Bronze é brasa e Brasil: 'TV é extensão da minha cozinha. Sem personagem'
Fora de seu habitat natural (o Rio de Janeiro), Felipe Bronze jura que seus 15 minutos de atraso não são costume. A fama carioca pode não ser a da pontualidade, mas o calor do menino do Rio é inegável: ele gosta mesmo é de estar de frente para as chamas e na fogueira dos desafios.
São muitos os pratos que giram nas mãos desse chef e apresentador de 46 anos. E surpreendente a calma com que senta para contar como faz isso - mais de uma hora sem olhar o celular. Isso, sim, é atenção.
No Rio, o duas estrelas Michelin Oro. Em São Paulo, o Pipo, localizado no Museu da Imagem e do Som (MIS) e o Taraz, no Rosewood São Paulo (considerado um dos melhores hotéis de luxo do mundo). Na TV, está em Perto do Fogo, Que Seja Doce e The Taste Brasil, na GNT - este último será exibido simultaneamente na Globo este ano - e Top Chef, na Record.
No futuro, planos de levar sua cozinha de Brasil e brasa para mais gente.
Receita não é de família
No passado, uma criança fascinada por texturas.
Não é sacanagem, nem mentira, mas minha mãe diz que uma das primeiras palavras que aprendi foi quiabo. Adorava as sementes, o 'crec', relembra.
Vindo de uma geração em que se encontrava pouca comida "diferente", foi às lágrimas quando, aos 12 anos, comeu em um restaurante japonês pela primeira vez ("um dos dois únicos que tinha no Rio"). "Lembro das cores, da arrumação, da simetria", descreve.
No hambúrguer dos fast-foods, vícios da garotada desde sempre, eram picles e cebola que encantavam o jovem Bronze. O gosto por "comer fora" ficou ainda mais forte nos namoros com meninas mais velhas - melhor programa de casal não há.
"Não tenho uma história pra te contar, um cheiro de uma torta de maçã que a minha avó fazia. Ninguém cozinhava nada na minha família. Era muito mais a festa em torno da mesa. Então, talvez isso tenha me atraído mais para esse universo da hospitalidade do que necessariamente da comida".
De curso em curso, o estudante de Direito e Economia começou matando aulas para ir a São Paulo ver eventos de gastronomia.
Olhei para aquele movimento de chef, cozinha e pensei 'posso trabalhar com isso'.
A faculdade de gastronomia veio quase sem querer. "Nessas aulas de Boa Mesa, a Bel Coelho, que é prima de uma das minhas melhores amigas estava do meu lado. No estande do Culinary Institute of America, ela pegou o guia do curso, preencheu o negócio e tinha mais um na mão, que eu preenchi também e nem lembrei mais".
Seis meses depois, Felipe recebe a carta de aprovação e vai ao pai, que ouve de um dos amigos "Ah, Ricardo, deixa o moleque ir. Na pior das hipóteses vai voltar falando inglês bem".
E foi nos estudos, em Nova York, que aprendeu muito, sim, até o que nem queria. Lá, teve seu pior momento, mas também um grande impulso: um chef grosseiro com um prazer sádico de dar tapa no prato e de cuspir os "especiais" que o novato Bronze tinha tempo de produzir por sua agilidade em "matar" o que era pedido. Um colega medíocre, no entanto, era querido pelo chef. Bom era ser ruim?
"Comecei a me decepcionar com a profissão. Foi um momento de dúvida".
Mas resistiu a três anos de natais solitários na Big Apple e viu a cidade (e o mundo) se transformarem depois do 11 de setembro: o privilegiado no Brasil sentia, pela primeira vez, o gosto amargo do preconceito com toques de xenofobia. Ainda assim, se formou em um esquema quase militar de gastronomia e, ironicamente, se abrasileirou.
Do Rio para um Brasil
Passei a ouvir mais música brasileira e a apreciar a cozinha brasileira e mais uma porrada de coisas que, morando no Brasil, eu simplesmente não ligava. A brasilidade me interessou muito no sentido quase antropológico. Para mim foi como se eu tivesse descoberto um outro planeta, conta.
E explica: "se eu te disser que o que vejo no Pará me representa como brasileiro, eu vou estar mentindo. Sou carioca criado no sudeste muito mais próximo da raiz americanizada de comer hambúrguer e pizza do que tucupi e jambu".
Logo, Felipe é brasileiro do Rio de Janeiro. Das coxinhas de galinha dos botecos, das receitas da forte herança portuguesa do que já foi capital do país 1763 a 1960.
Ao mesmo tempo que inveja os franceses de sua cozinha herdada, tradicional, clara e delimitada ("o copo meio vazio"), vê essa identidade pronta para descobrir sempre como a liberdade criativa ("o copo meio cheio").
