Chef que levou 'trens gostosos' a Paris faz as pazes com seu Brasil
Após mais de 20 anos na França, a chef brasileira Alessandra Montagne custa a puxar na memória algumas palavras em português. Porém, esta carioca do Morro do Vidigal criada na pequena Poté, ao nordeste de Minas Gerais, deixa escapar a interjeição que corre nas veias e em muitos de seus pratos: o potente e inesquecível "uai".
Criada pelos avós na roça, Alê - como uma intimidade imediata convida a chamá-la - não nasceu cozinheira de vitórias e "voilás". Aliás, sua primeira memória ao lado do fogão é de uma derrota.
"Quis ajudar minha avó a fazer comida, mas, como eu era muito pequenininha para alcançar o fogão, ela colocou um tamborete para fazermos arroz". Entre panelas de barro, fogo a lenha e banha de porco, a criança - que deveria mexer a panela - foi brincar e esqueceu-se do tempo.
"O arroz pegou fogo e foi horrível. Chorei com medo de apanhar e fiquei em pânico. Comecei errando, mas minha avó não ficou chateada e me deixou refazer. Fiquei esperta", relembra a chef, cuja resiliência de uma lembrança infantil seria ainda mais útil em passagens muito mais violentas de sua história.
Do passado ainda inocente, traz na memória e nos menus a barriga de porco, que à moda mineira, foi sua primeira bandeira na conquista de Paris, de Alain Ducasse e do museu mais famoso do mundo.
Para contar a história de Alessandra, porém, não se pulam etapas. O bom e o ruim fazem parte, como ela já não esconde mais.
Dores de Poté, prazeres de Paris
Quem vê essa fortaleza de 47 anos (completados em 8 de março, Dia Internacional da Mulher), com dois restaurantes e presença celebrada na França e fora dela, não imagina que cozinhar já foi gesto automático, de quem cuidava de uma casa e nem se dava o direito de sonhar.
Com apenas 16 anos, a jovem engravidou, se casou obrigada e passou a sofrer "quatro anos dentro de um inferno que é difícil lembrar". Dessa época, da qual começou a falar recentemente, leva pesadelos, coração disparado e traumas. Mas também é de lá que surgem as viradas.
Suas coxinhas de frango, que hoje abalam Paris, foram sustento da mãe adolescente e permitiram a fuga da jovem com seu filho pequeno nos braços para a casa de uma tia no bairro de Itaquera, em São Paulo.
De lá, com ajuda da mãe e do ex-padrasto, partiria para a França com promessa de estudo e trabalho quando voltasse. Os previstos seis meses de estadia viraram mais de 20 anos.
Na bagagem, as tradições imutáveis e amorosas da cozinha brasileira. Na chegada, o amor à primeira vista pela culinária francesa - tão fina, tão intelectual e criativa. No futuro, por convencimento do companheiro francês e de amigos encantados com empadão dos piqueniques, se formaria com louvor cozinheira da Médéric.
A cozinha sempre me abraçou de uma maneira como se eu não tivesse outra escolha, conta.
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Quero receberPara Alessandra, foi através do que saía de suas panelas que sentiu, finalmente, carinho e reconhecimento que faltavam desde a infância. A chef conta que foi uma criança que segurava o choro para não dar mais trabalho aos avós, que já criavam nove filhos.
Pela primeira vez, me olhavam com orgulho. Comecei a existir.
Deixar a vida dolorosa no Brasil e fazer acontecer na França para poder se reunir ao filho pequeno era urgente. "Quis me assimilar, ser igual a eles, me vestir igual a eles, fazer tudo certinho de acordo com os costumes e regras deles". Isso que acelerou sua adaptação, como acredita Alessandra.
Apesar do acolhimento, no começo, sua dura história no Brasil só seria compartilhada com pouquíssimas amigas, depois calada até entre conhecidos e, somente há quatro anos, começaria a ser rememorada em conversas, confidências e, depois, entrevistas.
A tristeza do passado a fez até "perder" o caminho de casa. "Enfiei embaixo do tapete mesmo e foi essa minha relação com o Brasil durante esse período, tanto que nunca mais fiz passaporte brasileiro ou vim passear por aqui".
Restaurar a alma
Cidadã francesa e formada em cozinha, Alessandra passeou pela alta cozinha e aprendeu com mestres Adeline Grattard e William Ledeuil.
Porém, já reunida com o pequeno André e depois mãe de Thais, foi graças aos filhos que Alessandra deu o passo para empreender.
Não via os meus filhos e eu não podia ficar trabalhando a vida toda e não ver os meus filhos. Não tinha lógica.
Após anos sem férias e muita economia, abriu seu Tempero, em 2012, no 13ème arrondissement.
"Ter um restaurante não é fácil em lugar nenhum do mundo, mas eu não tinha a noção, tá? Ninguém me explicou. Mas preferi ganhar menos dinheiro, ganhar tempo de vida com as crianças e torcer pelo sucesso".
E assim vieram as filas na porta. Em uma semana.
Aberto sempre no almoço e quarta e sexta no jantar, até então, a primeira crítica, por assim dizer, veio da vizinhança composta por muitos judeus.
"Um dia eu cheguei no restaurante e tinha um abaixo-assinado embaixo da porta. Nele dizia: 'Olha, pra gente, sexta é Shabat. Por favor, abra o seu restaurante na quinta para a gente poder aproveitar'. Foi lindo. Eu chorei tanto."
