Como surgiram os balões de São João? Tradição perigosa nasceu na guerra
Colaboração para Nossa
28/06/2024 04h00
Nas últimas décadas, os balões das festas juninas vêm sendo combatidos, evitados e proibidos. O motivo é mais que justo, porque eles, por mais bonitos e coloridos que sejam, são uma cápsula incendiária desgovernada.
Não dá para saber onde vão cair, o que é um perigo nos invernos secos brasileiros, em que uma mera bituca de cigarro pode devastar um parque inteiro.
Os balões surgiram como uma manifestação lúdica e popular. Mas eles também são armas, e é isso que sua história mostra, desde o princípio.
Origem chinesa
O mais provável é que os balões de ar quente tenham surgido na China. O papel foi inventado, acredita-se, por Cai Lun, em meados da Dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.). Nessa época, havia papel em abundância no país, mas não no resto do mundo.
O desenvolvimento das clássicas lanternas de papel esféricas teria incentivado as experiências. Quando a abertura superior era pequena demais e a fonte de luz e calor era excepcionalmente forte, em alguns casos elas devem ter demonstrado a tendência de se erguer no ar e flutuar sem sustentação, explicou o historiador inglês Joseph Needham em "Science and Civilization in China" ("Ciência e Civilização na China") série monumental de livros da Universidade de Cambridge que ele concebeu e editou dos anos 1950 até morrer, em 1995 (a série não parou de ser produzida desde então).
Segundo Needham, na região de Lichiang, na província de Yunnan, todo mês de julho, antes do início da estação chuvosa, as pessoas faziam festas para comemorar que o arroz já estava plantado. Dançavam e montavam balões de papel com estrutura de bambu. Ateavam fogo em montes de lascas de pinho e faziam os balões flutuar noite adentro.
Já o chinês Deng Yink, autor de "Ancient Chinese Inventions" ("Antigas Invenções Chinesas"), de 2005, afirma que o balão surgiu um pouco depois, no período dos Três Reinos, que sucedeu a era da Dinastia Han.
Zhuge Liang (181-234 d.C.) era um importante estrategista militar que, em seu leito de morte, projetou uma luminária para confundir o inimigo em uma batalha. Instalada sob um saco de papel, ela flutuou no ar, o que fez o lado oponente acreditar que estava lutando contra alguém com proteção divina.
Zhuge Liang também era conhecido como Zhuge Kongming, e mais tarde o balão de ar quente foi batizado de lanterna kongming. O artefato se desenvolveu como sinal militar, e na Dinastia Yuan (1271-1368) a lanterna se tornou popular durante festivais. "O que atraía enormes multidões de espectadores", explica Needham.
Ou seja, há séculos as funções militares e culturais do balão caminham lado a lado.
Acredita-se que os mongóis, responsáveis por espalhar muitas inovações asiáticas, também apresentaram a tecnologia dos balões à Europa.
Em 1241, os mongóis massacraram um exército cristão em Legnica, na Polônia. Além de ter sido uma das principais vitórias do Canato da Horda Dourada (um dos reinos derivados do antigo império de Gêngis Khan) contra os europeus, a batalha serviu para mostrar àqueles ocidentais, possivelmente pela primeira vez, a beleza e o perigo fascinantes do balão.
Muitas evidências foram obtidas nas crônicas do Leste Europeu em que balões de ar quente na forma de dragões foram usados como sinalização ou como estandartes pelo exército mongol
Joseph Needham
Segundo o historiador, após esse episódio o invento passou a aparecer mais em textos no Ocidente. Em 1530, um relato de Carlos 5º, rei da Espanha e imperador romano-germânico, veio acompanhado de uma xilogravura que mostrava um dragão cuspindo fogo e flutuando ou voando. Ele também cita a famosa participação brasileira nessa história. Em 1709, Bartolomeu de Gusmão "pôs fogo nas cortinas da sala de audiências do rei de Portugal".
Padre dos balões
Tido como o primeiro inventor brasileiro, Bartolomeu de Gusmão nasceu em Santos, na então capitania de São Vicente, em 1685. Ordenado sacerdote, em 1708 ele embarcou para Portugal, onde, aproveitando os contatos e amizades importantes que fizera em uma viagem anterior ao país, foi recebido pelo próprio rei, dom João 5º.
No ano seguinte, ele pediu patente para "um instrumento para se andar no ar". Foi um acontecimento, e a notícia se espalhou pela Europa.
O assédio era tamanho que um aluno do padre, com seu consentimento, fez um desenho falso do invento e o divulgou. Na ilustração, a passarola, como era chamada, era uma maluquice voadora que subia ao céu graças à força do magnetismo.