Mesmo os franceses já não são tão herméticos, como ele exemplifica ao ter "revelado" a Claude Troisgros - seu amigo e companheiro de TV - que usar chuchu no Brasil foi dar um chute no óbvio do classicismo. "Falei para ele 'você não é tradição, você é vanguardista, você é um louco maravilhoso'", recorda.
Aliás, por mais vanguarda que já tenha se considerado na trajetória, hoje, Bronze revela que já não tem ânsia pelo novo, mas quer aprender o que surgir: das ideias das novas gerações ("sou competitivo, então volto sempre instigado quando crio com eles") à inteligência artificial.
Sempre perto do fogo
Para Bronze, TV não é qualquer trabalho, assim como não são seus três restaurantes.
Sou extremamente envolvido em tudo o que faço, mas aprendi a delegar. Tenho amigos que falam que sou o Mickey da minha Disney, mas até a Disney tem mais de um Mickey, faz a engraçada, mas pertinente comparação.
A experiência de formar equipes em que confia, deu a tranquilidade não só de poder pegar o filho na escola - Antonio, nosso tenista favorito -, como de ter prazer em cozinhar em casa e sonhar as formas dos pratos que cria - sim, o homem ama arquitetura, design e arte e fez até o projeto de sua casa.
A inspiração maior, no entanto, vem do que os fãs já sabem. "Perto do fogo" não é só nome de programa com takes de fazer o coração carnívoro bater mais forte e do livro de receitas que surgiu de lá, mas quase uma filosofia de Bronze.
Objetivamente, ele explica que a brasa entrou em sua vida ainda no Zuka e permaneceu nos seus preparos (nem que na finalização) durante toda a trajetória como chef.
Subjetivamente, fica mais interessante. Apontando para as brasas visíveis do Pipo, onde esta entrevista foi feita, Felipe viaja no tempo:
É a forma mais primária de cozinhar, é o que me encanta. São os extremos da tecnologia. Lembro do meu pai cozinhando pros amigos dele, depois eu cozinhando para os meus amigos. Sempre churrasco.
Em uma estatística puramente pessoal, Bronze crava que 99% dos seus colegas preferem a comida crua. "Veja, eu amo sushi, mas prefiro comida feita na brasa, pelo gosto, pelo cheiro, pelo barulho. É sinestésico. E posso ficar horas olhando uma chama, é também hipnótico", segue.
Não à toa, é de fogo - e Brasil - que se define o Oro, todo seu desde 2015. "Quis que ele refletisse tudo o que eu acredito sobre comida. E o que eu acredito em comida passa pelo fogo."
Estrelas com defeitos
Sou de cozinhar com um sabor intenso. Se pra mim não tem sal demais, não tem sal. Não tem pimenta demais, não tem pimenta. Prefiro pecar pelo excesso. Nossa cozinha é corajosa, declara.
Para o chef, muitos dos premiados três estrelas Michelin vão ao contrário desse desejo, "na onda da ausência de defeitos".
Por isso, seu melhor momento em quase 30 anos de carreira não foi ser estrelado - "tenho muito carinho dos momentos de criação do menu do Oro" - mas, com certeza foi o segundo melhor.
Nunca foi um objetivo e passei dessa fase de ligar muito para os prêmios quando eu comecei a entender a mecânica deles. Não me envaidece mais por que antes de eu quebrar (com o Z Contemporâneo, em 2005), eu ganhei muito prêmio e fui muito bem falado. Mas fechou e os mesmos críticos me botaram muito pra baixo, lembra.
Aprendendo com "o pior do ser humano", que é o ego, Bronze jura que não se deixa mais afetar, nem por elogios, nem por críticas. "Não sou tão bom quanto eles disseram e não sou tão ruim quanto estão dizendo agora, sabe?".
Foi assim que desde o começo do Oro a regra era fazer um restaurante "bom pra cacete" e deixar de querer fazer as coisas para prêmio e botar a felicidade na mão dos outros.
A chegada da segunda estrela, em 2017, se desenrola numa cena quase cômica na lembrança de Bronze. Ao perceber que, no anúncio dos que conquistavam uma estrela, não aparecia o Oro, pensou que tinha perdido a honraria conquistada em 2010.
Aí vi Thomas Troisgros sinalizando para minha assessora na época que viu o guia do palco mostrar duas estrelas para o Oro. E aí anunciaram duas e fiquei realmente muito emocionado. Não é uma base, nem uma meta, mas é um reconhecimento importantíssimo.
E há sonhos das três estrelas? "O que eu posso te dizer com muita tranquilidade, do fundo do meu coração, é que eu não norteio a minha vida por um negócio que não está na minha mão."
