Testículo de tigre e pânico de veneno: a cozinha dos imperadores da China
Colaboração para Nossa
26/07/2024 04h30
A Cidade Proibida, complexo do palácio imperial chinês reconhecido hoje pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) como Patrimônio da Humanidade, já foi um dos centros de poder mais influentes e misteriosos do mundo por mais de 500 anos, entre 1420 e 1924, quando o último imperador foi expulso após o golpe de Pequim.
O maior palácio preservado do mundo ganhou este apelido porque ninguém fora da família real de um de seus 24 imperadores ou seus funcionários podia entrar no lugar — o que torna difícil imaginar o que era, afinal, servido aos monarcas mesmo com 100 anos de pesquisas e portas abertas ao público.
Relacionadas
Apesar de boa parte dos documentos históricos sobre o modo de vida das dinastias Ming e Qing terem sido selados pelo governo chinês devido à sua fragilidade, algumas informações são públicas.
Em 2018, uma reportagem especial do jornal South China Morning Post que teria tido acesso aos arquivos do Museu da Cidade Proibida revelou que, apesar da fama, os imperadores chineses não viviam de banquetes no dia a dia.
Como era a cozinha do palácio?
"A dieta [do imperador] era balanceada, mas surpreendentemente simples. Tanto as dinastias Ming quanto Qing comiam de acordo com o mesmo princípio: a dieta deve promover a saúde", diz o texto. A infraestrutura para servir o monarca, no entanto, era imensa.
A cozinha imperial era composta por três partes, com uma cozinha principal, uma copa para o chá e uma padaria.
Cada uma delas acomodava o trabalho de um chef e cinco cozinheiros, um supervisor e um contador que monitorava os mantimentos e providenciava a aquisição de mais ingredientes, conforme a necessidade.
Os cardápios sempre contavam com o nome do cozinheiro para que os pratos pudessem ser pedidos novamente com facilidade — e culpados pudessem ser encontrados caso algo suspeito acontecesse, já que os imperadores costumavam ser um tanto paranoicos em relação à possibilidade de serem envenenados.
Localizada no Salão da Harmonia Suprema, a cozinha imperial não funcionava apenas com aquele econômico time que a comandava; estima-se que mais de 200 pessoas trabalhassem para fazer uma refeição acontecer, eunucos inclusos.
Todos os pratos que seriam servidos ao imperador eram preparados separadamente de qualquer outro membro da família ou convidado que viesse para jantar.
Refeição solitária e com pânico de envenenamento
Quando cada prato chegava à mesa, o imperador mergulhava um pequeno pratinho de prata dentro dele diversas vezes — acreditava-se que caso a comida estivesse envenenada, a prata mudaria de cor.
Caso ainda houvesse dúvida, ele poderia pedir a um dos eunucos que provasse a comida antes de saboreá-la.
Os imperadores da dinastia Qing preferiam comer sozinhos, sem a companhia inclusive da família, um hábito que só era quebrado em ocasiões especiais.
Apenas a imperatriz-viúva, mãe do imperador, era dispensada de ficar de pé na presença do imperador — caso fosse convidada. Tanto a imperatriz quanto as amantes imperiais faziam suas refeições em seus próprios palácios.
O que chegava à mesa?
As receitas imperiais eram, ainda de acordo com o Morning Post, versões sofisticadas de refeições tradicionalmente apreciadas pelos plebeus. Mas o cardápio era ajustado conforme a estação do ano, com pratos mais leves servidos durante o verão e receitas de porções mais fartas e nutritivas no inverno.
Os chineses acreditavam que refeições leves aumentavam os fluidos corporais, enquanto as mais pesadas aumentavam a energia e disposição da realeza.
Cada menu era elaborado com antecedência e enviado ao ministro da corte para aprovação. Depois de servido, ele era arquivado para uma consulta posterior.
Por isso, sabe-se que o imperadores comiam bastante carne de porco, carneiro, frango e vegetais. A carne bovina era proibida no palácio porque era considerado pecado comer animais que fossem usados também para carga.
Outros sucessos imperiais eram sopas de ninhos de andorinha, patos, rabo de veado, pães, bolos, pepinos e pastéis ou doces folhados.
Os imperadores da dinastia Qing, mais especificamente, costumavam comer duas vezes ao dia, mas sem horário definido — eles apenas informavam os seus guardas quando gostariam de comer e os oficiais de cozinha comandavam os eunucos para arrumarem a mesa mais próxima do imperador.
Testículo de tigre estava entre pratos favoritos
O historiador de gastronomia Zhao Rongguang, de 76 anos, um dos pioneiros a estudar os Primeiros Arquivos Históricos da China, revelou à CNN americana algumas curiosidades e preferências excêntricas de imperadores que descobriu em suas quatro décadas de pesquisa.
Segundo ele, a Cozinha Imperial evoluiu ao longo dos séculos para acomodar os gostos e também as convicções pessoais dos monarcas.
O costume começou com Kangxi, imperador da dinastia Qing que passou a controlar a China em 1644. Como os Qing tinham laços com os manchus, pratos tradicionais da Manchúria foram incorporados ao palácio.
"Ainda havia bastante assados e comidas incomuns na mesa de Kangxi, como testículos de tigre", contou Zhao à CNN americana.
"Os antigos acreditavam que [os testículos] tinham como efeito um aumento da libido. Acredito que Kangxi comeu bastante deles, já que há registro oficial de que ele caçou mais de 60 tigres em sua vida". Outro afrodisíaco popular na época de Kangxi era a crista de galo.
No entanto, quanto mais a sociedade se estabilizava durante o reinado de Kangxi, menos os seus pratos ancestrais apareciam nos menus, como é o caso do guisado de pato.
