Dorival Caymmi nunca conheceu Maracangalha, mas você pode visitar a cidade
A música popular brasileira é rica em histórias e conexões culturais, e poucas canções capturam a essência de um lugar como "Maracangalha", de Dorival Caymmi. Ele transporta seus versos para esse distrito leva esse nome e fica no interior da Bahia. Mas o que pouca gente sabe é que ele provavelmente nunca foi lá.
Um dos maiores compositores da música brasileira, Caymmi nos presenteou com uma narrativa musical que é um verdadeiro tributo à cidade. Lançada em 1945, a música se tornou um clássico rapidamente e uma de suas músicas mais conhecidas. Mas de acordo com relatos dos moradores mais antigos da cidade, ele nunca visitou Maracangalha.
A inspiração para a composição que retrata tão bem o cotidiano do local teria vindo de relatos de amigos e familiares que conheciam o lugar. Um deles foi Zezinho, amigo de infância de Dorival. Ele tinha uma amante na península de Itapagipe e quando ia vê-la, dizia que estava indo para Maracangalha, onde havia uma usina. Voltava para casa levando sempre um pacote de açúcar para justificar a viagem.
Mesmo sem ter visitado a cidade, Dorival Caymmi conseguiu capturar a essência e a beleza do local em sua música. Com cerca de 4 mil habitantes, Maracangalha é um distrito da cidade de São Sebastião do Passé, e fica a cerca de 65 km de Salvador.
Hino da cidade
A relação entre a canção e a cidade é tão profunda que, para muitos, "Maracangalha" se tornou um hino não oficial daquela terra.
Wendel Tomas é fundador da Liga Cultural Maracangalha, nasceu, cresceu e estudou na região. A LCM, composta por jovens locais, tem como objetivo promover cultura, turismo e lazer na cidade, oferecendo experiências autênticas aos visitantes. Há alguns anos, a Liga criou um passeio histórico para contar a história da cidade.
"Em janeiro de 2019, lançamos vários roteiros, incluindo o de Anália, uma figura lendária da região. Embora muitos acreditem serem descendentes dela, não há comprovação documental", conta ele.
A música é um aspecto fundamental da cultura local. A Liga também descobriu uma resposta musical a Dorival Caymmi, que se tornou um ponto forte do turismo local. O que mais encanta os visitantes é a calorosa recepção da comunidade.
Wendel Tomas
Segundo Tomas, a Liga está quase sem atividades no momento por falta de incentivos financeiros e também de interesse da população em participar. Mas, no passado, oferecia um passeio que incluía desde apresentações exclusivas da orquestra local até visitas aos principais pontos turísticos da região. Entre eles, estavam as ruínas da antiga usina de cana-de-açúcar, a praça central, a igreja matriz, o antigo cinema, o armazém brasileiro, o cemitério e um bar local.
Guilherme Dias, jornalista e fundador do Guia Negro, uma plataforma de afroturismo que realiza experiências turísticas em diversas cidades brasileiras, relata sua experiência em uma dessas visitas guiadas.
"Maracangalha é uma cidade que parece parada no tempo. Visitei duas vezes, em 2019 e 2023, a convite de uma amiga que fazia parte da Liga Cultural. A música de Dorival Caymmi, tão famosa, desperta curiosidade sobre a história da cidade, como o túmulo da Anália. É um lugar histórico e especial, mas o turismo ainda não é explorado como deveria ser", conta.
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Quero receberEm seu livro publicado em dezembro de 2023, Afroturismo: Afeto, Afronta e Futuro, ele relata uma passagem de sua visita à cidade:
A história começa nos trilhos que ligam o distrito de São Sebastião do Passé a Salvador. E é a Orquestra de Maracangalha quem nos recebe tocando a música que carrega o nome do distrito. Canção que serve de pano de fundo para essa volta pelo passado, quando trens de passageiros da empresa Leste Brasileiro saíam da estação da Calçada, na região central da capital baiana, e desembarcavam ali ou seguiam para Santo Amaro da Purificação.
Dias conta que o passeio seguiu para o que restou da usina de cana-de-açúcar, construída em 1912. "Denominada de Cinco Rios, mesmo nome de uma fazenda que existia na região, a usina deu pujança ao vilarejo e foi responsável pela construção de casas e financiamento de projetos de Maracangalha".
Quem foi Anália?
No cemitério de Maracangalha está o túmulo de Maria Amália Silva, conhecida como uma das mulheres mais bonitas do distrito e associada à figura de Anália da música de Caymmi.
"Assim como o compositor nunca foi ao distrito, Anália nunca teria existido. O nome da mulher foi inserido na canção para rimar com o nome do lugar que o cantor achava", destaca Dias.
A avó de Wendel Tomas, de 87 anos, diz que se lembra da presença de Amália nas rodas de samba locais. Angélica Campos Santos ressalta que Amália era uma verdadeira "sambadeira", demonstrando um amor profundo pelo ritmo. Ela não sabe afirmar se a Anália de Caymmi é a mesma pessoa, mas enfatiza que Amália tinha um forte vínculo com o samba e apreciava as comparações feitas a ela.
Na cidade, uma das poucas lembranças da música de Caymmi é a praça, originalmente construída em formato de violão, mas que hoje já está mais urbanizada e perdeu a forma. Ela costumava ser o local de encontro de moradores e foi nomeada em homenagem ao compositor.
Apesar de sabido que Caymmi nunca esteve ali, alguns residentes afirmam que ele esteve na inauguração da praça e dizem até que têm autógrafos dele. "Ao contrário de Caymmi, eu posso dizer: 'Maracangalha, eu fui!'. E aposto que se ele tivesse ido, a música teria mais do que apenas sete versos", conclui o jornalista.
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