Igreja em Roma tem afrescos com palavrão e até santo da auréola quadrada
Se Roma pudesse ser comparada a uma especialidade gastronômica, com certeza seria uma "lasanha" ou uma "torta mil folhas". Nenhuma outra cidade concentra tantas "camadas" de história por quilômetro quadrado como a capital italiana.
Muitos dos monumentos da cidade eterna são o emblema de uma estratificação arquitetônica que, no bem e no mal, contribuiu com a sua conservação.
No passado, não existiam os vínculos de tutela urbanística que conhecemos hoje, nem a consciência que era necessário preservar as características originais dos edifícios para as gerações futuras.
Sendo assim, muitos imperadores não pensavam duas vezes antes de construir seus palácios, arcos monumentais ou complexos termais sobre os edifícios erguidos por seus antecessores.
No centro histórico de Roma, um dos lugares que melhor reflete essa estratificação é a Igreja dedicada a São Clemente, reconhecido como o quarto papa, Clemente 1°. Segundo a tradição, ele foi exiliado na Crimeia e afogado com uma âncora amarrada ao pescoço no mar de Azov.
O que não falta na capital são edifícios de culto, mas São Clemente não é uma igreja qualquer. Localizada a menos de 500 metros do Coliseu, ela representa um fascinante microcosmo da evolução religiosa e arquitetônica romana ao longo dos séculos.
Seria mais correto defini-la uma máquina do tempo, já que possui camadas de história que remontam desde primórdios do Cristianismo até a época medieval. Tudo isso com diversas "pitadas" de originalidade.
Para descobrir as suas surpresas, você precisa percorrer os seus três níveis, até chegar aos subterrâneos.
Auréola inusitada
Entrando na basílica de São Clemente, erguida no século 12, a primeira coisa que salta aos olhos é o seu colorido piso geométrico de mosaicos cosmatescos (nome derivado da estirpe de artesãos que se dedicavam a esse trabalho), e os afrescos que decoram a capela dedicada à Santa Catarina. Elementos fascinantes sim, mas não inéditos.
As surpresas começam no andar inferior. Ao atravessar a porta à direita da bilheteria o visitante fará uma viagem no tempo, percorrendo cinco séculos de história que contam a sobreposição de civilizações e a evolução da fé religiosa.
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Quero receberEm 1857, logo abaixo da igreja mais moderna, o prior de São Clemente descobriu uma basílica muito mais antiga, provavelmente construída no século 4.
Para começar, um de seus principais afrescos, aquele da Ascensão (século 9), é mais que curioso. Do lado esquerda dessa pintura, o papa Leão 4° foi representado com uma auréola quadrada e a inscrição "Sanctissimus Dom[inus] Leo Q[ua]rtus P[a]p[a] Romanus".
A auréola quadrada era usada quando as figuras representadas nos afrescos tinham aura de santidade, mas ainda eram vivas, como no caso do papa Leão 4°. Por esse motivo, os históricos deduzem que o afresco foi realizado durante a época de seu pontificado.
"Puxem, filhos da p*"
A auréola quadrada não é a única iconografia insólita nessa igreja. Outra "excentricidade" ou irreverência é o afresco dedicado a Sisinnio, nobre cidadão de Roma. Ele é o segundo personagem à direita no afresco.
Na verdade, essa pintura pode ser considerada uma precursora das histórias em quadrinhos porque contêm diálogos escritos em proximidade dos personagens. O afresco conta o episódio no qual Sisinnio, que não era religioso, seguiu a esposa Teodora, convertida ao catolicismo.
Ao perceber que ela entrava em uma catacumba para frequentar uma missa celebrada por São Clemente, ele ficou furioso. Segundo a lenda, como pagão ele não poderia presenciar uma missa e por isso foi punido com a cegueira e a surdez.
A esposa rezou por ele, invocando um milagre, e graças a São Clemente teria reconquistado a visão e a audição. Só que em vez de agradecer a benção, Sisinnio tramou uma vingança. Pediu aos seus soldados que prendessem o santo. Com a visão ofuscada, talvez por uma intervenção divina, em vez do corpo de São Clemente os soldados prenderam uma coluna pesadíssima que não conseguiram arrastar. Teria sido naquele momento que Sisinnio teria pronunciado um palavrão:
Fili de le pute, trahite! (Puxem, filhos da puta!).
No afresco, a escrita que marca a passagem histórica do latim para a língua italiana, fica na parte direita, ao lado do da figura de Sisinnio.
Do nada: altar
Continuando essa viagem underground, descendo ainda mais escadas os visitantes ouvem o barulho de um riacho. Provavelmente, é o mesmo que alimentava o lago artificial da antiga residência do imperador Nero, que em seguida cedeu espaço ao Coliseu.
Mais alguns passos nos subterrâneos da basílica os turistas encontram outra surpresa: um antigo templo com um altar dedicado à Mitra, uma divindade originária da Pérsia, atual Irã.
Antes que o imperador Costantino se convertesse ao Cristianismo e legalizasse esse culto, Roma era uma cidade multiétnica e, provavelmente, foram os legionários que serviam o império em suas fronteiras orientais aqueles que "exportaram" o culto de Mitra até Roma.
O culto de Mitra era reservado exclusivamente aos homens e no altar presente na igreja de São Clemente fica um relevo da divindade que mata um touro e uma sala com bancos de pedra na qual eram realizados os banquetes rituais em sua homenagem.
Como se não bastasse, na basílica você também encontrará uma catacumba, do século 4 ou 5, com capacidade para armazenar dezesseis pessoas. Mais de dois milênios de história humana, em apenas três andares, no coração de Roma.
Como visitar
Basílica de São Clemente em Roma: entrada na Piazza San Clemente. Aberta de segunda a sábado das 9h às 12h30 e das 14h às 18. Aos domingos e feriados das 12h às 18. Ingressos: 10 euros (cerca de R$ 57)
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