Um tímido cinematográfico
Alheio à cozinha de repetição desde que chefiou sua primeira equipe, ainda no Zucca Gastrô, Bronze quer mais criar e ver criar. Para isso, aprendizado todos os dias. Para ele, a grande escola tem sido os reality shows, a TV.
The Taste para mim não é um programa, mas uma síntese da profissão e da minha vida. A carreira hoje é aprender todo o tempo com os backgrounds diferentes dos meus colegas e amigos jurados e das equipes do programa.
No The Taste, dividiu bancada com André Mifano, Claude Troisgros, Helena Rizzo, Manu Buffara e Manu Ferraz. Já no Top Chef, apresentou o programa com os jurados Emmanuel Bassoleil ("meu primeiro livro de gastronomia é dele"), Ailin Aleixo e Janaína Rueda. No Que Seja Doce, com Carole Crema, Michele Crispim, Roberto Strongoli e Lucas Corazza.
Campeão indiscutível com seus discípulos no The Taste - em seis temporadas, levou quatro - conta que o segredo do sucesso não é trazer as pessoas para dentro do seu universo de cozinha, mas "entrar no delas, para melhorar sempre".
Ao contrário de outros chefs que chegaram aos programas de TV, Bronze nega ter criado qualquer personagem. "Às vezes me sinto impostor, porque eu nunca me preparei. Foi um negócio que eu fiz.. fazendo."
Apaixonado por cinema, se sentiu à vontade em todas as frentes de uma produção de vídeo.
"Não sei te explicar, eu acho que eu tenho uma visão fotográfica. Eu cozinho de maneira fotográfica, vejo como se fosse uma câmera passando, sabe? Da estética tá bonita, de sair o fogo do lugar, de ver tostar, de girar. Eu sempre olhei dessa maneira, assim, como se fosse um filme."
Tanto que na sua primeira experiência (um quadro no Fantástico chamado Mago da Cozinha), escreveu em poucas horas 12 episódios, que foram fazendo tanto sucesso que a produção permaneceu três anos no ar.
"Na minha vida pessoal, eu posso até, em alguns momentos, ter alguns traços de timidez, mas com TV nunca tive, muito pelo contrário."
Apesar da fama conquistada na gastronomia e fora dela, graças às telinhas, Felipe não se considera midiático.
Sou muito reservado, mas não me entenda mal: acho que quem trabalha com gastronomia e diz que não gosta de reconhecimento, de fama de alguma maneira, ou está mentindo ou é um em um trilhão.
Ao mesmo tempo que tem prazer em aparecer ("sou aparecido mesmo"), está cada vez mais em busca de paz e preservação da vida pessoal, inclusive nas redes sociais.
"Minha experiência dos últimos anos foi muito ruim nisso. Muita mentira, muito olho grande", reconhece.
Certezas e maluquice
Apesar de assumir que trabalha "como uma mula", Bronze quer... mais. E não se trata de um novo restaurante ou programa de TV.
"O que eu tô trabalhando hoje, que é a minha grande obsessão, é uma plataforma que junte todas as coisas que eu faço: televisão, restaurantes, eventos, palestras, cursos", explica. Em resumo para não entregar spoilers: um ecossistema de gastronomia.
Um dia, há 5 anos atrás, eu comecei a ficar com um comichão muito grande de como eu trabalho, como eu faço tanta coisa. Sou super agradecido e lido muito bem com o sucesso que eu faço. Mas tô chegando perto dos 50 anos e comecei a pensar em legado.
A plataforma está para nascer e isso é certo. Outra certeza é que no fim deste mês de setembro, Bronze começa a concretizar o sonho de viajar pelo país com suas palestras e aulas.
Em 28 de setembro, na Serra Fluminense, no "No Fogo Com Bronze", seu evento proprietário, o chef receberá os comensais para uma experiencia imersiva. Esta primeira celebração ao ar livre, com música, conversas e, claro, comida na brasa será exclusiva para convidados, mas o projeto pretende rodar o Brasil em 2025.
Criativo que é, porém, Bronze não se deixa limitar somente aos sonhos mais concretos e confessa o que chama de "uma maluquice".
"Tenho vontade de fazer uma peça. Há muitos anos, fui em uma produção imersiva (a famosa Sleep No More, em Nova York, que encerra em outubro após 13 anos de sucesso) e eu fiquei com isso na cabeça. Seria muito legal fazer uma peça de gastronomia imersiva com essa", conta. E planeja: "Isso eu vou fazer daqui uns 10 anos."
Se um dia pensou em se encaixar aqui e ali, hoje, Felipe quer mais é cozinhar o que gosta e inspirar mais gente. "Descansar não adianta. Quando a gente se levanta quanta coisa aconteceu", como diria Erasmo Carlos que toca na playlist de um de seus restaurantes.