Na 'cozinha pelada' tem até caqui salgado: a comida sincera de Pablo Inca
Antes que acusem o título de sensacionalismo, a tal "cozinha pelada" de Pablo Inca, chef do restaurante Cora, em São Paulo, é a descrição perfeita que veio de uma amiga do chef e, acreditem, não poderia ser mais certeira.
Numa discrição quase exagerada, o cozinheiro de Jujuy, na Argentina, ainda aparece mais observador que vendedor de seus talentos. Guiado por nomes gigantes da cozinha de sua terra-natal e do planeta, Pablo hoje voa solo na charmosa casa colada ao famoso Minhocão. Mas calma. Como nos pratos de Pablo, tudo ao seu tempo.
Hoje, aos 38 anos, o chef não veio de uma família de mestres-cucas, mas sim de gente que se virava - e muito bem - com o que tinha disponível.
Meu interesse por cozinha começou vendo os programas de TV, mas também na praticidade da minha mãe. Ela não cozinhava muito, mas quando preparava algo, fazia muito bem. Usava muitos vegetais, saladas, coisa que adotei pra minha vida afirma.
Ao longo da conversa, mais lembranças familiares. A avó meio rabugenta que era observada atentamente a cada preparo, mesmo que de longe. O avô materno que fazia questão dos ingredientes mais vistosos e gostosos. A ancestralidade cravada na terra-natal San Salvador de Jujuy e a Pachamama, "um dia em que a gente agradece a Mãe Terra pelo que ela te deu no ano".
Ainda que muito atraísse para as panelas, por pressões familiares e as dúvidas insolúveis dos 17 anos, o primeiro passo profissional foi o de outros universos, o das relações internacionais, que depois deu lugar ao curso de direito. Para a sorte de quem já provou as criações de Pablo, durou pouco.
Das empanadas ao Mercadão
Com 18 anos, o primeiro emprego de Pablo na cozinha foi em um lugar de empanadas. "Recebia 200 pesos para 'aprender'. E assim pagava aluguel enquanto estudava". Neste meio tempo, fez um curso de gastronomia, estágio em hotel, foi para Salta e começou a se envolver mais no momento gastronômico do país.
"Na época, predominava uma geração de cozinheiros jovens que migraram para a Europa por um tempo e estavam voltando. Tinha muita influência do El Bulli", relembra.
A inquietude e curiosidade o levaram para Buenos Aires, onde encontrou Rodolfo e Tomas Scarpetti. E aí surgiria o Brasil nos planos do jovem cozinheiro.
"À época já conheciam Gabriela Barretto do Chou, tinham feito trabalhos legais aqui e diziam que eu precisava vir ao Brasil. Fui muito guiado por eles. Vim para conhecer, experimentar", relembra.
Sua primeira parada: o Mercadão.
Fiquei maravilhado. Os preços eram já bem altos, mas a vontade era maior e comprei tudo o que encontrava de diferente.
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Quero receberGraças aos contatos de Gabriela, Pablo iria para outra casa de São Paulo, cuja dona já é bastante conhecida dos brasileiros.
"Antes de vir ao Brasil, perguntei se podia ficar uns dias no Chou, só para observar. Como a cozinha era minúscula, ela acabou me indicando uma amiga que tinha um restaurante que funcionava nos almoços". A amiga era Paola Carosella e o lugar, o famoso Arturito.
"Fui ficando"
O combinado era ficar apenas uns dias e Pablo já tinha Rio e Salvador em mente. Por uma falha de comunicação (ou planos divinos), ele acabou mergulhado na cozinha comandada pela chef argentina mais do que o previsto.
"Encontrei Paola que me pediu para ficar mais e fui ficando uma semana e mais uma. Não fui pras outras cidades e já dava a data que deveria voltar pra Argentina. Aí que perguntaram se eu não queria ficar de vez", rememora.
Começar a vida do zero, com apenas uma mala de viagem na mão era uma opção? "Eu falei sim. Foi inconsciente", conta.
Arturito foi muito importante em termos de disciplina. Na época, a cozinha era composta só por pessoas sem formação acadêmica. Isso me fez entender que gastronomia pode ser uma carreira, mas antes de tudo é um ofício. Entendi que todos podem cozinhar e que as pessoas tinham um carinho e doação extra pelo trabalho. Fiz minhas melhores amizades lá.
Após três anos e meio, também participando do La Guapa, migrou e ficou por cinco anos como chef do Mangiare, outro restaurante de Benny Goldenberg, hoje sócio de Paola.
Londres confidencial
De olho no mundo, Pablo foi a Londres, para um estágio de seis meses no famoso St John - o restaurante "dos sonhos" de Anthony Bourdain, por exemplo.
A experiência é rememorada com um misto de emoções. No primeiro dia, rejeitado por um chef que negava precisar de estagiário. No segundo, salvo pelo acaso:
"O que me ajudou foi a presença de dois brasileiros. Virei meio intérprete entre um deles e Jonathan Woolway [o então chef-executivo]. Quebrei o gelo. Mas foi difícil. Na primeira semana ninguém olhava pra mim", lamenta.
