Do banco à estrela Michelin: a trajetória nada suave de Luiz Filipe Souza

"Sou um pouco anti-herói dessa história de cozinha afetiva". Luiz Filipe Souza não é de florear muito sobre o que faz, no que acredita e muito menos sobre como começou a vida entre panelas. "Não tive imagem da nonna, ficar na barra da saia dela", conta o chef do premiadíssimo Evvai, em São Paulo.

Eu não ia ser cozinheiro. Não é o que tava projetado para minha vida.

Filho de uma advogada e de um engenheiro civil, a vida "quadradinha" da bolha do nobre bairro de Higienópolis não permitia, ainda, pensar em cozinha como profissão.

Aos 16 anos, porém, Luiz viu o castelo de perfeição ruir quando seus pais descobriram cânceres com 20 dias de diferença: o dela, operável, o dele, em estado avançado. "Ele tinha duas opções: entrar em uma vida de convento, ou seguir boêmio e aproveitar como ele queria. E escolheu a segunda opção". E isso causava um clima tenso entre o jovem e seu pai, com quem passou a morar após a separação do casal.

Neste período, Luiz reconhece que talvez afeto faça, sim, parte de sua receita de sucesso. "A gente se dava muito mal no dia a dia, mas na hora de comer, nos entendíamos", lembra ao mencionar que ainda não fazia nada mais sofisticado que um carré de cordeiro — favorito do pai. "Nada profissional ou gourmet, mas era o que eu fazia na cozinha até então".

Luiz Filipe Souza, no Evvai
Luiz Filipe Souza, no Evvai Imagem: Tadeu Brunelli

No último ano da faculdade de administração, seu pai faleceu e o trabalho em análise de crédito de um grande banco internacional começava a dar espaço para uma outra ideia. E ela estava estampada na capa de uma revista gringa.

Terno antes da dólmã

"Alex Atala é capa da revista norte-americana TIME": essa era a notícia desse UOL em 7 de novembro de 2013.

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Capa da revista "Time" com os chefs Alex Atala, René Redzepi e David Chang
Capa da revista "Time" com os chefs Alex Atala, René Redzepi e David Chang Imagem: Divulgação/time.com

Ao lado de René Redzepi (do dinamarquês Noma) e David Chang (do norte-americano Momofuku), o chef brasileiro cravava os dois pés na cena internacional da gastronomia.

Aos 20 e poucos anos e com a sede de novos ares, Luiz seguiu, como muitos jovens da época, o chamado para a faculdade de gastronomia."Só que a minha mãe ficou maluca", lembra.

Não era só uma questão de apoio materno, mas também de ajuda financeira, uma vez que o curso na Anhembi Morumbi, faculdade referência e casa dos chefs mais premiados do Brasil, não era (e ainda não é) barato.

Ela primeiro me mandou pra terapia. Depois fizemos um trato: eu prestaria o vestibular e, se passasse, antes de fazer a matrícula eu já teria que estar trabalhando na área, conta.

Convicto e desafiado, Luiz distribuiu currículos por toda a cidade e aparecia nas cozinhas de terno, como bom ex-bancário. "É tragicômico, mas eu não fazia ideia de como deveria aparecer nesses lugares".

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Deu certo. Na longa espera pela entrevista com o chef Salvatore Loi, no saguão de um dos hotéis mais luxuosos de São Paulo - o Fasano -, ele acabou pertencendo ao ambiente. "Dei a sorte do Loi gostar de mim e me chamar para um estágio não-remunerado. E desde então nunca mais saí da cozinha".

Mesmo sem saber pegar numa faca, Luiz começou trabalho e faculdade. Eram somente três meses, mas vagou a pia e lá foi ele, contra os desejos da maioria dos estudantes de gastronomia e daqueles que acham que faculdade é fábrica de chefs.