O intuito era "ludibriar os bisbilhoteiros" e "preservar o verdadeiro princípio da invenção, o princípio de Arquimedes", explicam Rodrigo Moura Visoni e João Batista Garcia Canalle em um artigo na "Revista Brasileira de Ensino de Física".
O teorema de Arquimedes diz o seguinte: "Todo corpo mergulhado total ou parcialmente em um fluido sofre a ação de uma força vertical de baixo para cima, denominada empuxo, igual ao peso do volume do fluido deslocado pelo corpo".
Gusmão era visto por uns como gênio. Por causa dos desenhos, outros o chamavam pejorativamente de feiticeiro e voador. Ele começou a preparar a apresentação do balão (ou aeróstato, como o invento foi chamado) em maio de 1709.
Marcou uma demonstração pública para 24 de junho, dia de São João — não por causa do santo nem das festas em seu nome, mas em homenagem ao rei. Infelizmente, dom João 5º estava doente, e o evento foi remarcado.
Em agosto, Gusmão fez cinco demonstrações para a corte. As três primeiras fracassaram, mas as últimas foram satisfatórias. Em outubro, realizou uma maior, na ponte da Casa da Índia, em Lisboa. O aeróstato levantou voo e pousou com sucesso, mas ainda não podia levar uma pessoa. O feito foi testemunhado por importantes personalidades da época, porém o invento não se popularizou.
As exageradas capacidades alardeadas na petição a respeito da máquina voadora, o incêndio de três dos protótipos testados, as diminutas dimensões dadas aos aeróstatos e a notória falta de controle dos mesmos causaram decepção e má impressão no público, tornando evidente a precariedade da invenção. Esses fatores desestimularam a construção de um modelo grande, tripulável" Visoni e Canalle.
Bartolomeu de Gusmão morreu em 1724. Seu invento acabou esquecido, até que em 1782 os irmãos franceses Montgolfier desenvolveram um novo aeróstato. No ano seguinte eles conseguiram realizar o primeiro voo tripulado, e por isso acabaram sendo inventores mais celebrados do que o padre paulista.
Após o sucesso dos franceses, Gusmão, que fora perseguido pela Inquisição portuguesa, acusado de ter se convertido ao judaísmo, teve a reputação restaurada em um reino que não lhe deu o devido valor em vida.
No Brasil, o costume de soltar balões nas festas de São João, tradição herdada dos portugueses, ganhou um novo significado, segundo Visoni e Canalle. "Frotas inteiras de pequenos balões a ar quente, numa homenagem ao verdadeiro inventor do balão e pai da aeroestação" ganhavam os céus nas noites de 24 de junho. Proibido por lei desde 1998, o costume perdeu força.
Armas aéreas
Apenas 12 anos depois do feito dos Montgolfier, os franceses já estavam usando balões para fazer guerra. A Revolução Francesa teve balões de seda em batalha.
Em meados do século 19, o Império Austro-Húngaro bombardeou Veneza com balões, durante a Primeira Guerra de Independência da Itália. Os dois lados da Guerra Civil Americana (1861-1865) usaram a tecnologia.
Os balões fizeram a diferença em 1902, no fim da guerra travada entre os britânicos e os colonos instalados no sul da África conhecidos como bôeres. Um oficial australiano registrou:
Os bôeres não gostavam dos balões. Eles tinham uma artilharia superior, na maior parte, e mais bem servida do que a dos ingleses. Tinham aparelhos telegráficos e heliográficos. Mas os balões eram um símbolo de uma superioridade científica dos ingleses que os inquietava seriamente
Os britânicos ganharam a Guerra dos Bôeres. Isso abriu caminho para a criação, em 1910, da União da África do Sul.
Os bombardeios operados a partir de balões estavam se proliferando tanto entre as potências que as Convenções de Haia, no começo do século 20, baniram a prática.
Não adiantou muito, e atacar cidades pelos céus ficou ainda mais comum com o desenvolvimento de novas armas e veículos, em especial o avião. "Bizarramente, foi Hitler quem sugeriu banir os bombardeios em uma proposta ao Reino Unido e à França em 1936", escreveu o historiador Francis Pike em um artigo na revista britânica "The Spectator".
Com o advento de tecnologias muito mais avançadas, o balão perdeu espaço no uso militar. Havia máquinas melhores para bombardear cidades, afinal. Mas ele não foi abandonado de vez. Em fevereiro deste ano, as relações entre Estados Unidos e China ficaram tensas quando balões chineses, acusados de espionagem, foram abatidos no espaço aéreo americano.
Para lá desta vertente bélica dos balões de ar, fica o colorido dos que enfeitam as Festas Juninas por todo o país, estilizados como as lanternas chinesas lá do princípio ou simulações daqueles de ar quente que, por segurança, não podem mais subir aos céus.
* Com informações de reportagem publicada em 26/06/2023.