A evolução seguinte aconteceria no reinado do neto dele (1735-1796), Qianlong, que passou a exigir o registro dos menus diários — que hoje permite a pesquisa dos historiadores.
"Tijolos de chá eram dissolvidos em água fervente. Leite, manteiga e uma pitada de sal eram adicionados. E então as folhas de chá eram filtradas e a bebida era servida em uma chaleira de prata", contou à emissora dos EUA Nicole Chiang, historiadora e curadora do Museu do Palácio de Hong Kong, que é uma instituição associada ao Museu do Palácio de Pequim.
A combinação pareceu estranha? Pois leite com manteiga e sal no chá era um mix típico das raízes manchurianas do imperador.
Outro favorito era os "hot pots", ensopados cozidos a vapor tradicionais da cozinha chinesa, que eram pedidos quase todos os dias durante os três meses do inverno, segundo relato de uma funcionária imperial da época obtido por Nicole.
Pratos também eram escolhas estratégicas
Apesar de os cardápios refletirem escolhas pessoais dos imperadores, sim, eles também eram pensados estrategicamente. "Não eram baseados somente em preferência. Sabemos que Qianlong comia hot pots, que eram anotados como 'warm pots', [mas podia ser por causa do clima, da tradição. Não quer dizer [necessariamente] que Qianlong os adorava".
Uma pista disso é o perfil geral de seus cardápios, que eram geralmente mais refinados.
Sabe-se que ele era um fã, em particular, de carnes de caça. "Um dos pratos que aparecem com frequência em seus arquivos é a cauda de veado Sika.
O rabo é uma parte bem pequena, mas maravilhosamente gorda e aromática", explicou Zhao. Além de brotos de bambu frito e patos defumados, ele tomava com frequência a nutritiva sopa de ninho de andorinha — todo dia antes do café da manhã.
Mais uma vez, a escolha era pensada. "Há vários mitos e lendas sobre a sopa de ninho, porque era um ingrediente relativamente novo na época".
A sopa era um tira-gosto importante para Qianlong às 4h da manhã, antes mesmo de tomar café às 6h e jantar às 14h. À noite, entre 20h e 21h, ele costumava fazer outro lanche, com oito a 10 pequenos pratos. Esta era a ocasião em que ele podia abrir mão da costumeira solidão.
"Ele geralmente comia sozinho, exceto pelo lanche da noite, quando ele poderia fazer a refeição com uma consorte com que ele fosse passar a noite. Jantar e dormir bem — para que pudesse produzir herdeiros — eram também duas tarefas importantes para o imperador", frisou Zhao. Mais uma vez, a alimentação era como uma arma secreta dos líderes chineses.
O tal banquete Manchu-Han que virou propaganda política
Apesar de os imperadores chineses costumarem manter dietas mais simples e que já fossem testadas e aprovadas, o mito de um banquete extravagante da realeza se tornou uma arma de propaganda política no país.
É o tal do banquete Manchu-Han, que nunca aconteceu de fato, mas tem ligação com uma figura histórica real: a imperatriz-viúva Cixi, que controlou a China não-oficialmente por quase 50 anos até sua morte em 1908.
Cixi, ao contrário de outros imperadores e imperatrizes, era fã de extravagâncias. "Foi a era mais luxuosa da dinastia Qing. As refeições diárias aumentaram de 18 a 23 pratos para 25 a 28 pratos", relatou Zhao.
Ela também adorava ser anfitriã de banquetes, que tinham como estrelas principais assados e a sopa de ninho de andorinha, além de frutos do mar.
"Banquetes de sopa de ninho tinham muitos tipos de frutos do mar raros como barbatanas de tubarão, pepinos-do-mar e mariscos secos. Assados geralmente eram de carne de porco e pato.
Era uma invenção da época dela com regras rígidas, cada um desses banquetes consistiam em dois pratos de hot pots, quatro grande tigelas (pratos principais com palavras auspiciosas escritas neles, quatro pequenas tigelas [de petiscos], seis pratos de comida, duas travessas com fatias de pato-de-Pequim, leitão, quatro tipo de pastéis, doces ou bao (o pão cozido no vapor), um tipo de macarrão, um tipo de sopa e um prato de fruta", descreve o historiador.
Apesar de tanta fartura, não é nada parecido com o que a imaginação moderna da experiência retrata: no século 20, a lenda passou a narrar banquetes da imperatriz com 108 pratos.
Cixi entrou para o imaginário como uma espécie de Maria Antonieta chinesa, figura de um governo decadente e corrupto com alcances ilimitados. Mas, nos anos 50, ela ficou "pop".
Isto porque durante uma feira de importações e exportações em Guangzhou em 1957, um estande com um suntuoso banquete chamou a atenção de visitantes japoneses, que questionaram que tipo de banquete seria aquele. Consultado, o chef usou a imaginação.
"Como ele tinha que dar alguma resposta, o chef disse 'este é chamado banquete Manchu-Han e foi iniciado por um imperador", relatou Zhao à CNN. Foi o suficiente para a lenda se espalhar. A modalidade se tornou uma tendência culinária... no Japão.
E, apesar de a China daquela época não ter o menor interesse em exporta ideais capitalistas, Hong Kong — que estava sob domínio britânico à época — acabou aproveitando.
Em 1978, um canal de tevê japonês recriou com um restaurante de Hong Kong um enorme banquete Manch-Han ao vivo, com quatro refeições que duraram dois dias — e espalhou o mito da refeição de 108 pratos de Cixi.
Após a reabertura da China para turistas ocidentais, os chefs locais passaram a criar suas versões, um deles com 1.080 dias. Se não tem pão, que comam bao.