Mesmo sob Talibã, Afeganistão tem alta no turismo. Mas será que é seguro?

Apesar da reascensão do Talibã em 2021, o Afeganistão parece estar na moda: em apenas dois anos, o número de turistas cresceu dez vezes no país. No ano da retomada de poder do grupo fundamentalista, apenas 691 turistas visitaram o seu território. Já em 2023, este número já havia saltado para sete mil pessoas, segundo dados obtidos pela agência Associated Press do chefe do Diretório de Turismo em Cabul, Mohammad Saeed.

É importante notar que não se conhece o impacto da pandemia de covid-19 — e uma possível e orgânica recuperação do tráfego de viajantes após o isolamento sanitário, como aconteceu em outros países — sobre estes números. Mas por que um país impactado por décadas de conflitos armados parece crescer no interesse dos visitantes?

"Há um fluxo de turistas vindo ao país desde a queda da república. Temos tantas coisas a oferecer — cultura, pessoas, paisagens. Vê-se muitos turistas especialmente em Cabul", relatou Khyber Khan, fundador da empresa afegã de roteiros turísticos Unchartered Afghanistan, à CNN americana.

A companhia de Khan, fundada em 2023, é apenas uma entre diversas que têm aberto as portas no Afeganistão nos últimos três anos. "A presença de turistas aumentou porque esta não é mais uma zona ativa de guerra." Um veterano, James Wilcox, que oferece passeios guiados no Afeganistão com a sua agência de turismo Untamed Borders desde 2007, concorda.

Parque Nacional Band-e-Amir, no Afeganistão, é Patrimônio da Humanidade
Parque Nacional Band-e-Amir, no Afeganistão, é Patrimônio da Humanidade Imagem: Xinhua/Saifurahman Safi

À emissora americana, ele revelou que as reservas em 2023 alcançaram o maior número desde que ele passou a oferecer o serviço. "Desde que o Talibã tomou o país, a situação de segurança mudou. Um dos maiores riscos não existe mais — antes o risco era [o próprio] Talibã", argumenta. Isto porque muitos visitantes temiam um confronto letal entre o grupo e as Forças Armadas dos EUA, que ofereciam suporte militar ao governo (hoje exilado) da república até 2021.

"O maior risco diminuiu, mas há muitas coisas históricas para se ver. O país é culturalmente muito rico", acredita.

O perigo passou mesmo?

Para visitar o Afeganistão, é preciso obter um visto em embaixada ou em um dos consulados afegãos — o que geralmente requer uma carta de convite ao viajante que é emitida pelas agências de turismo registradas junto ao Ministério da Cultura. O Emirado Islâmico do Afeganistão — o nome oficial do governo talibã — não possui missão diplomática no Brasil, mas são diversas na Ásia.

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Este potencial entrave burocrático é reflexo da delicada dinâmica geopolítica que o país mantém com o Ocidente. Por um lado, o governo do Talibã diz apoiar o turismo — um porta-voz do Ministério da Cultura disse à CNN que "o crescimento do turismo tem um efeito positivo na economia do país" e que, atualmente, o Afeganistão recebe muitos visitantes dos EUA, da União Europeia, da China, da Índia, dos Emirados Árabes Unidos e do Irã.

Lago Band-e Amir, na província Bamiyan, no Afeganistão
Lago Band-e Amir, na província Bamiyan, no Afeganistão Imagem: Massoud Hossani/AFP

Por outro, a ONU (Organização das Nações Unidas) classifica o país um dos mais repressores em todo o mundo em relação ao direito das mulheres. O Departamento de Estado dos EUA, que classifica os riscos a cidadãos americanos em destinos globais regularmente, classifica o país sob o nível 4: "Não viaje" devido ao "risco de terrorismo, prisão ilegal, desordem civil, sequestro, crime".

Para efeito de comparação, o Brasil atualmente ocupa o nível 2 da lista das autoridades americanas, sob a recomendação "exerça maior cuidado" ao viajar, por causa de altos índices de crime.

Em maio de 2024, três turistas espanhois estavam entre os quatro mortos quando um atirador atingiu um grupo em Bamiyan, uma região conhecida como Patrimônio da Humanidade pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Até hoje as razões do ataque não são conhecidas.

Imagem de Cabul, capital do Afeganistão
Imagem de Cabul, capital do Afeganistão Imagem: Getty Images/iStockphoto
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Apesar disso, há adeptos do "turismo extremo", como os próprios se descrevem, que consideram o país "relativamente seguro". "Prefiro obter minhas informações de amigos que realmnte estiveram nestes lugares recentemente e me dão uma atualização de como é visitar. Na minha experiência, me senti seguro o tempo todo", contou o americano Ben Herskowitz, de 22 anos, à CNN americana.

