Com técnicas de civilizações antigas, praia do Bonete vê sua pesca renascer
Marcel Vincenti
Colaboração para Nossa
31/05/2024 04h00
Um grupo de quatro amigos apaixonados pela pesca artesanal de Ilhabela, no litoral paulista, está transformando a realidade da praia do Bonete ao utilizar os peixes locais para produzir conservas, charcutaria, defumados e condimentos a partir de antigas técnicas de povos de diversos países, como Japão e Itália.
Por causa de seu isolamento, o Bonete conviveu, por muito tempo, com um fornecimento de energia insuficiente para atender todas as necessidades de seus lares e negócios. E isso sempre prejudicou os pescadores da vila, que precisavam vender o mais rápido possível seus peixes, a preços baixíssimos, por causa da parca estrutura para refrigerá-los e conservá-los.
Porém, esta realidade começou a mudar depois da chegada ao Bonete do Projeto A.MAR.
Interagindo com a população do Bonete ao longo do tempo, vimos que faltava estrutura para a conservação dos seus pescados. Boa parte do que era trazido nas canoas se perdia. Além disso, havia os baixos preços pagos pela cooperativa da cidade pelos pescados, o que diminuía ainda mais a renda dos trabalhadores.
Conta o administrador paulistano Rodolfo Vilar, um dos fundadores do A.MAR.
Rodolfo e seus parceiros, então, começaram a pensar em soluções para prolongar o prazo de conservação dos pescados capturados na região e, viajando pelo mundo, deram início a uma extensa pesquisa sobre métodos antigos de preservação de peixes fora do gelo, que pudessem ser aplicados no Bonete.
"No Bonete, percebemos que muitas famílias cozinhavam com lenha. Então, começamos a ensinar uma das famílias de pescadores da comunidade, a do seu Elias, a desenvolver processos de defumação dos peixes, para aumentar seu tempo de validade e, de quebra, lhes dar maior valor de mercado", conta Rodolfo.
O fundador do A.MAR usou suas viagens pelo planeta para entender o que antigas civilizações faziam e o que países do mundo moderno fazem para preservar seus pescados — a defumação nos fogões à lenha ensinada por eles à família do seu Elias, por exemplo, foi inspirada em técnicas ancestrais de países nórdicos, visitados por Rodolfo.
E, com a ajuda dessas jornadas pelo globo, o projeto se especializou em quatro outros protocolos (além da defumação) que poderiam ser usados pelos pescadores para conservar e valorizar seus pescados: salga, conservas, fermentação e charcutaria.
Para melhorar seu conhecimento sobre conservas em lata, por exemplo, Rodolfo esteve em Portugal. E, na Itália, ele embarcou em uma jornada imersiva para realizar estudos detalhados da charcutaria.
Viagens ao redor do mundo inspiram preparos de peixes
Todo esse trabalho tem dado origem a dezenas de itens gastronômicos que estão sendo desenvolvidos pelo A.MAR.
Com peixes e frutos do mar comprados de comunidades de pescadores do Bonete e de outras praias de Ilhabela, o projeto tem criado produtos valorizados no mercado da gastronomia, como bottarga, sardella, tonno sott'olio e diversos tipos de peixes defumados, além de condimentos e preparos complexos como o molho de peixe nam pla (muito consumido na Tailândia) e o katsuobushi (feito a partir da fermentação e defumação do peixe bonito e que, em lascas, é usado para agregar muito sabor a pratos da culinária japonesa).
Rodolfo, por exemplo, passou 18 dias no Japão para aprender sobre o katsuobushi. Em território nipônico, ele trabalhou com verdadeiros mestres da técnica para poder desenvolvê-la no Brasil, dentro do Projeto A.MAR.
"O bonito, usado na produção do katsuobushi, é um peixe presente nas águas de Ilhabela. Mas costuma ser descartado depois de ser pego pelos pescadores da ilha, pois, tradicionalmente, não tem valor comercial", conta ele.
Ao trazer a produção do katsuobushi para o A.MAR, Rodolfo espera dar valor para o bonito na ilha e, assim, beneficiar economicamente quem vive da pesca artesanal na região.
"Para desenvolver nossos produtos, compramos quase 100% da matéria-prima das comunidades de pescadores de Ilhabela", explica Rodolfo. Hoje, o projeto A.MAR realiza boa parte da capacitação dos pescadores em um local batizado de Fish Lab, na Vila Salga, Praia da Armação, em Ilhabela.
No Fish Lab, o projeto mantém pesquisas constantes sobre antigos métodos de conservação de pescados e abriga um espaço chamado Escola de Alimentos do Mar, um centro de estudos que aborda temas que vão do processo de abate e manejo do pescado até assuntos mais profundos, como microbiologia.
Nosso grande objetivo é criar condições para que a pesca artesanal não desapareça, para que ela esteja em equilíbrio com o meio ambiente e também criar protocolos que possam ser utilizados por diversas comunidades de pescadores artesanais em Ilhabela e em outras partes do Brasil.
Explica Rodolfo Vilar
Em busca do salmão selvagem na Patagônia
Recentemente, Rodolfo e seus companheiros navegaram por remotíssimos lugares da região da Patagônia, em uma viagem que teve como foco o salmão selvagem (e que foi feita a bordo do veleiro Kotik, famoso por realizar lendárias viagens à Antártica).
"Ficamos mais de 20 dias navegando. E 18 desses dias foram sem comunicação com o mundo exterior", diz o fundador do A.MAR. "Passamos por várias ilhas, enfrentamos ventos violentos e chegamos a locais sem nenhuma presença humana além da nossa".
Entre montanhas nevadas, bosques paradisíacos e uma água gélida, eles pescaram o salmão selvagem e aprenderam técnicas de conservação da carne do peixe. E, documentada em vídeo, a viagem teve outro objetivo: mostrar como o salmão selvagem é diferente do salmão consumido nos restaurantes do Brasil.
"O salmão de cativeiro consumido no Brasil pode ser prejudicial à saúde e ao meio ambiente", diz Rodolfo. "Queríamos mostrar que, no Brasil, é possível consumir uma enorme quantidade de pescados não convencionais que são bem mais saudáveis e saborosos".
Para conhecer mais do projeto, acesse: instagram.com/projetoa.mar.