Com passado misterioso, 'Stonehenge' escocês tem até observatório lunar
Colaboração para Nossa
15/09/2024 19h00
Quando se pensa em tesouro arqueológico do Reino Unido, Stonehenge costuma ser a mais óbvia resposta. Mas antes que as enormes rochas se instalassem no solo da Inglaterra, uma série de círculos rochosos semelhantes, cemitérios e paisagens que exigem reverência do visitante já existia em Kilmartin Glen, na região de Argyll, na Escócia.
Enquanto pesquisadores da Universidade de Bournemouth tenham estimado em 2008 com datação por Carbono 14 que o círculo de Stonehenge tenha sido erguido por volta de 2.300 a.C., arqueólogos colocam a provável data das construções escocesas em 2.700 a.C. — portanto antes das civilizações gregas e romanas da Antiguidade e anterior até mesmo às pirâmides do Egito.
As paisagens de Kilmartin Glen foram, portanto, admiradas pelos reis do antigo reino gaélico de Dál Riata, durante os séculos 6 e 7, mas é incerto qual era o propósito dos vales e dos campos verdes, com ovelhas e outros animais passando de um lado a outro por entre rochas, sepulturas e monumentos da do Neolítico e da Idade do Bronze, tanto para seus criadores quanto para as gerações e culturas que nasceram depois na Escócia.
Autoridades de turismo da Escócia reconhecem mais de 350 monumentos em um raio de cerca de 10 km do centro do vilarejo de Kilmartin Glen; destes, pelo menos 150 deles são pré-históricos e disputam espaço com construções dos gaélicos, como a fortaleza dos escoceses em Dunadd, um centro do reino de Dál Riata.
Entre as artes catalogadas em Kilmartin estão cerca de 800 relíquias, segundo a rede britânica BBC. Alguns dos monumentos ainda são decorados com petróglifos — esculturas rupestres nas rochas em desenhos circulares cujo significado segue um mistério. Mas, assim como Stonehenge, a principal suspeita é que a área tenha sido um local de funerais e rituais religiosos.
Há pelo menos cinco marcos de enterros pré-históricos em Kilmartin Glen, de acordo com a Historic Environment Scotland, organização que protege o patrimônio histórico do país. Eles formam uma linha de dois quilômetros pelo vale. Em escavações feitas durante os anos 1800 em um deles, o Dunchraigaig, foram encontradas três sepulturas com ossos cremados e corpos inteiros de cerca de 15 pessoas, além de machados e facas de pedra e um amolador.
O achado foi considerado raro, já que a maior parte das sepulturas da Idade do Bronze servem apenas para uma pessoa, enquanto no Neolítico era mais comum ter tumbas de múltiplos corpos. À BBC, o arqueólogo do Kilmartin Museum, Dr. Aaron Watson afirmou que acredita haver muito mais a se descobrir do modo de vida dos escoceses pré-históricos dentro dos vales de Argyll.
"O que você está vendo tem mais de quatro mil anos de História e, apesar de ser difícil de imaginar agora, foi uma vez um lugar de enterros e rituais. Mas ao contrário de outros locais históricos desta escala, todo o lugar é aberto e [há mais] esperando para ser descoberto. As [sobreposições de] camadas da paisagem ao longo do tempo já são normais para os arqueólogos, mas é difícil de entender a olho nu", opina.
Watson está certo. Além das cinco áreas de cemitério — Glebe Cairn, Nether Largie North Cairn, Nether Largie Mid Cairn, Nether Largie South Cairn e Ri Cruin Cairn — onde já foram encontrados colares, potes, cerâmicas e flechas além dos corpos, conhece-se hoje outras três estruturas com os enormes círculos de rochas verticais. São elas Nether Largie, Temple Wood e Ballymeanoch.
Enquanto Temple Wood possui rochas mais baixas — originalmente, acredita-se que o círculo contasse com 22 pedras verticais de até 1,60 metro — e também guarda em seu subsolo sepulturas, Nether Largie e Ballymeanoch podem ter tido outro fim. Diversos especialistas, como o engenheiro Alexander Thom em documentário para a BBC e o pesquisador Jon Patrick, da Universidade de Melbourne, concordam que o posicionamento das rochas nos dois círculos são consistentes com o de um observatório lunar para prever eclipses.
Historiadores e arqueólgoos não descartam a possibilidade de que a proximidade destes dois complexos — com enormes monólitos entre três e quatro metros de altura — que ligam vida e morte possam ter levado à prática de rituais no local. Enquanto os estudos sobre o modo de vida dos escoceses de Kilmartin Glen, o museu da região já acumula 22 mil artefatos, que incluem também corpos dos moradores do vilarejo enterrados há quatro mil anos em suas tumbas sob as pedras, símbolos de reis pré-históricos e ferramentas em quartzo.
"Esta é a arqueologia da experiência sensorial. Você pode ver como a luz muda, ouvir os ecos. Não é só uma porção de pedras. Provavelmente, este é um antigo espaço transdimensional para transformar os vivos em algo além. E nossa tarefa é trazer estas histórias de volta à vida", comentou o arqueólogo Aaron Watson à BBC. Especialmente as marcas esculpidas nas rochas, para ele, têm significado especial.
"Nossos ancestrais que esculpiram estes símbolos nas pedras tinham um entendimento muito diferente do mundo do que nós temos. Acho que eles selecionaram as rochas que pudessem aproveitar a luz do inverno melhor, mas não se sabe, e esta discussão é frequentemente tão interessante quanto pensar em uma única interpretação".
Apesar de os criadores de Kilmartin Glen terem saído de cena há milhares de anos, o mundo que eles inspiraram segue vivo — e misterioso em 2024.