Autor do pão n°1 de SP vê invasão de congelados: 'profissão está sumindo'
As estrelas ainda estão visíveis quando Tonhão se levanta, sai de casa e caminha algumas quadras, pelas calçadas quase desertas da zona norte paulistana, até a padaria Estado Luso — famosa e premiada pelos seus pães.
Frio ou calor, chova ou faça sol, ele chega pouco depois das 5h, bem na hora em que a turma da noite está largando o serviço e passando o bastão para a equipe da manhã.
O café da manhã, ele prefere tomar ali mesmo. A dieta prescrita em função do diabetes não permite, mas o pãozinho francês da primeira fornada do dia, bem besuntado de manteiga, é a única transgressão do dia. Verdade que Tonhão nem precisava chegar tão cedo, mas virou hábito.
Um cliente encomendava ciabatas, que eu precisava entregar às 10h. Comecei a chegar antes da hora, porque não dava tempo, e acabei me acostumando.
Se for para fazer as contas direitinho, o costume de trabalhar em horários fora do expediente comum tem muito mais tempo — são 53 anos como padeiro, profissão que ele abraçou aos 14.
No começo, na raça
Nascido no Crato, no Cariri Cearense, Antônio Alves Rocha entrou na primeira padaria, a Panificadora Progresso, pelas mãos de um cunhado. Como aprendiz, sem receber um tostão, entrava às 18h, no turno da noite, e virava madrugadas aprendendo todas as etapas do serviço. O cardápio não era dos mais variados.
Tinha bolacha seca, pão sovado e pão carteira, quadradinho e achatado. Tonhão aprendeu tão rápido que, um ano depois, já tinha sido promovido a forneiro — e com salário fixo.
Hoje, aos 67, aquele jovem Antônio virou Tonhão, misto de mestre e treinador nos bastidores da Estado Luso, onde trabalha há 33 anos.
Ao longo de cinco décadas, somando todos os empregos, ele viu muita coisa mudar no setor. Lembra que as equipes tinham uma forma diferente de dividir as tarefas, imposição de um tempo em que não havia máquinas ou ingredientes para suavizar a vida do padeiro.
Lá no Crato, a gente preparava a massa lá pelas 16h e só começava a fazer o pãozinho às 23h. Era tudo na raça, não tinha química para acelerar o processo.
Até o formato dos pães, ele conta, com biquinhos pronunciados, como os cratenses gostavam, era modelado à mão.
Os tempos da garoa
Como a imensa maioria dos imigrantes nordestinos, Tonhão trocou o Crato por São Paulo em busca de mais oportunidades. A mãe e a irmã já tinham se mudado e iam bem na vida nova, mas o garoto gostava do Ceará e só decidiu fazer as malas por impulso, em um momento de raiva.
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Quero receber"Lançaram uma bicicleta, que todo mundo queria ter, e decidi comprar uma para mim. Tinha salário, carteira assinada, mas a loja se recusou a me vender a bicicleta. Quando cheguei na padaria, pedi as contas e disse que ia embora para São Paulo."
O patrão desdenhou, apostou que era fogo de palha, disse que Tonhão voltaria atrás depois de um mês. Só que o garoto, que já estava casado com Marluce desde os 16, se mandou com ela para São Paulo, determinado a ficar. "Lembro que cheguei na Estação Júlio Prestes numa sexta-feira e, na segunda, já estava empregado."
Padeiros com experiência, assim como hoje, eram profissionais disputados na época. Na segunda porta onde Tonhão bateu, foi convidado a entrar e começar no mesmo dia, entrando às 22h, como ajudante. De novo, a promoção chegou após o primeiro mês na lida. Para Tonhão, São Paulo continua sendo a terra da oportunidade.
Naquele tempo, fazia muito frio, sempre tinha garoa, os caras vinham do Nordeste e não se acostumavam. Mas eu fiquei. Só voltei para o Ceará depois de cinco anos, para visitar a família e o antigo patrão. Se Deus é brasileiro, deve ser paulista.
Nos anos 1970, o salário mínimo não era unificado. No Nordeste, pagava-se bem menos do que no Sudeste, e este foi o primeiro susto que Tonhão levou na cidade grande — o ordenado como ajudante era quase o dobro do que ele recebia no Crato.
