Lembra do 'vinho da garrafa azul'? Como estão símbolos do passado etílico

O tipo de papo que revela a idade: "Meu pai adorava tomar Château Duvalier. Achava chique, acredita?", diz um. "E a minha tia, que era fã de Espuma de Prata? Se faltasse no Réveillon, ela tinha chilique", comenta outra.

Se você acha que a conversa acima é mensagem cifrada, pergunte aos mais velhos da família se bebiam Baron de Lantier ou Liebfraumilch, o vinho da garrafa azul.

Quem viveu aquela época — anos 1970 até o final do século 20 — pode ter boas ou más recordações de algumas marcas e estilos de vinho. Depende do que gostavam de beber ou do que andaram aprontando na juventude.

Foi uma época em que multinacionais instalaram-se no Brasil para explorar uma incipiente indústria de vinhos no Rio Grande do Sul. Com seu poder de fogo, investiam pesado em propaganda e algumas marcas ficaram grudadas em nossos cérebros, tipo Ploc, Ping Pong, Ki-Suco e Kichute.

Gostos à parte, há coisas que evoluem nesse mundo. Alguns desses produtos inesquecíveis deram origem a vinhos bem elaborados. O mercado de importações também cresceu enormemente e não somos mais obrigados a beber gato por lebre, como veremos a seguir.

Espuma de Prata

Espuma de Prata
Espuma de Prata Imagem: Reprodução

Ontem

Nas festas de Ano Novo dos anos 70, se faltasse dinheiro para o Champagne (o que era bastante comum, como até hoje), resolvia-se a coisa rapidinho e baratinho com uma garrafa de Espuma de Prata, da vinícola gaúcha Peterlongo.

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Lançada em 1971, a bebida docinha, borbulhante e de baixa graduação alcoólica era a campeã de estouros à beira-mar, em oferendas a Iemanjá ou só pelo prazer de ouvir o barulho e ver a espuma jorrando ao bater da meia-noite.

Hoje

A marca ainda existe, continua baratinha (na faixa dos R$ 20 e poucos) e não pode ser considerada um espumante. Espuma de Prata entra na categoria dos filtrados, bebidas às quais podem ser adicionados suco de uva e gás artificial.

Só que a Peterlongo, de Garibaldi (RS) é muito mais do que pode pensar aquele que acha graça da Espuma de Prata. É uma das nossas vinícolas mais antigas, fundada em 1915, e pioneira na elaboração de espumantes no país.

São espumantes de verdade - e cheios de premiações -, como o seco Privilege Extra Brut (R$ 110 na loja da vinícola) e o Presence Moscatel (R$ 53,55), para quem gosta de um certo dulçor. Ou o luxuoso Champagne Peterlongo Elegance Brut (R$ 230).

Peterlongo Moscatel
Peterlongo Moscatel Imagem: Reprodução
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Champagne? Oui, oui. Peterlongo é a única vinícola brasileira que pode usar o termo em seus rótulos. Produtores franceses chiaram, mas nosso Supremo Tribunal Federal considerou correta a justificativa da empresa gaúcha, que fazia espumantes com a mesma técnica e com as mesmas uvas de Champagne antes da região francesa conquistar status de denominação de origem, em 1936.

Château Duvalier

Propaganda do Château Duvalier dos anos 70
Propaganda do Château Duvalier dos anos 70 Imagem: Reprodução

Ontem

Lançada em 1966, a linha de vinhos Château Duvalier - branco, rosé e tinto - inaugurou uma longa fieira de rótulos com nomes franceses no Brasil. Era chique, inspirava charme e requinte, termos que apareciam nas propagandas da marca, nos anos 1970.

Há quem não tenha as melhores lembranças de Duvalier, mas ali começava a história do vinho brasileiro moderno. A marca pertencia a Martini & Rossi, uma das empresas estrangeiras que decidiram explorar a indústria de vinhos no Brasil.

