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'Órfãos': fim do Girondino, a cafeteria mais antiga de SP, gera comoção

Cena da rotina do Café Girondino, no centro de Sao Paulo, em foto de 2015 Imagem: Keiny Andrade/Folhapress

Ana Mosquera

Colaboração para Nossa

25/06/2024 05h00

Nenhuma história começa pensando em terminar. Relacionamentos, projetos, negócios, a própria vida. Há poucas semanas, quem passasse à porta do café de três andares, 400 metros quadrados e 150 anos em pleno Centro Histórico de São Paulo não imaginaria que ele estava a dias de fechar as portas.

Considerado a cafeteria mais antiga da capital paulista, o Café Girondino foi fundado na esquina da Rua 15 de Novembro com a Praça da Sé em 1875, teve as atividades encerradas pela primeira vez em 1920 e retornou em 1998 no cruzamento das ruas São Bento e Boa Vista — endereço em que estava localizado até o dia 3 de junho.

Imagem do incício do Café Girondino, no centro de Sao Paulo Imagem: Reprodução/Instagram

Sem aviso prévio aos clientes cativos, o fechamento causou espanto e comoção. Trabalhadores do entorno, visitantes estrangeiros, guias turísticos, influenciadores e até personalidades como o ex-secretário de Cultura de São Paulo, Alê Youssef, demonstraram tristeza com a notícia nas redes sociais.

Em suas duas temporadas, o Girondino ocupou o Triângulo Histórico, região importante do centro da cidade formada por prédios centenários, como o Theatro Municipal, o Palacete Teresa (onde fica a Casa de Francisca), o Shopping Light, os edifícios Martinelli e Matarazzo, atual sede da Prefeitura. O que poderia ser um aglomerado de locais na maior cidade da América Latina vem se consolidando como um atrativo cada vez maior para moradores da cidade e de fora dela.

Afetados pela pandemia da covid-19, alguns negócios fecharam no auge da crise sanitária e sobreviveram arrastando seus resquícios. Com o turismo freado e a migração dos clientes habitués — trabalhadores de bancos e funcionários públicos das mais diferentes instâncias — para o home office, o Girondino não resistiu.

Preferimos encerrar e honrar com os colaboradores, antes que tivéssemos um rumo pior. Mas seu fechamento não significa a decadência do Centro. Pelo contrário. Ele está voltando, nós é que não tivemos fôlego para acompanhar a retomada, diz Felippe Nunes, diretor comercial do Café Girondino, que começou na casa como office boy.

No cenário pré-pandemia, a casa contava com 120 colaboradores, servindo 1.000 xícaras de café por dia, e havia até uma intenção de funcionar por 24 horas. Na data do encerramento, restavam 35 funcionários, 400 expressos diários e um faturamento de 40%, comparado ao início de 2020.

Café Girondino, no centro de São Paulo Imagem: Reprodução/Instagram

"Ficamos órfãos"

Localizado ao lado do Metrô São Bento, fundado em 1975, o Girondino permanece com as portas de ferro fechadas, mas por uma das laterais envidraçadas ainda é possível enxergar o primeiro andar da cafeteria.

"As cortinas colocadas na metade inferior das janelas deixavam à mostra uma eterna espera pela passagem de um bondinho", fantasia o artista visual e técnico gráfico Felipe Romano. Em suas idas frequentes à casa, ele tomava tantos expressos quanto o tempo permitisse — sempre guiado pela observação, que por vezes rendia inspirações para suas pinturas.

Cena da rotina do Café Girondino, no centro de São Paulo, em foto de 2015 Imagem: Keiny Andrade/Folhapress

Eu me sentava em uma posição em que pudesse ver as torres do Mosteiro de São Bento, onde tantas vezes fui para rezar a oração de vésperas, às 18h, religiosamente seguida do 'cafezinho do outro lado da rua'.

A relação simbiótica do Café com o Mosteiro - inaugurado em 1590 e localizado na diagonal do Girondino - parece ter sempre existido, ainda que a casa não tenha nascido ali. "Toda vez que eu ia à 25 de março comprar materiais para aulas e cursos, fazia o ritual de comprar o Pão São Bento, na Padaria do Mosteiro, e passar no Girondino para tomar um café", diz a estilista e professora de tricô Cristiane Bertoluci.

Por um período, chegou a ser a parada oficial dela e das colegas de um coletivo de tricô, assim que deixavam o agito da rua comercial. "Íamos para o Girondino fazer o check-list dos materiais e dividi-los. Era nosso momento de descanso e conversa depois das compras e de fugir dos ambulantes com suas máquinas de massagem."

Em sua última ida ao café, ela experimentou, enfim, o arroz doce, e a amiga e analista de marketing Luana Carmen Rios, o café gelado.