Ele descreve uma atmosfera receptiva — com lojistas contentes em ver os visitantes e oferecendo chá, comida e hospedagem na região central de Cabul. Para mulheres, a situação pode ser mais delicada. Emma Witters, uma turista britânica de 56 anos, contou à CNN que se sentiu segura nas quatro vezes que visitou o país após o retorno do Talibã ao poder.

Mesmo assim, ela passou saias justas, como quando um motorista se recusou a vender um bilhete de ônibus para ela viajar de Cabul a Candaar porque ela estava sozinha, sem um homem a acompanhando. A americana Jacqueline Gonzalez visitou quatro cidades (Cabul, Herat, Candar e Bamiyan) em junho e disse ter tido "interações mínimas" com homens além dos guias. Ela também prestou bastante atenção na maneira com que se vestiria, nos seus modos e comportamento.

Campos de papoula em Jalalabad, no leste do Afeganistão
Campos de papoula em Jalalabad, no leste do Afeganistão Imagem: Parwiz/Reuters

"Acho que, porque eu era estrangeira, fui tratada com respeito e oferecida privilégios especiais que espero que as mulheres locais possam ter um dia em breve", lamentou.

Brasileiros contam como é visitar o país

A reportagem de Nossa também conversou com brasileiros que já se aventuraram pelo Afeganistão. O gerente de negócios Kalebe Ávila, que já morou na Rússia e na China, visitou o país duas vezes em 2019 — antes do retorno do Talibã ao poder, portanto.

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Eu sou apaixonado por países que eram ex-repúblicas soviéticas. Como no Afeganistão a gente só vê violência, resolvi ver de perto o que há no país", diz.

Kalebe em frente à mesquita xiita Ziarat-e Sakhi, em Cabul, Afeganistão
Kalebe em frente à mesquita xiita Ziarat-e Sakhi, em Cabul, Afeganistão Imagem: Arquivo pessoal

Na época, ele checou quais cidades e regiões estariam seguras para fazer a visita, já que o local ainda era considerado uma zona de guerra. Depois de algumas questões burocráticas, ele passou por uma entrevista na embaixada do Afeganistão e o diplomata perguntou "por que você quer ir para lá?". Ele alegou que iria fazer trabalho voluntário e depois conseguiu a permissão para entrar no local.

Saga para chegar ao país

Como não há voos direto para o país, o gerente de negócios precisou ir até Dubai. Chegando lá, é necessário pegar um voo para a capital Cabul ou ir para países próximos. Na primeira visita, ele atravessou a pé a fronteira do Uzbequistão com o Afeganistão e visitou o norte do país que, na época, era considerada a mais segura.

Kalebe a caminho da província de Samangan, em uma parada de carro
Kalebe a caminho da província de Samangan, em uma parada de carro Imagem: Arquivo pessoal
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"Mas isso muda muito constantemente. De uns tempos para cá, a mesma região foi tomada pelo Talibã ", relembra.

Chegando lá, ele contratou um guia local para mostrar as principais atrações da cidade e também para preservar sua segurança. Mesmo sendo brasileiro, Kalebe não teve dificuldade de andar pelas ruas, já que era parecido com os próprios afegãos. "Eu usei a roupa típica slalwar kameez e parecia que era de lá mesmo", conta.

Ele ainda se hospedou em couchsurfing — em que um anfitrião recebe o turista em casa e não cobra nada pela estadia. "A comunidade afegã é muito ativa nessa rede. A questão é confiar ou não", diz Kalebe.

Polícia corrupta

Kalebe em uma de suas viagens ao Afeganistão
Kalebe em uma de suas viagens ao Afeganistão Imagem: Arquivo pessoal

Por causa da sua paixão por bandeiras, Kalebe passou apuros com a polícia do país. Em busca do souvenir perfeito, ele se perdeu e chegou até o centro da cidade. Em algumas regiões, os locais são cercados de muros antibombas, que protegem embaixadas, hotéis e prédios da polícia.

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O brasileiro conta que os muros tinham pinturas muito bonitas e ele resolveu tirar algumas fotos do local. Porém, alguns segundos depois, foi abordado e advertido pela polícia e levado para um compartimento. "Descobri que ali era a sede da polícia nacional. Escondi muito meu passaporte, caso eles pedissem algum tipo de propina. Infelizmente países dessa região são extremamente corruptos".

