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Olha a faca! De chefs a hipsters, cutelaria conquista legião de apaixonados

Imagem: ArteUOL

Flávia G Pinho

Colaboração para Nossa

27/07/2024 05h00

Você já imaginou pagar mais de R$ 100 mil por uma faca, mesmo que ela tenha sido forjada a mão, tenha cabo de madrepérola com apliques de ouro e brilhantes e leve meses para ficar pronta?

Pois o cuteleiro gaúcho Rodrigo Sfreddo, autor de algumas das peças mais cobiçadas pelos colecionadores brasileiros, não só encontra clientes para essas joias, como eles ainda enfrentam fila de espera.

O fascínio do homem pela arte da cutelaria não é de hoje - começou lá pelo ano 1500 a.C., quando ele descobriu como modelar utensílios de metal. Mas o mundo contemporâneo viu as facas e adagas deixarem de ser meras peças para cortar.

Hoje, são verdadeiros objetos de desejo - e seus criadores, cultuados como grandes artistas.

Evolução humana e desejo hipster

Produção de facas no século 19 Imagem: Universal History Archive/Universal Images Group via Getty Images

O Brasil já tem até aula de cutelaria dentro de universidade. Fundado em 2005, o curso de extensão vinculado ao Instituto de Artes da Universidade de Brasília foi criado por Milton Hoffmann, 58 anos. Ele arrisca o motivo de tamanho interesse:

A faca foi um dos instrumentos mais fundamentais para a evolução da espécie humana e pode ser uma obra de arte. Mas, ao contrário da pintura e da escultura, é muito vendável.

Imagem: Arte/UOL

Difícil precisar o que fez a cutelaria deixar de ser um ofício como qualquer outro para mudar de status, mas há um marco claro nessa história.

Segundo Hoffmann, a produção artesanal de facas já havia praticamente sumido em função da industrialização, que inundou o mercado com peças mais baratas, até ser resgatada, nos anos 1970, por um norte-americano, o cuteleiro William F. Moran, mais conhecido como Bill.

Ele foi à Alemanha aprender a técnica do aço damasco, que estava desaparecendo na Europa e só alguns armeiros mais velhos dominavam. Passou então a produzir lâminas dessa forma e difundiu a técnica pelos Estados Unidos e outros países, que se encantaram com a beleza dos desenhos que essas camadas de aço formam na lâmina.

Cutelaria no Parador Hampel Imagem: Álvaro Bonadiman

Lá pelos anos 2000, a difusão da cultura hipster — tribo de jovens urbanos que recusam a cultura comercial e valorizam costumes tradicionais — ajudou a botar lenha na fogueira.

Amantes de tudo o que é retrô, original e se mantém fora do mainstream, foram eles que promoveram o cruzamento entre o mundo da cutelaria artesanal e da gastronomia, sobretudo do churrasco.

"Os eventos da cozinha do fogo deram protagonismo às facas", atesta o chef e assador Marcos Livi. Proprietário do hotel Parador Hampel, em São Francisco de Paula (RS), onde organiza o encontro A Ferro e Fogo, Livi gosta de levar cuteleiros para que se apresentem ao vivo no evento.

Marcos Livi Imagem: Arte/UOL

Para Hoffmann, o grande divisor de águas foi o lançamento do reality show "Forged in Fire", cuja primeira edição foi ao ar nos Estados Unidos, em 2015, e já teve 10 temporadas. No Brasil, a onda chegou com três anos de atraso, mas com a mesma intensidade.

Desafio Sob Fogo Brasil e América Latina Imagem: Divulgação

Lançada em 2018, a edição local Desafio Sob Fogo Brasil e América Latina (History Channel), já teve cinco temporadas e foi vencida por brasileiros nas três primeiras temporadas: Tom Silva (2018), Daniel Jobim (2019) e Sandro Boeck (2020).

No YouTube, proliferam canais e cursos dedicados ao assunto. E o país já tem mais de uma dezena de feiras de cutelaria — em novembro, durante dois dias, o XIV Salão Paulista de Cutelaria vai reunir 240 expositores no Pro Magno Centro de Eventos, na Zona Norte da capital.

Anthony Bourdain Imagem: Arte/UOL

Objetos de desejo

Emmanuel Bassoleil e sua faca Imperial Imagem: Divulgação/Imperial

Fácil perceber que os nomes masculinos ainda imperam nesse universo, mas as mulheres já começaram a demarcar seus espaços. Aos 65 anos, Silvana Mouzinho é a figura por trás do Salão Paulista de Cutelaria, evento que ela criou em 2009 depois de fazer um curso e virar cuteleira amadora.

