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De estrelas a suicídios: como o Michelin virou o guia n°1 da gastronomia

Imagem: Marcus Brandt/picture alliance via Getty Images

Colaboração para o UOL

20/05/2024 04h00

Para muita gente, Michelin é apenas uma marca de pneus. Para chefs de cozinha, pode ser a maior realização de suas carreiras — e um constante motivo de ansiedade em uma profissão já tão cheia de pressão.

Desde que a empresa francesa decidiu lançar um guia com sua cor vermelha para incentivar as pessoas a viajarem (e gastarem seus pneus) pelas estradas em busca de boa comida, a gastronomia nunca mais foi a mesma.

A origem daquilo que evoluiu para o mais influente sistema de classificação de restaurantes não começou com a intenção de levar os clientes às melhores mesas da França — e depois, do mundo. Mas como uma engenhosa campanha publicitária.

Um pouco de história

Guia Michelin de 1900 Imagem: Daniel SIMON/Gamma-Rapho via Getty Images

André e Edouard Michelin criaram uma das maiores empresas de pneus da Europa do século 19 numa pequena cidade rural francesa. Numa época em que dirigir não era uma tarefa simples — havia poucas estradas — foi preciso dar às pessoas um motivo para tirar o carro da garagem.

Logo na primeira edição, ainda em 1900, o prefácio explicava que o guia tinha o objetivo de dar "ao motorista todas as informações necessárias para viajar pela França — onde abastecer, fazer reparos, bem como onde encontrar um lugar para dormir e comer."

Mas a ideia de descobrir bons restaurantes foi a que mais prosperou, principalmente a partir de 1936, quando os irmãos decidiram criar um guia anual exclusivo com os melhores restaurantes do país como um novo modelo de negócios para a empresa.

O que são as estrelas?

Placa com estrelas Michelin Imagem: Frederic Stevens/Getty Images

Contrataram clientes disfarçados, chamados de inspetores, para determinar se um restaurante era um estabelecimento de refeições que valia ou não a pena visitar— eles tinham que ir, comer e fazer uma avaliação detalhada de cada um deles.

A partir disso, definiram uma métrica — composta de 1 a 3 estrelas — para classificá-los que transformou e influenciou a maneira de se avaliar restaurantes em todo mundo.

O sistema de classificação se aperfeiçoou no decorrer dos anos, mas ainda hoje as classificações implementadas na década de 1930 permanecem: uma estrela significa que o restaurante "vale a pena parar", duas que ele "vale a pena um desvio" e três significa que "vale a pena uma viagem específica".

A Michelin é hoje uma empresa avaliada em quase US$ 25 bilhões e o seu guia, presente em três continentes (América, Europa e Ásia), abrange mais de 30 mil restaurantes — cerca de 75% deles com apenas uma estrela.

França e Japão são os países com maior número de restaurantes com estrelas no mundo, respectivamente. Também são os dois com mais estabelecimentos que receberam a cotação máxima (3 estrelas) do guia — cada um com mais de duas dezenas cada.

O Brasil no caminho

Há edições da França ao Japão (os dois países com maior número de restaurantes com a cotação máxima), da Alemanha a Abu Dhabi, da Malásia à Estônia. Até este ano, o Brasil era o único país da América Latina com uma versão do guia, cuja primeira edição foi realizada em 2015.

Da esquerda para a direita, os chefs Alex Atala, Geovane Carneiro, Felipe Bronze e Ivan Ralston, premiados pelo Guia Michelin 2018 Imagem: Alexandre Virgilio/Divulgação

Pausada depois da pandemia, a versão brasileira finalmente regressa em 2024.

Como outras premiações, [o Michelin] nos dá muita visibilidade e é imprescindível para promover o turismo gastronômico do país, diz a chef Janaína Torres.

Sócia de restaurantes como Bar da Dona Onça e Casa do Porco, em São Paulo, ela acredita que a chancela do guia francês ajuda na autoestima da cozinha brasileira. "Ter essa premiação [no Brasil] nos deixa orgulhosos sobre a nossa cultura, costumes e a diversidade de ingredientes", explica.

O anúncio das estrelas Michelin no Brasil acontece 6 meses depois do país receber outra das muitas premiações que tomaram o mundo da gastronomia: a versão latino-americana dos 50 Best — que volta à capital fluminense de novo em 2024.

O Michelin já não é a única grande honraria da gastronomia mundial — nos últimos anos, listas, rankings e prêmios de todos os tipos tomaram as cozinhas, elegendo de chefs a restaurantes, de sommeliers ao serviço.

Mas é inegável que, quase um século depois, o Michelin é indiscutivelmente a autoridade culinária mais importante do mundo. Entre todos os reconhecimentos, o sonho de todo chef.

Chef francês Alain Ducasse na premiação do Michelin em 2016 Imagem: Frederic Stevens/Getty Images

Determinação e obsessão

Muitos deles admitem publicamente em entrevistas seu desejo de alcançar o firmamento da gastronomia — e, quando já estão lá, de conseguir subir na escala de estrelas.

Mas o esforço é tão grande que há os que decidem encerrar as atividades quando conquistam o ponto mais alto de suas carreiras. Vinte dias depois de receber a sua desejada terceira estrela, em 2018, o chef espanhol Dani García anunciou que ia fechar o seu restaurante homônimo em Madri.

Na época, o chef afirmou que "foi uma decisão muito sensata" e que o prêmio poderia minar a sua "liberdade de fazer coisas novas" depois de mais de 20 anos cozinhando profissionalmente — no lugar onde tinha o restaurante, abriu um restaurante mais casual.