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Martini, Chandon, Heublein e Forestier (que muita gente também não esquece) trouxeram tecnologia de plantio, colheita, vinificação. Importaram videiras vitiviníferas de variedades inéditas em nosso solo, testaram sua cultura em diferentes terrenos do Rio Grande do Sul e fizeram o vinho brasileiro acontecer.

Hoje

A marca Château Duvalier não mais existe. Porém, continua acesa na cabeça de quem viveu a época. Adolfo Lona, enólogo argentino importado pela Martini & Rossi em 1973, acredita que o setor de vinhos no Brasil deveria unir-se e inspirar-se no marketing que as multinacionais fizeram para promover suas marcas.

Baron de Lantier

Baron de Lantier
Baron de Lantier Imagem: Reprodução

Ontem

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Outro "francês" na jogada, o Baron de Lantier, surgiu no começo dos anos 1980 e ficou no mercado até o final da década seguinte. Da mesma Martini & Rossi, pode ser entendido como um Château Duvalier com upgrade.

A intenção da empresa era criar vinhos com longo potencial de guarda, técnica que até então se desconhecia por aqui. O enólogo Adolfo Lona esteve à frente da empreitada, que reuniu tecnologias também inéditas.

Foi feito um levantamento, na propriedade dos fornecedores de uvas, de parcelas de vinhedos próprias para a vinificação com a qualidade esperada. Eram analisados o solo, a sanidade das frutas, a produtividade e tantos outros fatores que determinam a boa estrutura de um vinho.

Além dos cuidados com a colheita e a elaboração, a Martini foi pioneira no uso de madeiras nobres para amadurecer vinhos. Carvalho francês foi a escolha, acertada depois de Lona ter visitado várias regiões européias pesquisando a gramatura das barricas e suas diferentes procedências.

Outra novidade foi que, com Baron de Lantier, inaugurou-se no Brasil a ideia de vinho varietal, reconhecido pelo nome da uva. Antes era tudo catalogado pela cor: branco, rosé, tinto.

Hoje

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Baron de Lantier não existe mais e a Martini deixou de investir na produção de vinhos no país. De acordo com relatos de especialistas, de enófilos e do próprio Adolfo Lona, vinhos antigos da marca sobreviveram bem ao tempo e chegaram íntegros à degustação depois de décadas. A meta de produzir vinhos longevos foi alcançada.

Adolfo Lona continua fazendo excelentes vinhos a bordo de sua marca própria, agora com mais recursos técnicos e conhecimento dos terroirs do sul. Ao lado de outros enólogos pioneiros como o chileno Mario Geisse e o francês Philippe Mevel, ele também ajudou a formatar o que hoje conhecemos como espumante brasileiro, reconhecido internacionalmente.

Baron Assemblage
Baron Assemblage Imagem: Reprodução

Adolfo Lona Nature Tradicional (R$ 154,90 na Confraria dos Bacanas) representa bem o estilo do produtor, que introduziu no Brasil esse tipo de espumante bem seco. Para quem quer matar a saudade do Baron de Lantier, o enólogo o homenageia com o tinto Baron Assemblage (R$ 369,90), corte de Cabernet Sauvignon, Merlot e Tannat. Recebeu 100 pontos na mais recente edição do Guia Descorchados.

Vinhos licorosos de São Roque

Rótulo do licoroso de São Roque
Rótulo do licoroso de São Roque Imagem: Reprodução
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Ontem

Tias de antigamente, quando queriam encerrar uma refeição com sabor e dulçor, tiravam do armário uma garrafa de vinho licoroso produzido em São Roque (SP). Eram baratinhos e doces até dizer chega. Muita gente foi introduzida ao álcool com esses vinhos, ao alcançar (ou não) a idade legal para beber.