Apesar da recepção nada calorosa, Pablo lembra de algumas coisas que ele leva para vida: a disciplina extrema da equipe e gente que genuinamente amava cozinhar. Isso tudo em um cenário digno de cinema.
Era uma rotina muito como 'Cozinha Confidencial', do Bourdain. Num dia de folga, encontrei o pessoal no bar meia noite todos bêbados. E no dia seguinte, todos estavam trabalhando como se nada tivesse acontecendo.
Voltando para São Paulo e para o Mangiare, começava a prospectar novos rumos e planos.
Cora para todo mal
Ao lado de Rafael Capobianco e Dany Simon, Pablo começa a planejar o que seria um café/refeitório para quem trabalhasse num coworking localizado num prédio que seria retrofitado no centro de São Paulo, colado ao Minhocão.
"Na época, não tinha nada aproveitável, estava bem deteriorado. Vieram outras pessoas com mais visão e tiveram a ideia de um bar. Em outubro de 2019, começamos a limpar e movimentar os planos. A intenção era abrir em maio de 2020", conta.
Como se sabe, uma pandemia viria a atrapalhar e adiar todo e qualquer plano que qualquer pessoa do planeta poderia ter nesse período. "Foi neste momento que a gente pensou que não ia dar certo", confessa.
Faltava material para a obra, ou tava muito caro. Começaram as preocupações. E em outubro de 2020 começamos de novo. Em janeiro não conseguimos abrir, fevereiro... maio. Aí não podíamos mais segurar.
Em julho de 2021, o Cora abriu. "A gente não tinha cadeiras, mesas, banheiros, mas já não importava".
O sucesso imediato não foi esperado, mas hoje, olhando pelo retrovisor, faz todo sentido. "Era um espaço aberto. As pessoas estavam desesperadas para sair e tínhamos filas lá embaixo", relembra.
A cozinha está "desnuda"
Sobre a comida em si, o chef conta que foi juntando um mosaico de referências e impressões.
Uma amiga disse que fazia uma cozinha pelada. E guardei o conceito para o quero expressar. Tento me comparar a outros cozinheiros, porque vejo que tem muita técnica, muito detalhe, e isso eu admiro, mas não é o que eu gosto de fazer. Trago a essência do clássico para deixar que os ingredientes se expressem por si mesmos, descreve.
Nem mesmo Laurent Suaudeau conseguiu fazer Pablo cravar totalmente seu estilo. Em uma troca de ideias por alguns minutos na mesa, o chef veterano perguntou como ele definiria sua cozinha. "Respondi 'uma cozinha simples' e ele me disse: 'não existe o simples. Existe o bem executado'. Isso, para mim, é a cozinha pelada. Mas ainda não defini o que é a cozinha do Pablo", assume.
Um assumido "emocionado" da profissão, Pablo não tem medo de declarar que estar com a mão na massa é um prazer. "Existe uma mão que colocou um salzinho a mais, uma pimenta a mais. Quando você conserva essa essência, o restante pode ser magnífico, mas o simples sempre será o melhor", filosofa.
E sob esse mantra, Pablo resgata a sazonalidade - não a que escorre pelos cardápios espalhados pelo mundo, mas a real. Aquela dos tempos de Jujuy.
Lá há microclimas muito marcantes e as estações estão mais delimitadas. Em consequência disso, não tem nem como, por exemplo, consumir morangos fora da temporada. O melhor de tudo isso é ver pessoas com carrinhos imensos com morangos bem vermelhos. A sensação de 'eu preciso comprar morango porque tá na época', relembra.
Para o chef, quando você tem um produto muito bom, não precisa mexer muito. Mas quando mexe... é para surpreender.
"Fazemos isso muito com caqui e adoro trabalhar com frutas. Muitos não imaginam prato salgado". E já seguiram o mesmo curso inusitado e saboroso maçãs, peras, figos, morangos...
Aprendiz dos aprendizes
Olhando em retrospecto, Pablo comenta que muito mudou dentro do ambiente de quem vive de cozinhar e servir.
"Antes era uma cozinha rígida, disciplinaria, sem voz. Você só obedecia ordens. Hoje, as pessoas não aceitam e seguram mais o regime anterior. Antes, você dobrava e não via como exploração, mas como reconhecimento. Hoje, além de legalmente errado, ninguém mais quer fazer isso. É algo que a gente precisa se adaptar", reconhece.
Hoje compartilho muito com as pessoas que trabalham comigo, que têm diferentes experiências e referências. Quando elas gostam, criam a maior possibilidade de que todo mundo goste.
Fazer questão que a equipe toda se apaixone pelos pratos servidos também é uma forma de superação de ambientes muito menos ternos. "Já trabalhei em lugares que o staff não prova o que tá sendo servido. Te coloca numa distância muito grande", analisa.
"Respeito, honestidade com produto, com cliente, com o que a gente fala e, por último, a humildade são os valores essenciais na cozinha", conclui Pablo, o autodenominado "eterno aprendiz".
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