Luiz Filipe Souza, no Evvai, em 2020
Luiz Filipe Souza, no Evvai, em 2020 Imagem: Tadeu Brunelli

Meu primeiro dia foi assustador, estranho, me questionei. É muito diferente de tudo o que havia visto em ambiente corporativo. Com o tempo virou divertido e eu tava na pilha. Lembro de me darem até o 'Cozinha Confidencial' [livro de Anthony Bourdain sobre os bastidores nada gloriosos da cozinha] e perguntarem se era mesmo o que eu queria, Só me instigou mais, relembra.

Além de cozinhar, Luiz conta que foi no Fasano que teve um choque de realidade social.

"Há 20 anos, não era tão profissionalizada. Era ofício. As pessoas me olhavam e questionavam o que eu tava fazendo lá. Saí da bolha, aprendi muito. Vi qualidades que eu nem sabia que tinha."

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Ao mestres, com carinho

Foram 10 anos de Fasano, passando por todas as praças. Em 2012, Luiz seguiu Loi para o Girarrosto e para o Mozza Bar, em 2013 - onde conquistou o primeiro cargo de liderança como sous chef. Em 2014, foi ser o braço-direito do mentor em seu Loi Ristorantino.

Foi nesta época que receberam Niko Romito, do três estrelas Michelin Reale, de Abruzzo, onde Luiz passaria férias fazendo estágio - em mais uma etapa na sua intensa formação na gastronomia italiana.

Prato do Trattorita, restaurante casual de Luiz Filipe Souza
Prato do Trattorita, restaurante casual de Luiz Filipe Souza Imagem: Tadeu Brunelli

Pouco depois, Loi abriu seu Salvatore Loi e levou Luiz. "Foi sucesso de público, mas não sucesso como business. A operação era complicada". Em janeiro, o jovem chef é demitido por ter um dos salários mais altos.

Fui pra Nova York e queria abrir um restaurante sem serviço, meio 'chef's table' - que hoje tá na moda.

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Nesse período, Salvatore se desentendeu com os sócios do restaurante que levava seu nome e saiu. Foi proposto a Luiz que voltasse e assumisse, com apenas 28 anos, um grande negócio. "A primeira resposta foi não". Questões contratuais, porém, o fizeram topar o desafio de comandar um restaurante que já nascia sob dívidas.

Diante de tantas indas e vindas, a figura de Loi resistiu às mudanças, desentendimentos e até intrigas criadas em torno dessa parceria. "Criei uma relação paterna com ele. Loi me deu todas as plataformas para eu crescer", conta.

Sangue, suor e Evvai

Toda essa trajetória explica o amor - muitas vezes doente e viciante - de Luiz com seu primeiro negócio: a pressão de se tornar dono do seu próprio restaurante foi inegavelmente gigantesca.

Fiz muita merda, peguei muito pesado com gente, fui explosivo, recorda o chef, que não esconde a personalidade forte, perfeccionista e direta.

Luiz Filipe Souza, no Evvai
Luiz Filipe Souza, no Evvai Imagem: Tadeu Brunelli
Detalhe da cozinha no Evvai
Detalhe da cozinha no Evvai Imagem: Tadeu Brunelli

Aberto em 2017, o Evvai se tornou algo completamente diferente do projeto original. "Não era pra ser fine dining, era pra ser casual, de giro, mais a ver com um menino de 28 anos. Se eu tivesse escolha, teria maturado mais", reconhece.

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Aos poucos, os desejos de um restaurante mais tranquilo deram lugar à alta gastronomia - e suas tensões. O menu-degustação surgiu mais para rodar os pratos que não giravam, mas começou a dar mais certo que o menu à la carte, por exemplo.

"Ficamos pensando o que faríamos e vieram algumas crises, como o caos da greve dos caminhoneiros. Isso começou a me estressar mais ainda e, sem perceber, engordei 33 quilos e trabalhava no almoço e jantar, sem folgar, todos os dias", lembra.

Amava o que eu fazia, mas era zero saudável. Era super viciante, mas a saúde estava indo pro saco, assume.

Um ano de ouro e de estrela

"Final de 2018, sentou um cara numa mesa bem perto da cozinha, de terno, tinha um sotaque diferente também" - na época, o Evvai ainda não era lotado de gente de fora, como hoje.