"Quando o patrão me disse quanto era, minhas pernas tremiam", ele lembra. Com a promoção que veio logo depois, deu até para equipar a casa alugada, na Vila Gustavo, que o casal dividia com a mãe dele e a irmã. "Comprei uma televisão que veio com toca-discos e, depois de um tempo, um carro DKW. Era muito, para quem estava acostumado a assistir TV na praça."
Segredos do pãozinho
O segundo susto foi descobrir que, em São Paulo, era mais difícil fazer pão. Na padaria nordestina, a máquina divisora cuspia a massa já modelada, mas o novo emprego não oferecia essa moleza. "Você tinha que tirar a fita [tira de massa] e modelar os pães um a um. Tinha que ser bom na mão."
Tonhão nunca foi de trocar muito de emprego. Ao longo dos primeiros 17 anos de São Paulo, trabalhou por mais de uma década na mesma padaria da Vila Nivi, bairro da zona norte, e de lá assumiu a panificação de uma rede de supermercados.
Até que um belo dia, no forró que ele gostava de frequentar, soube de uma vaga em uma padaria que não ia muito bem e precisava de mudanças. Fez o teste para padeiro da Estado Luso, passou e, em 1991, assinou o contrato.
O que a profissão de padeiro tem de bonita, tem de exigente. Não é à toa que Tonhão diz trabalhar "quase de domingo a domingo". Para dar conta dos 7 mil pães franceses que a Estado Luso vende por dia, que podem chegar a 9 mil nos fins de semana, a panificadora emprega oito profissionais, que se revezam em dois turnos.
O forno a lenha, que pode trincar caso a alvenaria esfrie, mantém-se aceso, sem interrupção, desde 1965, quando a casa foi fundada. A receita do pãozinho, quando se faz do zero, sem mistura pronta, também dá um trabalhão.
Um bom pão francês depende de farinha de qualidade. Sem isso, não adianta ser um grande padeiro. Uso três farinhas misturadas, uma argentina e duas nacionais, ele entrega.
Outro segredo, revela o padeiro, é trabalhar a massa com muitos cubos de gelo. Para cada 100 quilos de massa, vão 20 quilos de gelo, bem mais do que antigamente, quando não fazia tanto calor em São Paulo. "A farinha não gosta de nada quente", ele explica.
Tonhão se rendeu a uma modernidade, o melhorador, ingrediente que ajuda a estabilizar a farinha de trigo, mas se recusa a acrescentar açúcar, o que muitos profissionais fazem para turbinar a cor dourada.
A gente tem que ter consciência como profissional. Meu pão, aqui, é bem simples, mas temos prêmio como o melhor de São Paulo. E todos os padeiros da casa aprenderam comigo. Um deles está com a gente há 26 anos, orgulha-se.
O fim do padeiro?
Segundo o Sampapão, entidade que representa as panificadoras paulistas, a cidade de São Paulo tem 6 mil padarias, que empregam 18 mil padeiros, o que dá três profissionais por estabelecimento.
Parece pouco para uma cidade que considera as padarias como parte de sua cultura, mas o presidente do Sampapão, Rui Gonçalves, diz que os números têm crescido com o passar dos anos. "Cerca de 20% das padarias de São Paulo abriram nos últimos 10 anos, e a profissão cresceu muito, mais até do que a quantidade de padarias."
Tonhão tem suas dúvidas. Quando pergunto sobre o futuro da profissão, seu olhar fica embaçado. O primeiro comentário dá a medida do que ele sente.
Meu Deus do céu... A gente tem tanto trabalho para fazer um pãozinho com casca fina e crocante, o miolo branquinho, mas inventaram de vender pão congelado. A profissão está sumindo.
Já tentaram convencê-lo de que a fábrica é o futuro da panificação. Levaram Tonhão para visitar uma dessas novas linhas de produção 100% automatizadas, mas ele não se dobrou. Continua convicto de que só o olho do padeiro é capaz para adaptar a fermentação, conforme a temperatura e a umidade do dia.
"Eles só despejam a farinha de trigo e o maquinário faz tudo sozinho. O pão sai pronto direto para o freezer. Aqui é diferente, tanto que a gente não contrata padeiro de fora. E nem tem para contratar, porque patrão nenhum é bobo de deixar um padeiro sair."
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