Qual a origem do lenço palestino? Item que foi moda volta como 'bandeira'
Em 2008, era difícil ver um hipster sem uma echarpe preto e branca enrolada no pescoço. A moda "étnica" estava em alta e famosos como David Beckham e Kirsten Dunst desfilavam com o cachecol com imagens geométricas e franjas.
Há mais de 15 anos, o item parecia apenas mais um acessório de moda. No entanto, conhecida como "lenço palestino", a echarpe representava muito mais do que apenas as últimas novidades da passarela da moda. E, em 2023, com o início do conflito de Israel e Palestina, ele volta a estar em imagens de Instagram e nas ruas. Mas como uma "bandeira" não oficial para as pessoas que apoiam o cessar-fogo e a soberania dos palestinos.
Na realidade, o "lenço palestino" tem vários nomes e não é usado apenas na Palestina. Chamado de "keffiyeh", "kufiya" ou "shemagh", o ornamento faz parte da vestimenta dos árabes e tem origem incerta.
Há várias versões da história. Uma delas data do século 7, quando há uma batalha entre árabes e persas em Kufiya, uma cidade iraniana ao sul de Bagdá. Os árabes usavam esses lenços estampados para se identificar. Francirosy Barbosa, antropóloga e docente na Universidade de São Paulo (USP), especialista em muçulmanos no Brasil.
A origem pode, ainda, ser ainda mais antiga, desde a época dos Sumerianos e Babilônios na Mesopotâmia. "O profeta Maomé também usava o 'shemagh'", comenta Hyatt Omar, criadora de conteúdo brasileira de origem palestina.
A estampa é emblemática e cheia de significados: é possível ver folhas de oliva, que representam as árvores de oliveira centenárias da Palestina; linhas retas que simbolizam as rotas que carregam a história e as tradições da região; e a rede de pesca, que mostra a profunda ligação dos pescadores e do povo palestino com o Mar Mediterrâneo.
No dia a dia, o lenço é usado principalmente pela classe trabalhadora e pelos povos do deserto para se proteger do sol e das intempéries do clima. E, apesar da versão preto e branco ser mais reconhecida, o keffiyeh pode ter diversas cores, de acordo com a região das pessoas que o usam.
O vermelho, por exemplo, é muito mais usado na Arábia Saudita e na Jordânia
Francirosy Barbosa
Porém, na revolta árabe, entre 1916 e 1918, o lenço começou a ser associado à causa palestina. "Por volta do ano 1936, durante o mandato britânico na região, as autoridades tentaram proibir o uso da Keffiyeh para que fosse mais fácil identificar aqueles que protestavam contra seu mandato e regras, então os palestinos começaram todos a usar como símbolo de resistência, o que permanece até hoje", complementa Hyatt.
Quem, de fato, popularizou o uso da kufiya como uma vestimenta de resistência foi Yasser Arafat, ex-presidente da Organização pela Libertação da Palestina, Na década de 1960, o líder começa a aparecer em encontros internacionais usando o lenço.
A partir daí, outros revolucionários, como Fidel Castro e Mandela, também já foram fotografados com a vestimenta como um apoio à causa palestina. "Foi quando o keffiyeh ficou muito forte entre os palestinos e se tornou uma 'bandeira' não oficial", diz Francirosy.
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A indústria da moda pode ser implacável. Com corpos que não estão dentro do padrão e também com o "roubo" de símbolos de povos minoritários. Principalmente no início dos anos 2000, quando estávamos muito longe de ter discussões sobre apropriação cultural.
Em 2007, a Balenciaga, dirigida por Nicolas Ghesquière, desfilou a coleção "viajante", inspirada no multiculturalismo visto nas ruas de Londres. Na apresentação, modelos apareceram vestindo uma versão repaginada e luxuosa do keffiyeh, que era visto na capital da Inglaterra como uma forma de oposição às invasões militares no mundo árabe.
Isabel Marant também colocou acessórios semelhantes em sua apresentação que incluía modelagem militar em uma pegada "terrorista chique". Novamente, o lenço kufiya estava presente.
A partir daí, muita gente adotou a vestimenta como um acessório de moda comum. Mas não livre de polêmicas. A Urban Outfitter chegou a disponibilizar keffiyeh para venda em suas lojas nos EUA, mas o grupo sionista "Stand With Us" promoveu protestos e boicotes por entenderem que a venda do lenço poderia estimular um movimento pró-Palestina. Assim, para evitar mais controvérsia, a grife deixou de vender o lenço e se desculpou publicamente.
Eventualmente, com o passar do tempo, o acessório deixou de ser tendência de moda, principalmente por ter se tornado uma característica estereotipada de hipsters. Ainda assim, o uso massivo da peça impactou profundamente a manufatura tradicional do keffiyeh.
Atualmente, há apenas uma fábrica tradicional do lenço em funcionamento na Palestina, já que outros produtores quebraram por terem que lidar com uma concorrência desleal com fornecedores chineses, onde a maior parte das kufiyas são produzidas atualmente.
A Hirbawi Kufiya foi fundada nos anos 1960 por Yasser Hirbawi e, desde a morte dele em 2018, é administrada pelos três filhos do fundador. A fábrica tem tido dificuldade em ter matéria-prima e fazer entregas por conta do conflito, mas mantém um site internacional para que pessoas de outros países conheçam a história da vestimenta e façam encomendas.
Uso consciente
A professora de literatura inglesa Mariana*, de anos 37, não tem origem árabe, mas decidiu adquirir um keffiyeh. Bastante ligada às notícias internacionais, ela quis mostrar seu apoio à causa palestina.
Além de Mariana, Francirosy Barbosa também usa o lenço para prestar sua solidariedade aos palestinos. "Quando você o usa, você hasteia, deixa muito claro qual o seu posicionamento na situação atual", diz a docente.
Os pais de Hyatt Omar, bem como sua irmã mais velha, nasceram na Palestina. Os avós e primos da criadora de conteúdo moram na região. Assim, ela é uma grande militante pela causa palestina e, principalmente, pelo cessar fogo.
Do ponto de vista dela, ver uma pessoa não-árabe como Mariana, que entende o significado e o peso do keffiyeh, usando o lenço é motivo de felicidade.
"Fico muito feliz e orgulhosa, porque ainda há quem o relacione a coisas negativas, a pessoas agressivas", diz Hyatt. "É problemático quando alguém pega um símbolo tão importante e o transforma em um artigo de luxo, sendo que, quando eu uso, posso ser vista como terrorista. Já o uso consciente nos dá uma esperança de que estamos sendo ouvidos."
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