E aí o cara se levantou, veio até a porta, e quando chegou, virou pra trás e falou: 'você pode chamar o chef, por favor?'. Quando cheguei, ele sacou o cartãozinho e era o inspetor do Michelin.

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A proteção "ecumênica" do Evvai
A proteção "ecumênica" do Evvai Imagem: Tadeu Brunelli

No ano seguinte, outra inspeção viria, também desta mesma forma digna de cena de cinema, e a primeira estrela viria.

"Aquilo me assustou um pouco, porque eu realmente nunca tinha sonhado antes. Era a mesma coisa que uma criança sonhar em ser astronauta", compara. "Michelin, pra mim, é outro patamar. Na hora pensei que alguma coisa realmente a gente tava fazendo certo".

Tenho essa coisa de trabalhar com excelência, sempre fui competitivo, gosto de ser reconhecido pelo que eu faço. O prêmio vem como consequência do que a gente tá fazendo, mas aqui, no fim nas contas não muda nada no trabalho em si, conta.

Já como negócio, o chef não nega: é um chamariz para clientes novos e a série de honrarias deu uma super impulsionada no restaurante.

"Foi quando a gente começou a pagar a dívida de fato. Até lá, trabalhamos um ano sem recurso nenhum. Literalmente vendendo o almoço pra pagar o jantar".

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As expectativas para o retorno do Guia ao Brasil e anúncio de recomendados e estrelados em São Paulo e Rio que acontece nessa segunda (20) são, obviamente, altas.

Eu acho que em cinco anos a gente evoluiu muito e, sim, gostaria muito de ser reconhecido pelo salto que a gente deu, entrega.

Além da estrela Michelin, o Evvai está em 22º lugar na lista dos 50 melhores restaurantes da América Latina, pelo 50Best.

Orgulhosamente italiano e brasileiro

Por falar em prêmio, o grande divisor de águas para Luiz-chef foi nada menos que chegar à final do Bocuse D'Or, o maior campeonato de chefs do planeta, em janeiro do dourado 2019. A importância, porém, está mais no prato que na honraria em si.

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Bomba de vieira, do Evvai
Bomba de vieira, do Evvai Imagem: Tadeu Brunelli
Leitãozinho com feijoada verde, do Evvai
Leitãozinho com feijoada verde, do Evvai Imagem: Tadeu Brunelli

Até então, eu só fazia comida italiana, era minha escola. Mas lá você tem que representar o teu país. Então quando estava me preparando, ficava horas estudando comida brasileira e ia para o Evvai fazer o serviço da noite. Comecei a perceber que ficava mais feliz nas minhas manhãs e tardes, brinca.

"Pensei: 'Quer saber? Evvai precisa fazer sentido é em São Paulo", lembra. E assim o restaurante incorporou o que se chama de cozinha Oriundi (termo designado para definir os imigrantes e descendentes italianos ao redor do mundo), mezzo italiana, mezzo brasileira, com estes limites extrapolados o tempo todo sem que ninguém perca seu reinado.

Salada de folha de abóbora, caqui, vinagrete alcoólico de gin e baunilha do Cerrado
Salada de folha de abóbora, caqui, vinagrete alcoólico de gin e baunilha do Cerrado Imagem: Tadeu Brunelli

O fim do mundo na pandemia

Com um 2019 maravilhoso, 2020 começou cheio de planos. Além do sucesso do Evvai, Luiz tinha acabado de realizar o sonho de viajar para o Japão, estava mais saudável e numa fase muito "zen", como ele mesmo descreve. "Eu estava vivendo o sonho".

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Até, claro, estourar a pandemia. "Foi desesperador. O meu maior medo foi com a minha equipe, na verdade.Tinha conseguido criar um time que respondesse à altura das minhas expectativas", conta, sem negar que essa cobrança viria muitas vezes de forma pouco sutil.

