Catalão estrelado 'descobriu' Japão em SP e defende comida italiana 'raiz'
Fazer Gerard Barberan desacelerar é tarefa complicada. Na vida ou nos negócios, ele age na velocidade de sua fala e repete vez ou outra: "qué más? qué más?". O sotaque forte e as palavras ora em português, ora em castelhano, ora em catalão são ingredientes para memórias tão variadas quanto seus restaurantes.
Criado pelos avós, de criança a adulto, começou a cozinhar não tanto por gosto, mas para fazer as coisas para ele mesmo e aos 10, 12 anos já inventava seus pratos.
Sempre fui muito 'delicado' com comida. Ainda sou.
Delicado aqui pode ser traduzido como o nosso "chato pra comer" e entre a vasta lista do que não come de jeito nenhum está até tomate cru.
"Sou o catalão que pede 'sem tomate'. Pão molhado é comida de galinhas. A acidez da água do tomate não me faz feliz", declara sobre o amado pan tomaca típico da Catalunha. Vejam que a mistura dos idiomas tem um quê de poesia.
Entre o japonês recém-estrela Michelin Kuro, o bar Shiro e as quatro unidades da italiana Bottega Bernacca, sobram da terra-natal as croquetas da avó - a dela avó, mais seca. A de Gerard, cremosa.
"Não vou falar que a minha é melhor. Deus me livre. É diferente", conta às gargalhadas sobre o aperitivo irresistível à base de frango assado no forno, tomate e cebola.
Da cozinha aos negócios
Por volta dos 16 anos, Gerard começa a se apaixonar pelos restaurantes e pelo serviço de sala de pratos finalizados na mesa, como crepe suzette e steak tartare.
Sou cozinheiro não pela cozinha, mas pelo serviço. E sigo sendo um amante da boa mesa e da cozinha. Gosto de estar numa mesa confortável com uma boa taça de vinho. Para mim é vital que os talheres pesem e que os guardanapos sejam de tecido bom, conta.
A trajetória entre panelas durou um bom tempo e em vários lugares, como cidades italianas, Barcelona, Ibiza, Abu Dhabi ("tenho 'culo' inquieto"), mas seu gosto por conduzir o baile entre receitas e serviço foi o que o trouxe para o Brasil, aos 35 anos.
Como cozinheiro, ainda opina, prova, ajuda a criar. Como gestor, no entanto, o olhar é por padronizar, fazer crescer, administrar gente - neste caso, nada menos que 80 funcionários com quem lida diretamente.
"Sinto falta de estar na cozinha e passo mal. Todo mundo acha que passo bem, porque viajo e como em restaurantes, mas minha maior frustração é não poder ter tempo e chegar às 8h no restaurante, sem que ninguém me encha o saco no telefone, para cozinhar e só".
Hoje, seu prazer é ver a casa cheia e todos sorrindo - clientes e funcionários.
Só fico totalmente satisfeito quando supero a cada dia minha marca anterior. Pior dia é quando não tem movimento. Nos cansamos e começam as fofocas e os problemas. Com a casa cheia, ninguém nem tem tempo de pensar neles. Você vai e AY!, grita tão empolgado que até bate palmas.
Entrar em gestão é um caminho sem volta, "porque você não vive mais tranquilo". A rotina, no entanto, melhorou. "Como cozinheiro, você acorda todos os dias com ansiedade. No caminho para o restaurante, já tinha todo plano de trabalho. E no fim do dia, já está pensando no dia seguinte. Também passa 16 horas imóvel".
Planeta São Paulo
No grupo Cipriani, que o levou para Europa e Oriente Médio, conheceu Davide, o senhor Bernacca. Em 2015, no inverno de lá, pensava que faria no verão e vem ao Brasil pela primeira vez para levantar o Bottega Uno, na Cerqueira César, e fica somente dez dias. Depois, em 2016, volta para levantar o Bottega Due, de junho a novembro.
"Era um mundo desconhecido, referência zero. Se está na Europa, quer ir para Londres (oportunidade que Gerard teve e rejeitou), se está em Ibiza, quer ir para o Sudeste Asiático. Pouca gente olhava para cá", conta.
E assim sim começa a conhecer a cidade, os cozinheiros e começa a aprender um pouco do Brasil.
Havia e há liberdade de fazer muitas coisas que ninguém fez. O brasileiro está muito mais disposto a aprender com quem tem a somar - europeus não sabem mais, sabem diferente. Se tem o que acrescentar, que ótimo. Se não, só atrapalha.
a.J.: antes do Japão
"Como bom europeu, não tinha a cultura do sushi", lembra. E foi em São Paulo o primeiro contato com uma paixão que depois viria a ser desafio - e glória.
"Passei metade do almoço procurando na internet informações sobre comida japonesa e serviço de saquê e explorei muito o universo de 2016 a 2018", relembra. Porém, quando surgiu o Kuro, também no grupo Bernacca, Gerard participou pouco e tinha uma outra visão do que queria para um japonês.
Seria uma outra versão do Geiko San (também do grupo), sem salmão, cream cheese ou fois gras. E em referência mais a parte tradicional do sushi, e não a abrasileirada.
Na época, seu toque foi trazer o Binchotan Charcoal, um carvão vegetal japonês usado em substituição do maçarico nos sushis grelhados, que não faz fumaça, nem espalha cheiro - uma das visões majestosas do omakase, diga-se.
