O vinho de missa tem regras rígidas e deve ser da cor do sangue de Cristo
Na tradição católica, no momento em que a hóstia é erguida no altar pelo sacerdote para a Consagração, o rito é acompanhado por um elixir fundamental, simbolizando o Sangue de Cristo: o vinho canônico. Um momento seminal para o catolicismo.
Como se lê na Bíblia Sagrada: "... Ao fim da ceia, Ele tomou o cálice, deu graças e o deu a seus discípulos dizendo: 'tomai e bebei: este é cálice do meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança, que será derramado, para remissão dos pecados'".
Também conhecido como vinho litúrgico, sobre ele determina o Código de Direito Canônico (cânon 924, parágrafo 3), mais precisamente no Código Pio-Beneditino, de 1917 (renovado em 1983 pelo Papa João Paulo II): "o vinho deve ser natural, do fruto da videira, e não corrompido".
Trata-se de uma regulamentação inquestionável. Ou seja, o vinho-base não deve conter nenhum outro ingrediente ou substância além da uva, ainda que, para se chegar a seu estilo licoroso, seja autorizado adicionar aguardente para elevar o teor alcoólico da bebida.
No Brasil existem alguns raríssimos produtores desse rosado licoroso, de grande dulçor e 16° de graduação alcoólica, elaborado via de regra a partir das castas Moscato, Saint Emillon e Isabel, e produzido sob encomenda, controle e explicita autorização e fiscalização da arquidiocese (leia-se, os bispos).
Autorização que, registre-se, é renovável, e não perene. Cuidados da Cúria à parte, são vinhos comercializados normalmente, mas difíceis de encontrar, ainda que relativamente baratos. Em sua quase totalidade, são vendidos ao consumidor comum apenas em paróquias ou em casas de artigos religiosos ligados à Igreja Católica.
Produção veio da Itália
A história da produção do vinho da Santa Missa no Brasil começa no final do século 19, com a chegada de freis capuchinhos à Serra Gaúcha, para as missões. Como na Itália eram os responsáveis por produzir os vinhos, trouxeram para cá o costume da produção em mosteiros.
Ao longo dos anos, alguns poucos produtores de confiança foram sendo autorizados pela Cúria a produzir e vender o tradicional "vinho de missa", desde que respeitados os requisitos pré-estabelecidos.
Uma dessas vinícolas autorizadas é a tradicional Vinícola Salton, de Bento Gonçalves (RS). Nos anos 1920, o primeiro enólogo da família, Antônio "Nini" Salton, elaborou, em parceria com o pároco da cidade, um vinho específico para a liturgia.
Surgia então o Canônico, rótulo com 110 gramas de açúcar por litro elaborado até hoje pela vinícola e presente em igrejas de todo o país, com autorização eclesiástica. Atualmente, das 300 mil unidades engarrafadas ao ano, cerca de 80% são vendidos para igrejas e o restante para consumidores finais.
Doces e licorosos
Em seu processo de vinificação, vinhos canônicos não diferem dos demais, enquadrando-se nas normativas do Ministério da Agricultura como qualquer outro vinho. Precisam ser doces, e ter mínimos 14% de álcool. O motivo de serem licorosos é para que a garrafa possa permanecer aberta por mais tempo sem estragar, já que nas missas é utilizada uma pequena quantidade (apenas 35 ml na Consagração).
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Quero receberNa Adega Chesini, em Farroupilha (RS), outra vinícola detentora das bençãos da Cúria, a produção do vinho canônico começou nos anos 1970. "Meu avô, o fundador, era muito amigo dos padres e párocos, servia jantares a eles no porão da sua casa", conta o enólogo Ricardo Chesini.
Um dia, o bispo da diocese sugeriu que ele fizesse o vinho de missa, e até o ensinou como fazer.
Ricardo Chesini, enólogo
Por décadas, a produção foi informal. "Quando assumi a vinícola, em 2001, renovei a autorização da igreja na diocese de Caxias do Sul e passamos a vender com nosso próprio rótulo", completa Chesini.
Para 2024 está prevista uma produção de perto de 45 mil litros, em embalagens de 750 ml e - inovação da vinícola - três e cinco litros, mais econômicas. "O Canônico Chesini é o único rótulo que vendemos para fora do Rio Grande do Sul. Algumas de nossas maiores regiões clientes são Brasília, Rio Grande do Norte e Pará".
Um bom aperitivo ou digestivo
Para falar em harmonização, o caráter licoroso do vinho litúrgico o faz ótimo parceiro de sobremesas ou queijos mais fortes. Também funciona como aperitivo ou digestivo - e é utilizado, não raro, na confeitaria, como ingrediente. Chesini.
Nas degustações que fazemos na vinícola, fica claro que, por ser doce, ele agrada principalmente a paladares não familiarizados com tintos e brancos secos. Aliás, a maioria dos visitantes se surpreende, sequer sabe que há um vinho de missa especial feito sob as regras da igreja.
Ricardo Chesini, enólogo
Curiosidades: o fato de ser rosado, e não tinto - portanto mais associado ao Sangue de Cristo -, reside em solicitação da própria Igreja: um vinho que não seja "tinto demais", o que mancharia com maior facilidade cálices, batinas e outros paramentos litúrgicos. E, sim, o canônico é o vinho favorito consumido pelos padres. Amém.
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