'Bunda-mole eu nunca fui': Alex Atala dá cara a tapa por cozinha brasileira
Diante das inúmeras regras da cozinha, é da indisciplina que surgem os pioneirismos. É essa a tônica do começo da conversa com Alex Atala, em plena terça-feira, num Dalva e Dito funcionando a todo vapor.
Se a reportagem conta que é indisciplinada para perguntar, o chef rebate:
Ótimo, porque sou indisciplinado para responder.
Em uma trajetória de mais de 30 anos de cozinha, foram inúmeras as perguntas já feitas e sobra pouco para surpreender-se com o maior nome da gastronomia brasileira? Ledo engano. Com Atala, como na natureza que tanto o inspira, nada corre para o mesmo lugar, tudo se transforma, cresce, evolui ou se esvai.
Com braço e joelho recém-operados (e desde a pandemia foram sete cirurgias no corpo de um faixa-preta em jiu-jitsu), Alex não se esquiva de sentar, levantar, posar. Mas a fase é outra. O rockstar, como tantos (Cohen, Harrison, por exemplo), quer o desafio de tempos tranquilos, da concentração ainda obcecada, mas menos dolorida de ansiedade e mais colorida de novidades.
Estava diante de um homem e sua garrafinha de detox líquido - dez dias sem comer nada sólido e à base de água, limão, pimenta caiena e mel.
"No primeiro dia você fica mais fraco e partir do terceiro, quarto dia, eu entro em êxtase e fico ótimo. Faço tudo, treino, faço ioga. Até o oitavo dia, fico muito bem. E não se preocupe, faço isso há muitos anos".
Alex explica que durante todo o ano come o que quer, quando quer.
"Indulgência é uma palavra que faz parte da minha vida. Por outro lado, eu tenho que dar um respiro", diz diante de pães de queijo, pastel de vatapá, amendoim (cozido, como no Nordeste. E não assado, como no Sudeste se acostumou), e minha galinhada - que acabaria semidevorada no decorrer do bate-papo.
Do bife à estrada
O amor pela comida vem de longe e em forma de bife.
A família era grande. Além de quatro filhos, sempre moramos com mais uma ou duas pessoas, como tios e primos. Então, tinha um bifinho para cada um. Um dia, minha mãe me perguntou o que eu queria de presente de aniversário e eu falei 'quero um quilo de alcatra para comer sozinho'.
Outra lembrança é seu amor pela rabada, que sua mãe fazia de vez em quando, e seu prato favorito da vida: arroz e feijão.
E dessa combinação ele não abre mão não só no Dalva e Dito, como no filho mais velho, o estrelado e celebrado mundo afora D.O.M. "Não é truque de chef brasileiro", garante.
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Quero receberMais memórias da juventude balizam seus gostos e criações, como o bolinho de milho de uma tia-avó e sua cremosidade inesquecível - e irreprodutível.
"Primeira vez que comi aquilo, eu enlouqueci. E um dia ela morreu e não tinha mais bolinho. Passaram-se anos, eu já tinha voltado da Europa e fui visitar uma das filhas dela, que fez o bolinho. E não era a mesma coisa.", lembra.
Tudo o que eu comi na vida e que me deu esta emoção de 'muito bom', o balizador de quanto realmente é bom é o bolinho da minha tia avó, declara.
Também foi da família, enraizada entre Mooca e São Bernardo do Campo, que veio a alma viajante, de achar o que comer no meio da estrada e conhecer coisas do Brasil. "Desde meu pai e meu avô, sempre fui muito apaixonado por essa coisa da aventura, de ir para o mato, de pescar e de gostar da comida".
Avô, aliás, que quebrava o paradigma do legado feminino na cozinha e era um cozinheiro de mão cheia.
Depois, já cozinheiro na Europa, Alex descobre que trufa tinha que ser caçada, e que o cara que colhia essas coisas tinha um orgulho do que é tradicional.
"Se trufa fosse brasileira, como ela ia se chamar? Merda, né. Ninguém ia dar valor, cara", citando também as alcachofras de Jerusalém, celebradas na França, abundantes e ignoradas no Brasil.
Quando voltou ao Brasil, trouxe essa observação de que a gastronomia europeia era montada em cima de um orgulho de território.
A gente tem um repertório gigantesco, evoluiu muito nos últimos 10, 20 anos, mas ainda tem muito o que fazer. Quanto mais a gente estuda, mais continuamos a descobrir. A exploração não está na tua cara. Quando você não pergunta, é porque não dá valor. E para coisas que estão embaixo do nosso nariz.
Um coração na Amazônia
Em um dos livros que assina ("Com Unhas, Dentes & Cuca", de 2008), Alex cita uma aposta do mestre Ferran Adriá de que Brasil e a China seriam a gastronomia do futuro. Será que ele ainda pensa isso, quase 20 anos depois?
