Cachorro-quente nasceu nos EUA por saudade de alemão e é alvo de disputa

Apesar de hoje apreciado em diferentes cantos do mundo, o cachorro-quente nasceu nos EUA e tem uma história relativamente recente — de pouco mais de um século e meio de evolução.

O mais antigo registro de que se tem notícia de um lanche com pão e salsicha é da década de 1860. Segundo reportagem da rede britânica BBC, o cachorro-quente é produto do "pós-Guerra Civil Americana e [do processo] de formação de uma nova identidade" cultural no país. Curiosamente, a receita tem um pezinho no continente europeu.

Charles Feltman, o imigrante alemão que é considerado "o pai do cachorro-quente"
Charles Feltman, o imigrante alemão que é considerado "o pai do cachorro-quente" Imagem: Reprodução/Feltman's of Coney Island

Seu criador teria sido o imigrante alemão Charles Feltman, de acordo com pesquisas de Edo McCullough, do professor universitário Brian J. Cudahy e do historiador Michael P. Onorato, que assinam o livro "Good Old Coney Island". A obra reconta a história da ilha que é parte da cidade de Nova York, onde o lanche teria nascido em 1867.

McCullough, aliás, era descendente de uma das famílias fundadoras de Coney Island, pioneira na construção dos famosos carrosséis que até hoje movimentam os parques de diversão à beira-mar. E foi justamente ali, em meio aos esforços de distrair banhistas, que o alemão Feltman começou a usar o pequeno fogão de seu carrinho para ferver salsichas e vender os primeiros lanches com pão fresco pelo icônico calçadão.

O cachorro-quente americano nasceu com duas salsichas: a Wiener (salsicha vienense) e a Frankfurter Würstchen (salsicha de Frankfurt)
O cachorro-quente americano nasceu com duas salsichas: a Wiener (salsicha vienense) e a Frankfurter Würstchen (salsicha de Frankfurt) Imagem: oscar acosta/Getty Images

Feltman teria apelidado a criação de "Coney Island Red Hots", que ele preparava originalmente com um tipo de salsicha alemã famosa desde o século 13: a Frankfurter Würstchen, macia, comprida, fininha e tradicionalmente feita apenas da carne de porco.

A certa altura, a receita também passaria a ser feita com a Wiener, a salsicha vienense que mistura suínos e bovinos em sua composição.

À BBC, o o historiador Michael Quinn, especializado em Coney Island, contou que Feltman chegou aos EUA em 1856 e, como muitos imigrantes, trouxe consigo a afinidade (e a saudade) de ingredientes de sua terra natal.

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Padeiro profissional, ele abriu sua primeira padaria no Brooklyn em 1865. Pouco depois, ele se estabeleceu financeiramente graças ao sucesso de vendas do carrinho.

A loja da Feltman's no calçadão de Coney Island por volta de 1900
A loja da Feltman's no calçadão de Coney Island por volta de 1900 Imagem: Reprodução/Facebook

A popularidade do lanche foi impulsionada pela construção da ferrovia do Brooklyn, segundo Richard F. Snow, ex-editor da American Heritage Magazine. Quem chegava de Manhattan à ilha reclamava a Feltman que não queria comer mariscos frios, mas comida quente, o que teria inspirado o padeiro a encomendar a customização de seu carrinho para incluir um braseiro para a fervura das Frankfurter, além de uma caixa metálica que manteria o pão morno.

Charles Feltman teria vendido quatro mil dos "Coney Island Red Hots" no verão inaugural de 1867, com a economia americana em plena recuperação da Guerra Civil. Cada um deles custava um níquel, ou seja, US$ 0,05 da época. Na contramão do hábito alemão de comer os salsichões puros em climas frios, o cachorro-quente tinha a vantagem de ser fácil de ser degustado na areia da praia.

Como era a Feltman's nos anos 1930, quando o lanche já era servido com cerveja alemã no calçadão de Coney Island
Como era a Feltman's nos anos 1930, quando o lanche já era servido com cerveja alemã no calçadão de Coney Island Imagem: Reprodução/Facebook

A boa ideia levou à abertura da primeira unidade da Feltman's no calçadão, o Feltman's Ocean Pavillon que, de acordo com a própria marca, chegou a ser reconhecido como o maior restaurante do mundo no início do século 20 ao servir até 10 mil visitantes ao mesmo tempo.

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Nos anos 1920, a primeira unidade havia se convertido em um verdadeiro "Império do Cachorro-Quente", já que o Ocean Pavillon de Charles passou a ocupar um bloco inteiro com nove restaurantes, um "jardim cervejeiro", cinema ao ar livre, hotel e até parque de diversão.

