Tambor, ervas e (muita) porrada: as diferentes festas juninas pelo mundo
Felipe van Deursen
Colaboração para Nossa
14/06/2024 04h42
São João Batista é um santo especial. Para começar, a Igreja Católica celebra com mais vigor a data de seu nascimento, quando o normal é lembrar a data de morte.
Só que não se sabe quando exatamente esse pregador itinerante que batizava seus seguidores nas águas do Rio Jordão nasceu. Sabemos que ele teve muita influência e que, também por isso, acabou executado por ordem do governador da Galileia, Herodes Antipas.
Relacionadas
Tido como precursor de Jesus pelos evangelhos, São João já era celebrado no dia 24 de junho no século 5º d.C.. Na época, a festa era uma das principais do calendário litúrgico, tida como uma espécie de "Natal de junho".
O paralelismo tem razão de ser. Quando a Igreja determinou que o nascimento de Jesus seria celebrado em 25 de dezembro, o de seu primo João deveria ser seis meses antes. A data escolhida só não foi o 25 de junho por causa da forma de se contar os dias do mês na Roma antiga, de trás para frente.
Como junho tem 30 dias e dezembro, 31, ficou assim: o Natal seria o oitavo dia a partir de 1º de janeiro e São João, o oitavo dia a partir de 1º de julho (sempre contando de trás para frente no calendário). É o que explica o padre Francis Weiser em "The Holyday Book" ("O livro dos dias santos", sem edição brasileira).
A partir de 1582, com a adoção do calendário gregoriano na Europa, que corrigia falhas de seu antecessor, o calendário juliano, o solstício de verão passou a cair entre 20 e 21 de junho. Isso deixou a data, uma das mais importantes do ano para antigas religiões, para a agricultura e para a organização da vida social, muito próxima do Dia de São João. Assim, antigos costumes, anteriores ao cristianismo, também se aproximaram à festa do santo.
Celebrações ligadas à natureza e ao sol se misturaram ao culto ao santo e mártir, numa mistura sintetizada pelas fogueiras. "Elas são acesas nas montanhas e no topo das colinas na véspera de sua festa", escreveu Weiser. E completou:
Ardem brilhante e silenciosamente ao longo dos fiordes da Noruega, nos picos dos Alpes, nas encostas dos Pireneus e nas montanhas da Espanha
Como tanto o santo como o solstício são símbolos de renovação, a festa se desenvolveu com esses princípios em diversos países do Ocidente, cada um criando elementos próprios.
As festas juninas do Brasil se enquadram nessa colorida e diversa lista de celebrações. Na Lituânia, as pessoas saúdam o nascer do sol, saltam fogueiras e lavam o rosto com o orvalho da manhã. Em Portugal, o São João do Porto, que influenciou as festas brasileiras, tem balões de ar quente, fogos de artifício e muita sardinha assada na brasa.
Conheça outras quatro festas de São João pelo mundo. Algumas têm semelhanças mais claras com as do Brasil. Outras, nem tanto.
Itália - Folia em Florença
O cristianismo chegou à Toscana logo nos primeiros séculos da nossa era. São João foi escolhido padroeiro da cidade, substituindo o deus romano Marte, cuja estátua seguiu enfeitando a Ponte Vecchio, a principal de Florença, até bem tarde: só em 1313 ela foi levada por uma enchente e sumiu.
A capital da Toscana não esconde essas raízes pagãs nas festas que celebram tanto o santo e profeta como, mesmo que não oficialmente, o solstício de verão. Desde a Idade Média fogueiras se espalhavam pela cidade e os campos.
A introdução da pólvora, no século 14, permitiu o desenvolvimento daquilo que é, até hoje, a maior atração da festa, os fogos de artifício. Destacava-se a "girandola", uma espécie de roda giratória decorada com fogos e pendurada nas ruas.
