'Órfãos': fim do Girondino, a cafeteria mais antiga de SP, gera comoção

Nenhuma história começa pensando em terminar. Relacionamentos, projetos, negócios, a própria vida. Há poucas semanas, quem passasse à porta do café de três andares, 400 metros quadrados e 150 anos em pleno Centro Histórico de São Paulo não imaginaria que ele estava a dias de fechar as portas.

Considerado a cafeteria mais antiga da capital paulista, o Café Girondino foi fundado na esquina da Rua 15 de Novembro com a Praça da Sé em 1875, teve as atividades encerradas pela primeira vez em 1920 e retornou em 1998 no cruzamento das ruas São Bento e Boa Vista — endereço em que estava localizado até o dia 3 de junho.

Imagem do incício do Café Girondino, no centro de Sao Paulo
Imagem do incício do Café Girondino, no centro de Sao Paulo Imagem: Reprodução/Instagram

Sem aviso prévio aos clientes cativos, o fechamento causou espanto e comoção. Trabalhadores do entorno, visitantes estrangeiros, guias turísticos, influenciadores e até personalidades como o ex-secretário de Cultura de São Paulo, Alê Youssef, demonstraram tristeza com a notícia nas redes sociais.

Em suas duas temporadas, o Girondino ocupou o Triângulo Histórico, região importante do centro da cidade formada por prédios centenários, como o Theatro Municipal, o Palacete Teresa (onde fica a Casa de Francisca), o Shopping Light, os edifícios Martinelli e Matarazzo, atual sede da Prefeitura. O que poderia ser um aglomerado de locais na maior cidade da América Latina vem se consolidando como um atrativo cada vez maior para moradores da cidade e de fora dela.

Afetados pela pandemia da covid-19, alguns negócios fecharam no auge da crise sanitária e sobreviveram arrastando seus resquícios. Com o turismo freado e a migração dos clientes habitués — trabalhadores de bancos e funcionários públicos das mais diferentes instâncias — para o home office, o Girondino não resistiu.

Preferimos encerrar e honrar com os colaboradores, antes que tivéssemos um rumo pior. Mas seu fechamento não significa a decadência do Centro. Pelo contrário. Ele está voltando, nós é que não tivemos fôlego para acompanhar a retomada, diz Felippe Nunes, diretor comercial do Café Girondino, que começou na casa como office boy.

No cenário pré-pandemia, a casa contava com 120 colaboradores, servindo 1.000 xícaras de café por dia, e havia até uma intenção de funcionar por 24 horas. Na data do encerramento, restavam 35 funcionários, 400 expressos diários e um faturamento de 40%, comparado ao início de 2020.

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Café Girondino, no centro de São Paulo
Café Girondino, no centro de São Paulo Imagem: Reprodução/Instagram

"Ficamos órfãos"

Localizado ao lado do Metrô São Bento, fundado em 1975, o Girondino permanece com as portas de ferro fechadas, mas por uma das laterais envidraçadas ainda é possível enxergar o primeiro andar da cafeteria.

"As cortinas colocadas na metade inferior das janelas deixavam à mostra uma eterna espera pela passagem de um bondinho", fantasia o artista visual e técnico gráfico Felipe Romano. Em suas idas frequentes à casa, ele tomava tantos expressos quanto o tempo permitisse — sempre guiado pela observação, que por vezes rendia inspirações para suas pinturas.

Cena da rotina do Café Girondino, no centro de São Paulo, em foto de 2015
Cena da rotina do Café Girondino, no centro de São Paulo, em foto de 2015 Imagem: Keiny Andrade/Folhapress

Eu me sentava em uma posição em que pudesse ver as torres do Mosteiro de São Bento, onde tantas vezes fui para rezar a oração de vésperas, às 18h, religiosamente seguida do 'cafezinho do outro lado da rua'.

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A relação simbiótica do Café com o Mosteiro - inaugurado em 1590 e localizado na diagonal do Girondino - parece ter sempre existido, ainda que a casa não tenha nascido ali. "Toda vez que eu ia à 25 de março comprar materiais para aulas e cursos, fazia o ritual de comprar o Pão São Bento, na Padaria do Mosteiro, e passar no Girondino para tomar um café", diz a estilista e professora de tricô Cristiane Bertoluci.

Por um período, chegou a ser a parada oficial dela e das colegas de um coletivo de tricô, assim que deixavam o agito da rua comercial. "Íamos para o Girondino fazer o check-list dos materiais e dividi-los. Era nosso momento de descanso e conversa depois das compras e de fugir dos ambulantes com suas máquinas de massagem."

Em sua última ida ao café, ela experimentou, enfim, o arroz doce, e a amiga e analista de marketing Luana Carmen Rios, o café gelado.

A cafeteria foi moldando o centro assim como o centro foi moldando a cafeteria, e me encanta o contraste entre o antigo e o novo. Acho que as marcas atuais precisam levar o Girondino como exemplo de perseverança e dedicação, diz Rios.