A cafeteria foi moldando o centro assim como o centro foi moldando a cafeteria, e me encanta o contraste entre o antigo e o novo. Acho que as marcas atuais precisam levar o Girondino como exemplo de perseverança e dedicação, diz Rios.

Cena da rotina do Café Girondino, no centro de São Paulo, em foto de 2015 Imagem: Keiny Andrade/Folhapress

Além da importância para a história coletiva, o Girondino faz parte de muitas memórias individuais e afetivas dos que cruzaram seu caminho. É o caso da escritora e funcionária pública estadual Anna Clara de Vitto: natural de Santos, mudou-se para São Paulo em 2006, para estudar Direito no Largo São Francisco.

E também o romance. Foi nas escadarias do Palácio da Justiça que avistou seu atual marido pela primeira vez e foi na mesa que se tornou cativa no Girondino que o pedido de namoro foi oficializado.

O Café foi o marco de muitos inícios dos que se mudaram para a capital paulista. "Eu sou do interior, mas eu sabia que viria para cá um dia. Sentar ali pela manhã, observando o movimento das pessoas para começar o dia, era um momento de reflexão e agradecimento pelo que a cidade estava me proporcionando", diz o especialista em vinhos Alexandre Freitas.

Nascido em Presidente Venceslau, sua vivência profissional no centro acompanhou a trajetória do café desde o final da década de 1990. Mesmo quando deixou de trabalhar na região, costumava visitar o local para tomar seu "café anônimo", como brinca.

Ficamos órfãos.

Dentro do balcão, a perda também foi dolorida. Scarleth Silva trabalhou por dez anos no local, de operadora de caixa a assistente de compras — profissão que exerce até hoje graças aos cursos financiados pela empresa. "Eu já saí pensando em quando poderia voltar a trabalhar lá." Além de guardar lembranças pessoais - foi durante o período que se casou, que seu filho nasceu -, recorda-se de situações curiosas como colaboradora.

Todo dia 29 havia o Nhoque da Sorte e o mais difícil era encontrar notas de um dólar para colocar embaixo de cada prato. Passávamos o mês indo a casas de câmbio do Centro, onde fiz amizade com muitas pessoas. Foram muitas memórias especiais.

Nhoque da Fortuna que era servido no Café Girondino, no centro de São Paulo Imagem: Reprodução/Instagram

Espírito do tempo

Levou três anos para que a casa reaberta no final dos anos 1990 se assemelhasse à do início do século 20: as mesas foram feitas de madeiras que nem existem mais, o piso, trazido da Espanha, os lustres, importados e o mobiliário, reproduzido de modo similar ao original. "O Girondino reproduzia um ambiente do passado, mas a partir de uma história real e em movimento", diz Nunes, que exemplifica:

Como a história dos barões do café, que ali se encontravam para negociar as sacas, enquanto os jornalistas os acompanhavam para propagar as novidades no dia seguinte. Passaram os séculos e até ontem os profissionais se encontravam ali para redigir notícias, mas soltá-las de imediato.

O Girondino fechou as portas como um oásis no caos diário, uma volta no tempo sem alienação. Se o pudim, o arroz doce com toque cítrico e o cheesecake continuavam os mesmos - e arrastavam pessoas de outros estados para prová-los -, o local acompanhou as mudanças do espaço urbano.

Pessoas no Cafe Girondino, no Largo de São Bento Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress

"Era um lugar vivo dentro do Centro Histórico, que se abriu para falar de temas como empreendedorismo e sustentabilidade, e que foi se reinventando. Um lugar que acolhia os corredores de rua, a parada LGBT e o Carnaval", diz Michel Porcino, empreendedor de inovação e startups e criador do Festival Cidade do Futuro.

O lugar se perpetuou na história graças à sua história com o café, mas foi mantido por tanto tempo graças ao diálogo com a cidade em transformação. Foram muitos os patrocínios a eventos de cultura, turismo e história, os apoios a projetos de teatro e cinema, os cafés filosóficos em suas dependências, como lembra Nunes.

Ocupar o centro sempre esteve entre as maiores causas da empresa.

A vantagem do Triângulo [Histórico] é que não entra carro nenhum dia. Enquanto a Paulista e a Liberdade só fecham aos domingos, aqui conseguimos celebrar eventos, e gratuitos, o ano todo.

A intenção de promover iniciativas culturais na região permanece, assim como a unidade do Café Girondino no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) segue aberta. Quanto ao espaço fechado no início de junho, não faltam sugestões de "vaquinha virtual" e pedidos de ajuda ao poder público por parte dos usuários das redes sociais.

No campo prático, há vários players interessados em investir no negócio de origem secular: entre eles a Fábrica de Bares, administradora do Bar Brahma. "Torcendo para dar certo", diz Nunes.

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