'Queria tomar banho': a reforma de uma casa de 7m² que não tinha banheiro

Passo aqui na frente e não acredito que essa casa é minha.
Wallece Gonzaga

Sem banheiro em casa

Wallece é morador do Jardim Colombo, favela na zona sul de São Paulo que faz parte do complexo de Paraisópolis. Nascido no Rio de Janeiro e criado no Recife, ele está na cidade desde 2013. Na capital paulista, sempre morou lá —mas nem sempre sob um teto.

Wallace viveu nas ruas do Colombo, em uma antiga área de acúmulo de lixo. Trabalhando como entregador, ele juntou R$ 9 mil ao longo de dois anos e conseguiu comprar o pequeno imóvel em 2019.

Mas a estrutura era precária: além da cama e uma prateleira, ele tinha uma geladeira e um vaso sanitário — instalado por ele mesmo. Para tomar banho, depois de rodar a cidade de bicicleta para trabalhar, ele tinha que recorrer à casa da mãe.

Eu começo as entregas meio-dia e vou até meia noite. Chego cansado, doido para tomar um banho. Tinha que perturbar minha mãe. Ela mora na casa do lado, mas acorda cedo para trabalhar. E eu tinha que ir de madrugada tomar banho, quando chegava.
Wallace Gonzaga

A realidade dele não é fato isolado: cerca de 1,1 milhão de pessoas moram em lares sem banheiro no Brasil, segundo o último Censo do IBGE. Na nova estrutura, ele tem um banheiro completo: vaso sanitário, chuveiro com box, uma pia e um espelho.

Moradia digna é direito

A arquiteta Ester Carro, presidente do Fazendinhando, também é cria do Jardim Colombo e sempre sonhou em transformar o espaço onde nasceu e cresceu. Na infância, ela lidava com ratos em casa e temia que a casa alagasse a cada chuva.

"A moradia é o começo de tudo. A minha antiga casa não tinha revestimento, e ela me deixou muitas marcas. Marcas que me estimularam a querer lutar por mais dignidade aqui na comunidade", afirma ela.

Hoje, Ester dedica seu trabalho no projeto a criar soluções para otimizar espaços e trazer as funções básicas para os imóveis da favela —independe das metragens disponíveis.

A moradia digna é um direito e a arquitetura social é dignidade. Uma pessoa, depois que tem a casa reformada, quer receber um amigo, quer estudar e se sente mais à vontade para isso.
Ester Carro

O que mudou

A casa do Wallece tinha problemas elétricos, hidráulicos e de saneamento. A entrada de ratos e baratas, assim como o frio à noite, eram uma preocupação frequente. Além disso, a própria estrutura física era frágil: as paredes não tinham ferragens ou pilares.

Na obra, foi colocada uma espécie de "cinta" rente a parede antiga, que permitiu o imóvel crescer cerca de 1,2 metros em altura. Isso viabilizou um mezanino, que agora abriga a cama, e deixou espaço livre para outras funções no andar de baixo.

Toda a casa agora tem revestimento, o que torna o ambiente menos gelado e mais seguro.

A ideia não é interferir na identidade do lugar. Afinal, o Wallece continua morando no Jardim Colombo. Agora, ele vai mostrar para outras pessoas que é possível morar na favela e ter acesso a estrutura e direitos básicos.

A casa cinza, sem acabamento, deu lugar a uma pintura azul marinho, que se destaca na vizinhança. Do lado de fora, na parede, foi montada uma pequena horta vertical.

O imóvel agora tem iluminação e ventilação natural, e é decorada com um grafite feito por um artista do próprio Jardim Colombo. No andar térreo, ele ter um armário que pode ser usado para guardar utensílios domésticos e roupas.

Embaixo da pia, há espaço para panelas. Ao lado, um fogão cooktop de duas bocas que funciona por indução e um mini tanque. Todo o mobiliário e marmoraria foram feitos sob medidas. "Algo que é muito inalcançável para quem vive na favela", pontua Ester.

'Recado de Deus'

Wallece não terminou o ensino médio, e espera encontrar motivação para concluir os estudos. "Vai dar mais energia e vontade de correr atrás. Eu sempre corri, mas agora vai ser dez vezes mais porque quero motivar outras pessoas também."

Eu fiquei muito feliz. Sabe quando a pessoa tem uma felicidade por dentro? Vai mudar a minha vida. Para mim é como se fosse um recado de Deus. Eu sempre quis ganhar na loteria, mas isso aqui está sendo muito melhor que loteria.
Wallece Gonzaga

A reforma da casa do Wallece durou menos de um mês, do dia 10 de junho até o dia 6 de julho. Nas próximas semanas, o espaço vai receber visitas de estudantes e outros interessados em arquitetura social, viabilizadas pela Casacor.