Em junho de 2024, Silvana esteve em Atlanta, cidade norte-americana que sedia a Blade Show, considerada a maior feira de cutelaria do mundo, onde expôs suas facas, que custam de 300 a 400 dólares.

Vendi uma peça para uma mulher que coleciona facas feitas por mulheres. Quando disse o preço, ela achou até barato, conta.

É comum que cada cuteleiro tenha uma identidade própria e escolha um nicho específico para atuar.

Há aqueles que preferem se dedicar a trabalhos de cunho 100% artístico, como Rodrigo Sfreddo e Julian Antunes, cujas peças têm um quê de joalheria, podem exibir detalhes em ouro e pedras preciosas e são disputadas por colecionadores. Nesse território, o céu é o limite para os preços.

Tsuyoshi Murakami Imagem: Arte/UOL

E há os que circulam por um terreno mais comercial, como Alexandre Barbosa, fundador da Imperial Cutelaria, de Campo Grande (MS) — terceira geração de cuteleiros, ele tem no portfólio linhas desenvolvidas em parceria com chefs famosos, como o francês Emmanuel Bassoleil, o sushiman Jun Sakamoto e o assador Jimmy Ogro.

A linha criada com as chefs Carla Pernambucano, Luiza Hoffmann e Monica Rangel têm a medida da empunhadura feminina.

Rita Lobo Imagem: Arte/UOL

Também festejado entre os chefs de cozinha, o paulista Ivan Campos produz facas 100% feitas à mão, que custam de R$ 600 a R$ 3.500.

Já Ricardo Schmidt, proprietário da gaúcha Dom Pizarro, especializou-se em facas para churrasco - ele emprega 14 pessoas em sua oficina, vende 2.500 peças por mês e faz sucesso no mercado corporativo.

É um grande filão. No fim do ano, vendo facas para muitas empresas darem de brinde. O pessoal gourmetizou o churrasco e as facas têm que acompanhar, afirma.

Heiko Grabolle Imagem: Arte/UOL

Assinaturas que valem ouro

Facas são a fraqueza do comerciante aposentado Sergio Ricci, 69 anos. Morador do Tatuapé, Zona Leste de São Paulo, ele comprou um exemplar italiano duas décadas atrás, que nem artesanal era, e deu início a uma coleção que já passa das 400 peças.

Agora, só entram para o acervo facas 100% feitas à mão, com lâminas entre 5 e 6 polegadas, porque Ricci não gosta das grandonas. "Já estou sem espaço para expor, há facas em gavetas e armários", confessa.

Muitas são peças únicas, feitas por encomenda. "Se vejo um post sobre uma faca e descubro que já foi vendida, encomendo outra com algumas variações. Às vezes, eu mesmo compro a matéria-prima."

Facas-desejo Imagem: Arte/UOL

Parte das peças entra para a coleção por puro fetiche, mas a decisão nem sempre é emocional - segundo Ricci, colecionar facas é um ótimo investimento, com retorno garantido.

Não se compra uma faca do Sfreddo por menos de US$ 2 mil, mas vale, porque consigo vender por US$ 3 mil daqui a um ano.

Com tanta faca guardada, ele reserva algumas poucas exclusivamente para seu uso. As belezinhas são tratadas a pão de ló: afiadas com pedras diamantadas e lavadas com água, sabão neutro e esponja macia. E ai de quem puser as mãos nelas.

Enxoval - cutelaria Imagem: Arte/UOL

Que material escolho?*

Imagem: Getty Images

Embora o aço inoxidável seja o mais usado, porque nunca enferruja, as facas de aço carbono mantêm o fio por mais tempo.

Há ainda as de cerâmica, feitas de dióxido de zircônio, bem mais leves e bastante afiadas - mas elas não aguentam o tranco para cortar alimentos muito firmes, pois podem quebrar, e não podem ser afiadas em casa.

Como cuidar das facas?

Sempre lave a peça logo após o uso, com água fria ou morna, e nunca a deixe de molho, para não estragar o cabo.

Evite que fique exposta por muito tempo a alimentos ácidos ou alcalinos, como limão, vinagre, mostarda, sal e tomate, o que pode manchar a lâmina - se acontecer, limpe com material não abrasivo.

* Fonte: curso intensivo de parrilla, ministrado pelo Rincón Escondido, em São Paulo.

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