Pequeno demais para o sucesso que fazia, o bistrô Tempero e sua cozinha com capacidade para apenas três pessoas, era a semente para voos ainda mais altos. "Comecei a ter vontade de aprender mais, de ir mais além, de fazer uma comida mais gastronômica".
O primeiro Tempero é vendido para abrir alas para o Nosso, a ser inaugurado em março de 2020. Sim, em plena (e até então misteriosa) pandemia.
Dinheiro bloqueado, sem restaurante ou reserva, Alessandra passou a trabalhar na empresa de suplementos alimentares do marido, não como chef, mas como administradora de 58 funcionários, da portaria ao transporte. "Enquanto eu não aprendi o trabalho de cada um, eu não assumi a direção da empresa", conta orgulhosa.
Enquanto isso, o novo restaurante, finalmente aberto em 2021, representava mais um recomeço. "De novo na vida, começava da estaca zero", lembra Alessandra.
Foi um período que eu mais trabalhei. Aí eu entendi que tudo que eu posso absorver de resiliência, de dificuldade. Hoje eu sei como eu faço para meu corpo dar conta, eu conheço meus gatilhos. E eu sei que eu posso ir muito longe, que para me derrubar, minha filha, só a morte.
Um mestre leva ao Louvre
No primeiro encontro com Alain Ducasse, ainda no Tempero do 13ème, o veterano apertou a mão de Alessandra e segurou um olhar direto por longos segundos. A brasileira acabara de cair nas graças do ícone da gastronomia.
"Desde então, ele sempre me colocou em coisas que eu nunca pensei que estaria pronta para fazer", reconhece.
São muitas as deliciosas histórias, como a de uma palestra sobre comida francesa para 200 pessoas no Ministério das Relações Exteriores local, um jantar para os maiores nomes da "cuisine", como Guy Savoy e Gérald Passédat.
Ou de uma noite informal, em que conseguiu tirar Alessandra de dentro da cozinha para jantar com ele e provou por A mais B que a equipe não precisa dela - "você é a única que ainda não sabe disso", disse.
Com isso, deu aquele empurrãozinho para que a chef empreendesse em novas frentes e até reabrisse o Tempero, em 2022, e desta vez no 6ème - mais central e evidente para os olhos do mundo.
Mais recentemente, foi dele que surgiu uma misteriosa proposta.
O convite foi 'Alessandra, eu abri um negócio aqui, estou formando um time e tal. Eu só vou te falar depois que você pensar e precisa assinar um contrato de confidencialidade. Daqui cinco minutos eu te ligo'. Nem pensei e disse sim.
O "sim", no caso, foi para comandar um dos restaurantes do Museu do Louvre, que passarão por reforma completa até o fim de 2024 e abrigarão os projetos dos "escolhidos de Ducasse".
Hoje um carinhoso amigo, Ducasse não é padrinho somente nas cozinhas, nem conselheiro somente nas receitas.
Ele mesmo um sobrevivente - literalmente, uma vez que foi o único a sair vivo de uma queda de avião em 1984 -, Ducasse se solidarizou com o passado de Alessandra ao conhecê-lo muito tempo depois do primeiro encontro, e quase que por acaso.
Eu nunca contei nada da minha vida para ele, mas ele ouviu uma entrevista minha em 2021 ou 2022, que me abri sobre a vida. Neste dia, recebi uma ligação dele, que disse 'sempre soube que tinha um vazio, um buraco, sempre vi isso em você. Eu só queria te parabenizar porque você não deixou as suas dificuldades se atrapalharem a sua vida. Você não se puniu duas vezes'.
Tripas na mesa
Desde os estágios em restaurantes estrelados, Alessandra teria como marca fusões, criatividade e liberdade - e além. A definição favorita do que faz - e a que fez o coração da reportagem bater mais forte - é a de um crítico do Le Monde, que disse que Alessandra "coloca as tripas na mesa".
Não sei qual tipo de cozinha eu faço. Faço uns trens gostosos para vocês comerem.
A filosofia se mistura com geografia: além das lembranças brasileiras, Alê bebe das referências de sua equipe multinacional (do Líbano à Costa Rica).
O mapa-múndi desemboca em psicologia: Alessandra faz questão de colocar em seus cardápios ingredientes "desprezados", como ela define. "Se Deus colocou algo aqui nessa terra, é porque ele vale alguma coisa. É como gente".
Preciso disso para destravar as coisas dentro de mim, para viver. É sobrevivência. Eu morro se eu parar de cozinhar, declara de olhos abertos e emocionados.
A mente se desenrola como arte: este "hymne à l'amour" da chef não está restrito às entrevistas, nem aos conhecidos. Em um dos jantares que promoveu no Brasil, expondo seu cardápio francês completo pela primeira vez na terra-natal, abria a noite com brioche de Poté e um sorriso atravessava mesas, taças, corredores.
Em paz com o Brasil há cerca de quatro anos, Alessandra cogita uma volta mais definitiva para cá no futuro, com cabeça e peito repletos de duas cidadanias que batiza de "lindas".
A vida me tirou muito, mas me deu tanto, tanto, tanto, absurdamente tanto que eu só tenho a agradecer.
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