"De uma tarde para a outra, porém, assumo o Kuro", recorda.
Segundo o chef-executivo, durante um ano antes da pandemia, todo dia era aprender. "Na época não tínhamos reserva, eram três omakases diferentes, casa muito cheia e estávamos perdidos", assume.
d.J: depois do Japão
"O Kuro realmente muda quando consigo ir ao Japão pela primeira vez, em 2023. Hoje, a gente compartilha muitas coisas com pessoas de lá", conta empolgado ao lado da esposa e braço direito, a também modelo Fernanda Ferrer - brasileira e o oposto do marido: de fala calma e tranquila.
De volta ao país em 2024, Gerard se orgulha de duas coisas: ter conseguido cozinhar massa e risoto, em Hiroshima, e ter explorado o mercado de Toyosu, um dos mais tradicionais e reservados do Japão.
"Enchi o saco de uma distribuidora de ouriços pelo Instagram, contei da minha ida ao Japão e a pessoa me abriu as portas", entrega. O fato de, do outro lado da rede e do mundo estar a filha da família que fala inglês ajudou bastante, claro.
Sobre o mercado, o chef conta que os peixes e frutos do mar impressionam, claro. "Não tanto um espanhol, que conta com variedades igualmente celebradas pelo mundo", pondera.
Gerard e Fernanda, porém, se apaixonaram perdidamente pelo arroz local.
Não sei como descrever. Ele brilha. Ele é bom sozinho. É o que é mais diferente. Não tem igual.
Por lá, fizeram um risoto de arroz orgânico local. "Quando fervia, pensei que não daria certo. Parecia um mingau, mas nunca fiz um arroz tão bom. Fiz um risoto de tomate, simplicidade absoluta".
O intercâmbio foi tão prolífico que amizades nipônicas também virão ao encontro de Gerard durante este ano em datas a serem confirmadas. A ideia é reproduzir o mesmo menu que Gerard levou a Hiroshima.
"Quando expliquei o motivo da pasta al dente na culinária italiana, entendi que para eles a questão da digestão, da saúde, está intrínseca ao alimento. Entendem muito rápido as coisas boas de verdade. E conseguem aperfeiçoar muitas coisas que estão distantes da cultura japonesa. Aí romantizo tudo o que você quiser", brinca.
Com toda a experiência, Gerard afirma que, no Kuro, chegaram ao que queriam e ao que acreditavam. A resposta do mercado vem em forma de reservas cada vez mais disputadas e, claro, a estrela Michelin recém-conquistada, em maio.
Estamos surpresos com o prêmio, esse reconhecimento nos dá ainda mais força para seguir trabalhando, declara.
Restaurante com siesta? Queremos
"Restaurante espanhol, se tudo sair bem - já que não depende de Deus, mas do senhor Bernacca - no ano que vem", entrega seus planos de um resgate das origens em um modelo mais "raizera", como ele mesmo descreve.
"Aqui não tem muitos restaurantes espanhóis e o que tem é muito adaptado ao paladar brasileiro", acredita.
Em seu "espanhol ideal", Gerard quer vender miúdos, servir tortilla com o interior cru, jamon cortado na hora, croquetas sem nenhuma maionese em cima. "Acredito que hoje ainda me frustraria", diz.
Não faria um restaurante grande, de toalha, mas um boteco com tapas espanholas. Jamones pendurados, chope de cerveja. Vou fazer um restaurante espanhol com camas para siesta, brinca o catalão, que, sem tempo, não pratica a mais bela herança espanhola de dormir após o almoço há um par de anos.
Por ora, além de seguir mexendo e coordenando as casas já existentes, com projetos de diversificação entre as bottegas, virá um projeto de 180 lugares próximo ao portão cinco do Parque do Ibirapuera. "Acredito que paramos de bottegas por aí".
Simplicidade reina
Durante a conversa, regada a carpaccio de beterraba, croquetas (senhoras croquetas) e massa recheada de ossobuco, Gerard menciona pequenos mandamentos da cozinha que satisfaz e não agride.
"Pimentão e alho não entram em seus pratos por memória digestiva. Na casa da minha avó, o vermelho só 'pulava' no preparo dos molhos", lembra.
O alho, por sua vez, só o agrada se cru. "Uma vez que tem contato com o calor, a fermentação age e ele se torna indigesto. E aqui se usa muito mal, muito frito, meio torradinho. E não gosto. O alho precisa estar perfeito", explica.
A herança mediterrânea das bottegas exige especiarias, mas bem poucas, como pimentas, louro, cominho, páprica, canela e noz moscada. Tudo em nome da culinária ligeira.
"Aqui sofro um pouco, como em casa, que lota de especiarias tudo. Por que colocar cúrcuma em tudo? A gente passa mal com alguns temperos. A comida mediterrânea não cai mal", acredita.
Entre seus pratos favoritos nas casas estão as croquetas, claro, e o espaguete com molho de tomate - produto, aliás, que não sobra na geladeira. "Uma coisa que temos em todas as casas é o uso completo do molho. O que sobra se usa para a berinjela à parmegiana ou molho do peixe", conta.
A simplicidade é o mais difícil de fazer. Um cacio&pepe, uma bolonhesa, uma carbonara. Comida boa feita com respeito sempre triunfa.
Ao final da conversa, com o celular na mão - que permanecera quase duas horas com a tela virada pra baixo - Gerard se despede da boa mesa, seu lugar favorito.