Luiz Filipe Souza, no Evvai, em setembro de 2020
Luiz Filipe Souza, no Evvai, em setembro de 2020 Imagem: Tadeu Brunelli

"Quem abraçou e se dedicou e construiu isso junto era muito importante pra mim. Ele chora com a sua dor, você chora com a dor dele", relembra sobre os quase 60 funcionários que faziam correr um Evvai que recebia 120 pessoas numa sexta-feira, tinha dois menus-degustação e 90 lugares.

"E aí eu não queria mandar ninguém embora. Então organizamos, fizemos delivery, surgiu Evvita (pizzaria que funcionava só por entrega na pandemia). Sobrevivemos".

Hoje, Luiz calcula que tudo o que havia sido feito em três anos no Evvai havia voltado para trás. E entre um lockdown e o outro, a Evvita viraria presencial, acabaria não deslanchando, mas daria espaço ao Trattorita.

Mais, ainda que no susto e no trauma, o filho mais velho teria a chance de se renovar.

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Lembra que naquela época, antes da pandemia, o menu-degustação era mal visto? Quando a gente reabriu, insisti no modelo do qual sempre fui muito fã. Ter uma experiência em 360°, não só sair para comer.

Na volta aos restaurantes, o menu-degustação (que também teve uma caprichada versão para tempos pandêmicos) era o mais pedido entre os clientes e acabou dominando tudo até os pratos à la carte não fazerem mais sentido nem para quem consumia, nem para os que produziam.

Luiz Filipe Souza entre a chef confeiteira Bianca Mirabili e a sous chef Priscila Almeida, no Evvai
Luiz Filipe Souza entre a chef confeiteira Bianca Mirabili e a sous chef Priscila Almeida, no Evvai Imagem: Tadeu Brunelli

As novas regras de distanciamento e quantidade de pessoas em lugares fechados também mudaram o restaurante. Agora seriam 70 lugares e um salto de qualidade em serviço e fluidez na cozinha. Pelas restrições de contato, a comunicação com clientes era feita com cartões desenhados, que fazem parte do charme do Evvai ainda hoje.

Todas as coisas ruins que aconteceram na minha vida foram as mais importantes para tudo o que deu certo na minha vida.

Aos 35 anos, Luiz busca respeito, realização financeira e pessoal, mas também almeja um legado na profissão. "Vou trabalhar sempre para buscar ser uma inspiração e um mentor para quem trabalha comigo", declara. "Quero ver eles abrirem restaurantes, quero ser sócio deles. Quero que cresçam junto comigo", afirma.

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CGH - IGU

Luiz Filipe Souza, no Hotel das Cataratas, onde está seu mais novo projeto Y
Luiz Filipe Souza, no Hotel das Cataratas, onde está seu mais novo projeto Y Imagem: Tadeu Brunelli

Em 2024, mais um projeto no caminho de Luiz. E dessa vez puro suco de Brasil. No Hotel das Cataratas, A Belmond Hotel, em Foz do Iguaçu, o chef agora fala também em guarani no seu novo restaurante Y (lê-se "i").

Voltado para um cenário natural de tirar o fôlego, a ambição do chef com o projeto é atrair estrangeiros, sim, mas também reapresentar a comida brasileira para quem insiste em olhar para fora do país sob o pretexto de que lá está a tal cozinha de qualidade.

Não peguei por uma razão financeira, mas pra preencher um lugar no meu coração, como brasileiro mesmo, conta.

Um dos destinos mais queridos do Brasil ainda não tinha, até hoje, um restaurante de comida nacional, que valorizasse receitas e ingredientes locais, com a excelência que a alta gastronomia vende e exige.

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Quero ver gringo pirando ao comer peixe com açaí

"Tem um caminho longo pela frente, mas quero que ali seja uma mudança de paradigma, trabalhar com a comunidade, ajudar economias pequenininhas ali que vão se ajudar entre si, resgatar a cultura guarani, botar o Brasil pra funcionar um pouquinho mais lá".

Das Cataratas a uma rua em Pinheiros, estará Luiz literalmente debruçado em suas criações.

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