O Nathan's é um dos mais tradicionais e antigos pontos para provar um cachorro-quente das antigas em Coney Island
O Nathan's é um dos mais tradicionais e antigos pontos para provar um cachorro-quente das antigas em Coney Island Imagem: Alan Schein/Getty Images

O cachorro-quente seguia um hit do cardápio: até 40 mil eram vendidos em um único dia. Até o presidente americano William Howard Taft teria sido hóspede do hotel da Feltman, reportou a BBC. No livro "The Other Islands of New York City", os jornalistas Sharon Seitz e Stuart Miller relatam que o criador do lanche conseguiu convencer Andrew Culver, presidente do Prospect Park e da Coney Island Railroad a estender o horário de serviço dos trens que chegavam à ilha para permitir que os clientes ficassem no restaurante para o jantar.

Charles Feltman morreu em 1910, deixando o negócio próspero aos filhos. Em 1916, um ex-cortador de pães da Feltman's, o polonês Nathan Handwerker, pediu demissão para se tornar o primeiro concorrente real do antigo patrão com sua lojinha de cachorro-quente na vizinhança.

Participantes da edição de 2024 do Nathan's Annual Hot Dog Eating Contest
Participantes da edição de 2024 do Nathan's Annual Hot Dog Eating Contest Imagem: Bill Tompkins/Getty Images

Assim nascia o restaurante Nathan's, que briga pelo título de "hot dog original" até hoje no calçadão de Coney Island.

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Esta rivalidade marca o momento em que o cachorro-quente deixou de ser simplesmente uma invenção — ou monopólio — de Feltman para se tornar uma receita americana, espalhando-se pelo país. Lloyd Handwerker, neto de Nathan, escreve no livro "Famous Nathan" que o avô foi encorajado por dois amigos a abrir o próprio negócio e que ele chegou a dormir no chão da Feltman's para economizar.

Torcida do Nathan's Annual Hot Dog Eating Contest
Torcida do Nathan's Annual Hot Dog Eating Contest Imagem: Adam Gray/Getty Images

Ao abrir o Nathan's, o polonês teria não só se armado de receitas caseiras da esposa, mas de uma sólida estratégia para conquistar as massas: ele passou a vender seus lanches a US$ 0,05, já que os ex-patrões a essa altura cobravam US$ 0,10 pelo cachorro-quente. Deu certo.

Um dos quiosques atuais da Feltman's em Nova York
Um dos quiosques atuais da Feltman's em Nova York Imagem: Reprodução/Facebook

Não só Nathan prosperou como, após as dificuldades trazidas pela Grande Depressão e pela Segunda Guerra, a família Feltman resolveu vender o negócio nos anos 1940. Em 1954, o restaurante fechou as portas de vez. Assim, o Nathan's passou a reinar solitário no calçadão de Coney Island.

Até que, em 2015, o historiador Michael Quinn — cujo avô era fã da receita original dos "red hots" — conseguiu de um ex-funcionário da Feltman's a receita do tempero original da Frankfurter. Ele relatou à rede britânica que comprou os direitos à marca e a reinaugurou com um pequeno quiosque dentro de um cinema no East Village. Em 2017, finalmente, a Feltman's voltou ao seu local original no calçadão de Coney Island.

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A Feltman's hoje fabrica produtos para cachorro-quente e distribui por todo o território dos EUA
A Feltman's hoje fabrica produtos para cachorro-quente e distribui por todo o território dos EUA Imagem: Reprodução/Facebook

As salsichas são hoje feitas apenas com carne bovina, contudo. Sua semelhança com a original estaria no sabor defumado e na suculência, além da composição livre de nitratos e outros ingredientes artificiais, promove a marca, que ainda comercializa as "red hots" em mercados pelo país.

A presença mais marcante do calçadão, enquanto isso, continua sendo do Nathan's, responsável por organizar desde 1972 a competição internacional de quem come mais cachorro-quente — uma tradição que é transmitida até pela tevê nos EUA.

O carrinho de cachorro-quente hoje é uma instituição das ruas de Nova York (foto) -- e do mundo todo
O carrinho de cachorro-quente hoje é uma instituição das ruas de Nova York (foto) -- e do mundo todo Imagem: Carolina Camargo

Mas, quem manda no calçadão não importa mais. A briga, agora, é de "cachorro grande" — por mais e mais fãs do lanche mundo afora.

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