dos ensaios das escolas de samba.

"As mulheres ficam servindo na porta dos barracões. De uns tempos para cá, deixei de entrar nos ensaios para ficar só comendo, na porta", confessa o chef Carlos Ribeiro.

Cabeça de galo

Cabeça de galo
Cabeça de galo Imagem: Divulgação
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O nome assusta, mas a cabeça do bicho está só no nome. Típico dos carnavais do Nordeste, esse caldo também é conhecido por um nome que resume suas propriedades restauradoras: "caldo do milagre".

Imagine uma canja rica e suculenta, mas sem o arroz. À base de caldo de frango, o cabeça de galo leva muitos temperos aromáticos, como cebola, tomate, pimentão e coentro.

Ao final do cozimento, é engrossado com farinha de mandioca e coroado com um ovo, que cozinha ali mesmo no caldo.

Nos carnavais da Paraíba e de Pernambuco, o cabeça de galo não é prato para se comer de colher.

Segundo o chef Carlos Ribeiro, é vendido pelas ruas, por vendedores ambulantes equipados com carrinhos, e servido em copos — nem é preciso parar de pular.

Barreado

Barreado
Barreado Imagem: Karime Xavier/Folhapress
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Quem já visitou as cidades paranaenses de Paranaguá, Morretes e Antonina deve ter notado que todo restaurante, por lá, tem barreado no cardápio. O cozido de carne bovina, servido com farinha de mandioca e banana, tem origem açoriana e deve ser preparado em panela de barro, com a tampa bem vedada - manda a tradição que se use uma goma de farinha e água para fechar qualquer frestinha, o que transforma o caldeirão em uma panela de pressão rústica.

Segundo a historiadora Maria Henriqueta Gimenes, que escreveu sobre o prato em sua tese de doutorado pela Universidade Federal do Paraná, o barreado está intimamente ligado com o Carnaval desde os tempos do Entrudo, festejo do século XVIII que durava três dias.

"Muitas vezes significava uma brincadeira violenta que tomava as ruas, com as pessoas atirando umas nas outras laranjas e limões de cheiro, bacias d'água, polvilho e até mesmo terra", conta Maria Henriqueta.

O Barreado era (e ainda é) considerado um prato 'forte', capaz de repor as energias, além de exigir poucos acompanhamentos (para os mais tradicionalistas, a farinha de mandioca e a banana são suficientes) e ter seu sabor preservado mesmo quando requentado

E com uma vantagem: tradicionalmente, o tempo de preparo era de 24 horas. Dava tempo de pular carnaval sem risco de queimar o almoço.

Cozido de osso

Caldo de ossos
Caldo de ossos Imagem: Divulgação
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O calorão do Centro-Oeste não assusta o povo pantaneiro - no Carnaval, manda a tradição que o folião recupere as energias encarando um bom prato de cozido de osso.

"A receita pertence à mesma família do cozido paraibano, do chambaril, do cozido à trasmontana português e do puchero espanhol, ou seja, pratos feitos com carnes gordurosas e ossos", explica o chef Paulo Machado no livro Cozinha pantaneira -

Comitiva de sabores (Editora Bei). O corte da canela bovina, a mesma do ossobuco, vai à panela com temperos e cachaça. Depois que a carne está macia e o molho, bem encorpado, come-se o prato com farinha de mandioca tostada.

Segundo Machado, outra receita pantaneira cada vez mais ligada ao Carnaval é o João Sujo, um pirão preparado com farinha de mandioca branca, temperos e sobras de churrasco.

Filhós

Filhoses
Filhoses Imagem: Museu do Açúcar/Jorge Sabino
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Os bolinhos fritos de origem árabe, que os portugueses importaram e depois trouxeram para cá, são uma exceção na lista de pratos de Carnaval — e por duas razões. Em primeiro lugar, é o único doce no meio de caldos salgados reconfortantes.

Em segundo, não se trata de um prato popular, pois tornou-se brasileiro dentro das cozinhas da aristocracia pernambucana.

De acordo com o antropólogo Raul Lody, os filhoses já faziam parte da celebração portuguesa que antecedia a Quaresma.

"O carnaval é a 'festa da carne', e há uma tendência de ser gorda e suculenta, para provocar os mais profundos sentimentos carnívoros, e certamente de gula, pois é uma festa marcada pelos exageros, mas sem preconceitos ou moralismos", ele explica no site do Museu do Açúcar e do Doce.

Embora existam outras versões de filhós, o pernambucano leva farinha de trigo, açúcar, fermento, manteiga, ovo e sal. Depois de fritos por imersão em óleo quente, os bolinhos são regados com uma calda de açúcar, água e raspas de limão.

Na versão mais antiga, descrita no livro Açúcar — Uma sociologia do doce, de Gilberto Freyre (Ed. Global), de 1923, a fritura era feita em banha de porco.

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Bate-bate

Trilha sonora obrigatória do Carnaval de Olinda (PE), o frevo Bate-Bate com Doce, de Alex Caldas, é o hino da Troça Pitombeira - troça é como se chamam os pequenos blocos de lá.

A letra menciona um tal "ponche", espécie de batida à base de cachaça, polpa de maracujá e melado de cana, que os fundadores da troça tinham o hábito de tomar nos ensaios, nos anos 1940.

Rebatiam as doses com pedaços de doce de goiaba, para cortar o efeito do álcool. Hoje, nas barracas de batidas, a receita é um pouquinho diferente. Trocou-se a polpa de maracujá in natura por suco pronto, e o mel entrou no lugar do melado.

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