"Nós somos as crianças com mais brinquedos na sala. Temos a maior biodiversidade do mundo, mas até pouco tempo a ciência e a cozinha dialogavam muito mal", crava e desanda a contar as maravilhas dos cogumelos amazônicos e sua parceria com Noemia Kazue Ishikawa, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).
A união "ultra virtuosa", como Atala define, entrou em sua cozinha, em sua vida e transformou, por exemplo, os Sanöma - parte do povo Yanomami da região de Awaris, nas florestas de montanha do extremo noroeste de Roraima.
Neste território, onde não se chega de carro ou barco, mas de avião, o domínio do conhecimento das espécies de cogumelo e de toda a biodiversidade local é dos nativos.
Coube a Noemia identificar as espécies e organizações, como Instituto ATÁ, do qual Alex é co-fundador, Hutukara Associação Yanomami e Instituto Socioambiental (ISA) transformar essa riqueza para sustento local e divulgação dos produtos amazônicos - unicamente amazônicos, diga-se.
Tem mais uma coisa: cogumelos você não planta, eles são espontâneos, então você não pode tentar cultivar, mas você pode criar condições para que ele prolifere melhor e isso acontece dentro do sistema de natural dos yanomamis. Por isso que é tão especial você ter nas suas mãos.
A próxima paixão já tem nome e lota o scroll do celular de Atala: ariá, uma planta de folhagem densa e raízes tuberosas, como pequenas batatas, encontrada também em território amazônico. No Pará, Amazonas e Amapá pode parecer comum, mas o desejo de Atala é se espalhar pelas cozinhas de São Paulo e do mundo. "Daqui a uns anos a gente come ariá junto", profetiza.
Gastronomia como vitrine
No seu papel como chef, dono de restaurantes e apaixonado por ingredientes, técnicas e processos, Atala vê com bons olhos as tendências da gastronomia.
"A gente passou um momento em que os chefs já não queriam nem ouvir falar mais falar de Amazônia. Do mesmo jeito, com o Pantanal, sul do Brasil. É importante que a gente crie essas ondas e, com elas, mais profissionais que comecem a se debruçar sobre esses temas".
Segundo Alex, hoje passamos por um momento de fusão da cozinha brasileira - "e me faz muito feliz fazer parte disso. Houve e haverá exageros, mas o legado será positivo".
"Falo que, às vezes, uma boa ideia fora do tempo dela é uma merda. Em 2008, renunciei ao uso de foie gras, trufa e caviar no D.O.M, e fui criticado. Hoje, quem precisa disso em São Paulo? Acho que aquilo foi um acerto meu, mas talvez fora do tempo correto."
Sempre tem alguém que precisa botar a cara a tapa e paga por isso. Bunda-mole eu nunca fui, declara.
Os últimos românticos e suas manhas
E da mesma forma passional - mas num tom sempre cordial - que Atala encontra um quê de nostalgia. "Hoje eu sinto falta do romance que a gente tinha na juventude", conta.
Alex lembra que os jovens chefs da época se esforçavam para arrumar um livro de Joël Robuchon, um dos pioneiros da Nouvelle Cuisine, ou uma assinatura da Thuriès Magazine.
"A gente não estava estudando só a cozinha, mas também as fotos, as louças. Tinha essa paixão, essa poesia por aprender. Era tudo um sonho", relembra.
Sobre as novas gerações, Atala aplaude o conhecimento técnico de seus discípulos, mas aponta que a qualidade é de quem sabe e faz ao vivo.
Cozinheiro precisa cozinhar. Jogador de futebol que não treina, não fica bom. Não adianta ter técnica, ter livro, ter equipamento, se não praticar. É por isso que a nossa avó cozinha pra caralho.
Não basta cortar o que quer que seja em cubinhos milimétricos, mas também prezar pela gestualidade e elegância, ter as manhas.
O chef defende este ponto com sua própria trajetória. Em seis anos de Europa, dos 18 aos 24 anos, "não tinha um gato pra puxar pelo rabo e não queria ficar em casa. Era mais gostoso ficar no restaurante e praticar. Vivi a cozinha intensamente e até de forma desmedida. Exagerei até."
E é nesse ponto em que Alex Atala encontra Carmen "Carmy" Berzatto, o protagonista da série-hit "O Urso", da qual o chef da vida real se declara fã. E não pelo lado belo, mas justamente pelo retrato - segundo Atala bem real - da rotina insana e, sim, insalubre de viver de cozinha.
Ser dono de um restaurante não é só cuidar do negócio, mas das pessoas. Inclusive de você mesmo. Tem que tomar muito cuidado com a efemeridade do que é um restaurante hoje, confessa.
Enquanto o D.O.M soma 25 anos, o Dalva soma 15. Dá pra deitar a cabeça no travesseiro e falar que a vida já se resolveu? Definitivamente, não.