Claudio Bini, presidente da Sociedade de São João Batista, que organiza os eventos desde o século 18, explicou a um site local que a festa ganhou novas proporções na época de Cosme 1º de Médici, o primeiro grão-duque da Toscana, no século 16:
Os fogos de artifício eram disparados da Piazza della Signoria, mas desde 1923, por questões de visibilidade e segurança, eles foram transferidos para a Piazzale Michelangelo, onde estão até hoje
Ao trocar a praça central de Florença por uma mais afastada, no alto de um morro, o festival ficou ainda mais vistoso. Mas o São João florentino não são só fogos de artifício. A programação é intensa: há missas, paradas, uma corrida noturna e a final do torneio de "calcio storico fiorentino", esporte local que mistura futebol, rúgbi e boas doses de violência, dignas de uma modalidade surgida na Idade Média.
Venezuela - Patrimônio da humanidade
As festividades podem se estender de maio a julho, mas, é claro, o ponto alto é a virada do dia 23 para o 24 de junho. De todas as muitas manifestações que celebram São João, a venezuelana é a única na lista de patrimônios imateriais da Unesco.
A festa nasceu no século 18, no período colonial, e as influências católicas espanholas, que traziam o culto a João Batista, se misturaram a expressões musicais, verbais e físicas conectadas à África Subsaariana, explica a Unesco. Os "sanjuaneros" tratam a data como uma celebração de resistência e liberdade que honra os antepassados escravizados.
As festas são marcadas por dança, cantos e percussão, e cada comunidade tem características próprias.
Em Curiepe, onde os negros cultuavam um príncipe africano chamado João Congo, cuja adoração acabou mesclada à de São João, a música gira ao redor do mina, um enorme tambor que pode ter dois metros de comprimento e é tocado por várias pessoas ao mesmo tempo.
Em diversas cidades, a procissão termina com a imagem de São João sendo batizada no rio. Muitas pessoas acompanham o mergulho para uma bênção coletiva.
Dinamarca - Fogueiras para Sankt Hans
A "sankthansaften", ou "noite de São João", em dinamarquês, é uma popular mistura de elementos cristãos e pagãos no país nórdico. Ainda hoje, as fogueiras são comuns na noite de 23 e no dia 24 de junho.
Segundo o Museu Nacional da Dinamarca, citando o cronista Olaus Magnus, que em 1555 escreveu sobre a história dos povos escandinavos, a festa era bastante popular na época. As pessoas, "sem distinção de sexo ou idade, se reúnem em praças ou campos para acender fogueiras, dançar e contar piadas".
A Igreja criticava algumas características da comemoração, e chegou a abolir o feriado, em 1770. No século 16, um padre chamado Niels Hemmingsen escreveu que a noite era celebrada com "danças, bebidas e guirlandas", e que as pessoas viviam de "acender fogueiras, gritar, gritar e beber a noite toda".
Hoje a festa pode ser mais comportada, e ainda tem que lidar com os problemas das mudanças climáticas. Ano passado, em diversas regiões do país, as fogueiras foram proibidas, pois representavam um perigo em tempos de seca severa, segundo o jornal dinamarquês "The Copenhagen Post".
Bulgária - Ervas da madrugada
"Eniovden" é o nome búlgaro para o dia de solstício de verão. A Igreja Ortodoxa do país também celebra São João em 24 de junho, então a junção das datas é mais uma mistura de costumes cristãos e pré-cristãos.
Segundo a Associação História Búlgara, os trácios, povo que habitou o que hoje é a Bulgária na Antiguidade, acendiam fogueiras e brincavam de saltar sobre elas.
A tradição cristã mistura-se com o ocultismo, com tradições e lendas de tempos longínquos, que foram transportadas dos tempos pagãos e alteradas em homenagem à nova religião cristã
A data era vista também como o início do ano novo, e esse espírito de réveillon resiste. Quem assistir ao nascer do sol no "eniovden" terá saúde pelo ano inteiro, e as ervas colhidas pouco antes da alvorada têm poderes curativos maiores do que em todos os outros dias.
Segundo uma reportagem da "Radio Bulgaria", estação oficial do governo, herbalistas modernos ainda hoje acordam de madrugada para colher plantas medicinais.
Além disso, de acordo com a crença, a alegre dança do sol sobre as águas no alvorecer tornam todos os rios, lagos e nascentes abençoados. É um jeito diferente de enxergar a relação entre São João, o batismo e a água. Mas não tanto.