Cena da rotina do Café Girondino, no centro de São Paulo, em foto de 2015
Cena da rotina do Café Girondino, no centro de São Paulo, em foto de 2015 Imagem: Keiny Andrade/Folhapress

Além da importância para a história coletiva, o Girondino faz parte de muitas memórias individuais e afetivas dos que cruzaram seu caminho. É o caso da escritora e funcionária pública estadual Anna Clara de Vitto: natural de Santos, mudou-se para São Paulo em 2006, para estudar Direito no Largo São Francisco.

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E também o romance. Foi nas escadarias do Palácio da Justiça que avistou seu atual marido pela primeira vez e foi na mesa que se tornou cativa no Girondino que o pedido de namoro foi oficializado.

O Café foi o marco de muitos inícios dos que se mudaram para a capital paulista. "Eu sou do interior, mas eu sabia que viria para cá um dia. Sentar ali pela manhã, observando o movimento das pessoas para começar o dia, era um momento de reflexão e agradecimento pelo que a cidade estava me proporcionando", diz o especialista em vinhos Alexandre Freitas.

Nascido em Presidente Venceslau, sua vivência profissional no centro acompanhou a trajetória do café desde o final da década de 1990. Mesmo quando deixou de trabalhar na região, costumava visitar o local para tomar seu "café anônimo", como brinca.

Ficamos órfãos.

Dentro do balcão, a perda também foi dolorida. Scarleth Silva trabalhou por dez anos no local, de operadora de caixa a assistente de compras — profissão que exerce até hoje graças aos cursos financiados pela empresa. "Eu já saí pensando em quando poderia voltar a trabalhar lá." Além de guardar lembranças pessoais - foi durante o período que se casou, que seu filho nasceu -, recorda-se de situações curiosas como colaboradora.

Todo dia 29 havia o Nhoque da Sorte e o mais difícil era encontrar notas de um dólar para colocar embaixo de cada prato. Passávamos o mês indo a casas de câmbio do Centro, onde fiz amizade com muitas pessoas. Foram muitas memórias especiais.

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Nhoque da Fortuna que era servido no Café Girondino, no centro de São Paulo
Nhoque da Fortuna que era servido no Café Girondino, no centro de São Paulo Imagem: Reprodução/Instagram

Espírito do tempo

Levou três anos para que a casa reaberta no final dos anos 1990 se assemelhasse à do início do século 20: as mesas foram feitas de madeiras que nem existem mais, o piso, trazido da Espanha, os lustres, importados e o mobiliário, reproduzido de modo similar ao original. "O Girondino reproduzia um ambiente do passado, mas a partir de uma história real e em movimento", diz Nunes, que exemplifica:

Como a história dos barões do café, que ali se encontravam para negociar as sacas, enquanto os jornalistas os acompanhavam para propagar as novidades no dia seguinte. Passaram os séculos e até ontem os profissionais se encontravam ali para redigir notícias, mas soltá-las de imediato.

O Girondino fechou as portas como um oásis no caos diário, uma volta no tempo sem alienação. Se o pudim, o arroz doce com toque cítrico e o cheesecake continuavam os mesmos - e arrastavam pessoas de outros estados para prová-los -, o local acompanhou as mudanças do espaço urbano.

Pessoas no Cafe Girondino, no Largo de São Bento
Pessoas no Cafe Girondino, no Largo de São Bento Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress
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"Era um lugar vivo dentro do Centro Histórico, que se abriu para falar de temas como empreendedorismo e sustentabilidade, e que foi se reinventando. Um lugar que acolhia os corredores de rua, a parada LGBT e o Carnaval", diz Michel Porcino, empreendedor de inovação e startups e criador do Festival Cidade do Futuro.

O lugar se perpetuou na história graças à sua história com o café, mas foi mantido por tanto tempo graças ao diálogo com a cidade em transformação. Foram muitos os patrocínios a eventos de cultura, turismo e história, os apoios a projetos de teatro e cinema, os cafés filosóficos em suas dependências, como lembra Nunes.

Ocupar o centro sempre esteve entre as maiores causas da empresa.

A vantagem do Triângulo [Histórico] é que não entra carro nenhum dia. Enquanto a Paulista e a Liberdade só fecham aos domingos, aqui conseguimos celebrar eventos, e gratuitos, o ano todo.

A intenção de promover iniciativas culturais na região permanece, assim como a unidade do Café Girondino no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) segue aberta. Quanto ao espaço fechado no início de junho, não faltam sugestões de "vaquinha virtual" e pedidos de ajuda ao poder público por parte dos usuários das redes sociais.

No campo prático, há vários players interessados em investir no negócio de origem secular: entre eles a Fábrica de Bares, administradora do Bar Brahma. "Torcendo para dar certo", diz Nunes.

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