De Lupin a Beyoncé: fonte em Paris escancara tensão da França colonialista

Astro de um dos filmes franceses mais bem-sucedidos de todos os tempos ("Os Intocáveis", de 2011) e com passagens por grandes franquias hollywoodianas ("Jurassic World", "Transformers", "X-Men"), Omar Sy é um dos rostos mais conhecidos do cinema francês da atualidade. A fama cresceu ainda mais desde que ele estrelou a série "Lupin", da Netflix.

Uma cena específica no começo da série, que mostra um Lupin ainda menino passeando com seu pai em uma bela fonte parisiense, abre espaço, mesmo que involuntariamente, para a complicada situação do racismo estrutural na sociedade francesa - ainda mais por ser Sy um filho de imigrantes africanos. O objeto não é a cena em si, mas a obra de arte no pano de fundo.

Localizado em um parque contíguo aos Jardins de Luxemburgo, o local se chama Fonte dos Quatro Cantos do Mundo ou Fonte do Observatório, porque fica no início da avenida que dá acesso ao Observatório de Paris. Ela foi construída entre 1867 e 1874 e é fruto do trabalho de alguns artistas. A obra mais importante, que lhe dá nome, é a escultura no meio da fonte, que mostra quatro figuras femininas segurando o globo terrestre.

O autor, Jean-Baptiste Carpeaux, quis representar os "quatro cantos" com quatro mulheres, Europa, Ásia, África e América, cada uma com uma etnia que representasse seu continente. As pernas de África têm um detalhe diferencial: restos de uma corrente quebrada presa no tornozelo. Seria a liberdade, não fosse América pisando em seu pé.

Trata-se de uma referência ao movimento abolicionista que se espalhava pelo mundo, mas ainda estava longe de ser universal. Nos anos 1870, a escravidão de negros de origem africana ainda existia oficialmente em lugares como o Império Turco-Otomano, a Cuba colonial e o Império do Brasil.

Para conceber o rosto de África na escultura da fonte (que tem uma outra versão no acervo do Museu D'Orsay), Carpeaux fez uma série de bustos intitulada "Por que Nascer Escravo?". Essa obra, que mostra uma mulher escravizada, com o peito nu amarrado, olhando desafiadoramente sobre o ombro, acabou se tornando mais famosa do que a própria fonte. É uma escultura icônica do século 19 sobre a representação dos africanos e uma forte mensagem antiescravidão de seu tempo.

Mas o contexto em que foi criada e as mensagens que ela passa a tornam uma escultura complexa e carregada de idiossincrasias e contradições para uma imagem que foi por tanto tempo usada para simbolizar a luta pela liberdade. Pelo menos à luz do século 21.

Fontaine de l'Observatoire, em Paris
Fontaine de l'Observatoire, em Paris Imagem: The Print Collector/Getty Images
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O Museu Metropolitan de Nova York realizou uma exposição, encerrada em março deste ano, centralizada no busto de Carpeaux. A mostra propunha um diálogo entre a escultura e outros trabalhos do século 19 com a mesma temática e convidava o público para refletir sobre a ambiguidade que a "Négresse", como era chamada, passava.

Para começo de conversa, o escultor usou como modelo, em 1868, uma mulher cuja identidade se perdeu no tempo, porque ele não se deu ao trabalho de registrar o nome dela, tampouco de onde ela vinha. Além disso, a obra serviu de base para a escultura da Fonte do Observatório, que era uma celebração do imperialismo francês típica do século 19.

"Por que Nascer Escravo?", no Metropolitan Museum of Art (Met)
"Por que Nascer Escravo?", no Metropolitan Museum of Art (Met) Imagem: Spencer Platt/Getty Images

Carpeaux fez algumas versões do busto, em diferentes materiais e tamanhos, porque o dinheiro estava curto naqueles tempos. Segundo a curadoria do museu, ele sabia desde o princípio que a temática teria muito público dos dois lados do Atlântico (os Estados Unidos haviam recentemente acabado com a escravidão). Assim, por mais que o artista defendesse a causa, ele a abraçou, também, pensando nos lucros.

Colecionadores ricos correram para ter a sua escultura. Entre eles estava o próprio Napoleão 3º, cujo reinado foi marcado pela expansão vertiginosa do Império Francês, graças às investidas colonialistas na África, na Ásia e na Oceania.

Em suma, de acordo com o museu, "Por que Nascer Escravo?" propagou uma ideia romantizada e até erotizada da escravidão. Elyse Nelson, cocuradora da exposição, descreveu o efeito, em um artigo, como uma "fantasia perturbadora de servidão embelezada".

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Arte com Beyoncé

Isso não quer dizer que a obra de Carpeaux tenha sido "cancelada". Pelo contrário, houve uma espécie de apropriação nas últimas décadas. A imagem acabou absorvida pelo orgulho negro. Wendy Walters, outra curadora da mostra, falou a respeito disso em entrevista à revista "Harper's Bazaar".

"Quando ando pelo Harlem, vejo representações dela nas janelas, algumas pessoas têm em casa", disse.

La Negresse
La Negresse Imagem: Universal History Archive/UIG/Getty Images

Walter lembrou também de duas cantoras que, em épocas diferentes e de maneiras diferentes, se apropriaram da imagem. Em 1998, Janet Jackson exibiu sua casa de Malibu a uma revista de arquitetura. Entre as esculturas na decoração, havia uma cópia em terracota do busto de Carpeaux.

Em 2020, Beyoncé estrelou uma campanha publicitária da Adidas ao lado da obra de arte. "A representação vive seu próprio tempo, ela se separa da obra original e segue outra linha do tempo, o que pode ser complicado", disse Walter.

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Das oito versões conhecidas assinadas por Carpeaux, só uma está na África. Fica em Reunião, uma ilha no Oceano Índico que pertence à França. Testemunho evidente dos resquícios do colonialismo.

A França conseguiu a proeza de abolir a escravidão duas vezes, porque Napoleão reinstituíra a prática. A última, e definitiva, foi em 1848, 20 anos antes de Carpeaux conceber sua série. O último país a jogar a prática oficialmente na ilegalidade foi a Mauritânia, em 1981. É a terra natal da mãe de Omar Sy e, também, uma ex-colônia francesa.

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