Hoje

Ainda há muitos licorosos feitos à moda de Tia Eulália. Continuam e bastante econômicos. Mas as coisas em São Roque não são as mesmas há algum tempo. A região, famosa pelos vinhos tipo garrafão, deu um salto de qualidade rumo à produção de bebidas finas nos últimos anos.

O vinho licoroso (de São Roque e de outras partes) teve a mesma sorte. Nos mais simples, açúcar ou mosto não fermentado das uvas são adicionados para alcançar a doçura desejada. Os bem elaborados de hoje são fortificados.

No vinho fortificado, uma dose de álcool vínico interrompe a fermentação e sobra açúcar ainda não consumido pelas leveduras. O estágio em madeira e o blend com vinhos de várias idades são outros detalhes que fazem diferença. Muita diferença.

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Licoroso Dona Hilarina
Licoroso Dona Hilarina Imagem: Reprodução

Licoroso Edição Especial Gumercindo de Góes (R$ 230 na loja da Vinícola Góes), feito com uvas Lorena, é um belo exemplo da subida de sarrafo dos vinhos doces de São Roque. Licoroso Doce Niagara BellaQuinta (R$ 90,82 na Vinhos de São Roque) e Branco Licoroso Dona Hilarina (R$ 178 na mesma loja) são outros dois rótulos que surpreendem.

Liebfraumilch

Liebfraumilch
Liebfraumilch Imagem: Reprodução

Ontem

Quando o governo de Fernando Collor de Mello liberou as importações no Brasil, no começo dos anos 1990, grandes redes varejistas correram para colocar o que pudessem de produtos estrangeiros na prateleira. De qualquer jeito.

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O branco Liebfraumilch, mais conhecido como "vinho da garrafa azul", foi um sucesso de vendas e até hoje é sinônimo de enjoo e dor de cabeça para quem curtiu festinhas embaladas por ele.

Doce pra dedéu, era identificado como um vinho de Riesling, uva-símbolo da Alemanha e da região francesa da Alsácia. Na verdade, era um corte de várias uvas, com predomínio da Müller-Thurgau, e muito pouco ou nada de Riesling.

Hoje

Liebfraumilch não é uma marca, mas um estilo, ainda produzido na Alemanha. Hoje é difícil achar rótulos importados por aqui. Mas, ora vejam só, a Cooperativa Linha Jacinto, de Farroupilha (RS), produz Liebfraumilch para a Campari do Brasil. Em garrafas verdinhas e por R$ 20 e pouquinhos no mercado.

Liebfraumilch brasileiro
Liebfraumilch brasileiro Imagem: Reprodução

Quanto ao Riesling de verdade, a importação de vinhos felizmente amadureceu e temos ótimas opções. Uma nova geração de consumidores nem sabe o que foi a garrafa azul e identifica a Riesling como a finíssima uva branca que é.

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Um Riesling superior, classificado como grand cru, não é nada barato, mas há rótulos bem bacanas mais em conta. Dois deles são Eugen Müller Charisma Riesling Trocken (R$ 96,81 no Altruísta Vinhos) e Dr. Loosen Riesling Dry (R$ 139 no St. Marché).

Para quem pode chutar o pau da barraca em diferentes níveis, há exemplares siderais como o alsaciano Dopff Riesling Grand Cru Riquewihr Schoenenbourg 2015 (R$ 567,72 na Mistral) e o alemão Wittman Morstein Riesling GG 2022 (R$ 1.278 na Weinkeller).

E a Müller-Thurgau? Rende excelentes vinhos quando plantada em regiões propícias e bem vinificada, acredite. A uva alemã dos vinhos mequetrefes deu-se muito bem na região italiana do Trentino e virou estrela por lá. Laetitia Müller-Thurgau (R$ 249 na DOC Vineria), todo delicadinho, comprova seu sucesso.

Errata:

o conteúdo foi alterado

  • Diferentemente do informado antes, Mario Geisse é chileno, não uruguaio. O texto foi corrigido.

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