Supinya "Jay Fai" Junsuta Imagem: Roc Meta/SOPA Images/LightRocket via Getty Images

No mesmo ano, a chef Jay Fai já tinha afirmado que sua vontade era devolver a estrela que o Guia Michelin lhe deu pelo seu restaurante de cozinha de rua — conhecido por pratos como o omelete de ostras — em Bangkok.

Fai afirmou que o reconhecimento instantâneo estava até atrapalhando o seu negócio: "Muitas pessoas vêm só para ver e tirar fotos e não necessariamente para comer", chegou a dizer.

Mas para a maioria dos cozinheiros, o Michelin segue sendo o maior reconhecimento a ser alcançado. Alguns contratam consultores que lhes possam ajudar a chegar lá, outros estudam a cartilha completa do caminho para alçar as estrelas e a seguem à risca — investem em sommeliers, passam a servir trufas, etc.

O prêmio não só é uma lufada no ego dos chefs — uma das razões para muitos deles ficarem obcecados com a(s) estrela(s) — como também representa uma considerável melhora nos caixas de seus restaurantes.

Estudos científicos realizados por economistas nos últimos anos demonstram que as estrelas podem ajudar os negócios a ganharem mais — em alguns casos até a duplicar seus faturamentos.

"Ser um restaurante com estrela Michelin contribui para uma melhoria da rentabilidade independentemente da gestão de custos, sugerindo que os clientes estão dispostos a pagar preços mais elevados pelo facto de ser um restaurante com estrela Michelin", diz um estudo publicado em dezembro de 2023.

Muitos chefs — brasileiros e internacionais — corroboram essa visão.

Perdemos muito nestes anos que [o Michelin] esteve em pausa no Brasil. É uma ferramenta muito importante para divulgação, para atrair público estrangeiro, especialmente no Rio de Janeiro, onde estou, que é uma cidade com muitos turistas, afirma Alberto Landgraf.

O chef do Oteque, que ganhou sua segunda estrela Michelin em 2020, diz esperar que a volta do guia ao Brasil "seja uma coisa contínua" e que o "Michelin nos enxergue com o respeito que a gente merece".

Mas sobretudo, afirma ele, "que os restaurantes daqui também saibam que é apenas um guia, que ninguém precisa se matar ou ir à falência por isso".

Benoit Violier Imagem: Francois GOUDIER/Gamma-Rapho via Getty Images
Bernard Loiseau Imagem: Maurice ROUGEMONT/Gamma-Rapho via Getty Images

Pode parecer exagero dizer assim, mas não é. Depois de dois chefs com estrelas Michelin - Benoît Violier e Bernard Loiseau - terem morrido por suicídio em 2016 e 2003, respectivamente, aqueles que os conheciam especularam que a pressão para manter as suas classificações pode ter desempenhado um papel nas tragédias.

Suas mortes estimularam uma conversa mais séria sobre as pressões do trabalho nas cozinhas ou à frente de restaurantes, que são negócios onde problemas de saúde mental e de abusos são recorrentes.

A partir das mortes dos dois, o Michelin passou a adotar políticas mais brandas de como avisar a um chef quando seu restaurante perde uma estrela: tudo para evitar tragédias que possam colocar em risco sua imagem.

Ligações perigosas

Mais recentemente, os executivos por trás do guia têm lidado com outra complexa crise que tem levado algumas pessoas do setor a questionar a sua credibilidade: os laços financeiros do Michelin com os departamentos de turismo locais.

Se antes a principal receita vinha da impressão e venda dos respectivos guias de cada país ou região, com o hábito on-line de leitura por parte do consumidor, o guia impresso deixou de fazer sentido — ainda que seja vendido em alguns países, como Itália, Espanha e Japão.

Guia Michelin impresso, na edição 2006 de Nova York Imagem: Scott Wintrow/Getty Images For Michelin

Agora, o modelo de negócio tem sido a parceria com "Organizações de Marketing de Destinos", como explica a duração do guia, em que órgãos de turismo de países, regiões e até cidades pagam grandes quantias para levar o guia para suas localidades.

Uma recente reportagem do The New York Times revelou que o Michelin só tem buscado expandir para os lugares em que os respectivos escritórios de turismo pagam uma taxa significativa para tê-los ali.

Tanto no Brasil, quanto na Argentina ou no México, outros dois países latino-americanos recém-incluídos na extensão das estrelas, a média investida foi de US$ 500 mil por país.

Na sua recente edição 100% portuguesa — a primeira que o país europeu teve um guia e uma gala só para si, sem a Espanha — o Turismo de Portugal desembolsou um recorde de 800 mil euros.

Para muitos deles, acreditam seus departamentos de turismo, o guia é um bom investimento, capaz de atrair viajantes ávidos por ter boas refeições — e pagar caro por elas, é claro.

Guia Michelin Imagem: Frederic Stevens/Getty Images

Mas nem sempre as expectativas chegam a ser atendidas, vale dizer. Após pagar algumas centenas de milhares de euros para convencer o guia a fazer uma edição local, a Letônia teve um único de seus restaurantes com apenas uma estrela, o que talvez tenha frustrado seus governantes.

Em casos assim, o Michelin tenta reafirmar sua imparcialidade: apesar de ter recebido para estar no país, quer provar que seus inspetores (que chegam a fazer 300 refeições fora por ano) são profissionais sérios e que as suas avaliações não serão colocadas à prova pelo fator financeiro.

Gwendal Poullennec, o diretor internacional do guia, reafirma que a sua ambição maior continua a ser cobrir o mundo inteiro de estrelas. "Só precisamos de mais alguns anos para fazer isso", ele diz.

Resta saber se o modelo que a Michelin está seguindo para tornar sua marca relevante no mundo dos restaurantes vai mesmo ser sustentável no tempo e com as parcerias que tem tentado estabelecer.

Por ora, indiscutivelmente segue como o guia que continua iluminando o céu da gastronomia mundial.

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