"E você vai vendo os seus pares. Alguns dos restaurantes que foram de intocáveis da gastronomia não ficam nem na memória das pessoas", lamenta. "São Paulo trata muito mal sua memória da gastronômica".
Dignidade de ser chef
É difícil não ouvir o nome de Atala nas bocas dos chefs contemporâneos ou mais jovens que ele. E a recíproca é verdadeira e declarada. Que o digam Rodrigo Oliveira, do Mocotó, e Manu Buffara.
A Manu, não só pelo talento da cozinha, mas ela consegue remar contra todas as correntezas. Chef, empreendedora, fora do eixo Rio-São Paulo, mãe. Ela vai pra todas as frentes, afirma.
"Já o Rodrigão é o cara que não tem como não falar da cozinha nordestina hoje no Brasil sem passar por ele, não tem outro caminho. Esse é nosso Suassuna", diz.
Diante da profissão chef e dos negócios de cozinha cada vez mais explorados e expostos, seja nas redes e nas mídias mainstream, Atala só lamenta os ódios gratuitos, mas não as críticas - "essas ajudam a balizar muito do que fazemos".
Mais uma vez, usa exemplo do colega Rodrigo de como ainda gira vários pratos com a vontade não só de continuar, como de expandir e se desafiar.
"Ele consegue ter muito bem equilibrado o que é família, o que é ter um restaurante de sucesso, um trabalho social e militar por causas. Sem ofender ninguém, sem ir pra internet xingar ninguém", declara.
Adoraria ter este equilíbrio, essa aura, que carrega tudo com orgulho, prazer com dignidade. Que surjam mais Rodrigos e que as pessoas vejam este segmento na sua totalidade, não nas suas frações.
O melhor no futuro
"O melhor momento é sempre aquele que está por vir", filosofa. Não sem provas: após convites impedidos por contratempos e uma pandemia, Atala dará uma aula em Harvard em novembro.
Quando você chega num momento da sua carreira, tudo parece que só poderia ir para baixo, e não é. Outras coisas legais vão acontecer. E a hora que você recebe um convite desse tamanho... caralho, declara.
Os próximos 25 anos de D.O.M, que está prestes a lançar novo menu após uma reforma "ninja", faz Atala parecer preocupado por ele e Geovane Carneiro, seu braço-direito, não terem sucessor para quando jogarem a toalha, já que da prole de ambos, nenhum enveredou pelo caminho das cozinhas.
O nome do subchef baiano Romário Rodrigues - "um talento" - surge como forte aposta.
Mas, calma aí. "Tem muito projeto ainda", se tranquiliza. E os olhos estão também estão no Olimpo da gastronomia: o Guia Michelin.
Se na última edição, o retorno a São Paulo e a entrada do Rio, em 2024, manteve as duas estrelas para o D.O.M, Atala segue querendo mais - a terceira, obviamente.
Ela vai vir. Mas só um bobo ia esperar a terceira agora. Nós saímos de uma pandemia. Outra coisa: Michelin não distribui estrela para ficar bem com todo mundo. Quem achou isso se engana. É a joia mais dourada da coroa. Pode ser uma conversa de velho? Pode. Mas eu quero. Mas ela virá porque eu vou atrás, caralho!
E comemora a felicidade de manter duas estrelas, "porque só Deus sabe o quanto eu me caguei. A vida nunca foi facinha aqui e sabia que, se não viesse, seria horrível".
Das estrelas para a cozinha de casa, Alex também se derrete por seu canal no YouTube, em que ensina passo a passo, sem firulas e superprodução os "jeitinhos" da cozinha. Zero pretensão em ser um curso para virar um profissional de cozinha.
E por falar em vídeo, sua participação na segunda temporada de Chef's Table (Netflix) ainda rende - além das boas histórias, como a dos 10 dias usuais da gravação de um episódio que viraram 20.
O que eu falava pra eles é que o milagre nunca teve dentro do D.O.M. Ele é um catalisador de coisas que acontecem por esse Brasil inteiro.
E foi assim, excepcionalmente menos focado no restaurante em si, que o episódio de Atala é um dos maiores sucessos da série que, desde 2015, contou histórias de outros monstros da gastronomia mundial, como o italiano Massimo Bottura, o argentino Francis Mallmann, o peruano Virgilio Martínez e o catalão Albert Adriá.
Na onda de séries gastronômicas, desfila pelas ideias de Alex mais um desejo: a de uma produção documental sobre cozinha brasileira. "Eu posso ser uma voz, mas não posso ser o frontman", antecipa.
Na despedida e conclusão da entrevista, instituímos os dois beijinhos de tchau, para trazer a São Paulo, mais uma vez, o que outros lugares do Brasil fazem melhor. "Acho uma economia besta", brinca. Um homem com sua cozinha não quer guerra com ninguém.
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