Mesmo tentando explicar que era turista e que não entendia o que os policiais estavam falando, Kalebe teve que ligar para o homem que o hospedava para pedir ajuda. Ao chegar no local, ele explicou o que estava acontecendo e deu o passaporte. "Ele traduziu o que os policiais falaram e me disse que se eu não conhecesse ninguém em Cabul iriam me prender por duas semanas. Fiquei surpreso e depois os policiais pediram para eu apagar a foto", conta.

Mas, para a surpresa do brasileiro, os agentes ainda o convidaram para tomar um chá na saída da sala. "Aprendi. Nunca mais foto do muro", relembra rindo.

Kalebe em frente à mesquita de Shrine of Hazrat Ali, em Mazar-i-Sharif, Afeganistão
Kalebe em frente à mesquita de Shrine of Hazrat Ali, em Mazar-i-Sharif, Afeganistão Imagem: Arquivo pessoal

"Fingi que era surdo-mudo para não apanhar"

Na segunda vez em que esteve no país, Kalebe resolveu explorar algumas cidades sozinho e pegar o transporte bem popular entre os afegãos: uma van. Assim como em alguns lugares do Brasil, o veículo é usado para transportar passageiros. O que ele não sabia é que homens não podem sentar ao lado de mulheres dentro deste tipo de transporte.

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Entrei, vi um banco vazio e era do lado de uma mulher. Na hora que sentei, começaram a gritar tanto que achei que ia apanhar ali mesmo", relembra.

Para não cair em uma situação ainda pior, o gerente de negócios inventou que era surdo-mudo e começou a colocar a mão no peito — um sinal considerado pelos afegãos, como desculpa e respeito. Ele se sentou em outro banco e não foi agredido pelas pessoas dentro da van.

Em uma outra situação, Kalebe e seu anfitrião estavam indo de Cabul para a província de Bamyan, e ele também precisou fingir que não falava e não escutava. "O homem que me hospedou disse que estava com medo de verem que sou turista e fazerem algo comigo. No Afeganistão, é muito comum pegarem carros compartilhados e eu não pude falar com ninguém. Fiquei quieto o caminho todo", conta.

Kalebe relembra ainda que depois o homem traduziu e disse que muitas pessoas perguntaram por que ele não falava e ele disse "meu primo é surdo e não entende". O afegão ainda o aconselhou deixar suas coisas dentro de casa e levar somente o necessário dentro de uma sacola de plástico.

Eu questionei e ele disse que afegão viaja assim e era uma forma de despistar pessoas que pudessem me fazer mal. Ele pediu até para eu retirar a pasta de dente", conta.

No parque nacional de Band-e Amir, Afeganistão
No parque nacional de Band-e Amir, Afeganistão Imagem: Arquivo pessoal
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Vale a visita?

Kalebe recomenda que os turistas visitem primeiro outros lugares da Ásia Central e depois explorem o Afeganistão. Ele aconselha fazer uma pesquisa prévia sobre a cultura e costumes. Segundo o brasileiro, sem dúvidas ele indicaria viajar para o país, mas com muitos cuidados, evitando locais considerados perigosos no momento de sua viagem.

A logística é complicada. Eu aconselharia fazer com guias que conhecem muito bem a região e, na primeira vez, nunca ir sozinho. Eu recebi indicações de alguns em grupos de viajantes e foi ótimo", indica.

Embora o Afeganistão não seja o país mais procurado para viajar no mundo, Kalebe conta que o local tem um potencial turístico e que o povo afegão é bem hospitaleiro. "Não posso romantizar pelos fatos. Mas o país é lindo e tem muita natureza. Eu voltaria com certeza."

Já outro brasileiro, Mike Weiss, que já pisou em mais de 150 países, esteve no Afeganistão em março de 2021. Ao circular pelo país asiático, Mike cruzou áreas onde já havia significativa presença do Talibã e, para evitar ser reconhecido pelo grupo, também se "disfarçou" de afegão.

Durante quase todo o tempo, usei as mesmas roupas que os nativos utilizam. Também deixei a barba crescer e, quando estava no meio de muita gente na rua, evitava falar alto, para que as pessoas não percebessem que eu era alguém de fora", conta ele.

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O brasileiro afirma que a maioria dos afegãos é extremamente pacífica, receptiva e amigável com estrangeiros. Mas esta atitude não existe entre membros do Talibã.

Mike em frente a mesquita em Cabul
Mike em frente a mesquita em Cabul Imagem: Arquivo pessoal

"Na interpretação do islamismo feita pelo grupo, nós, ocidentais, somos infiéis. E isso pode nos transformar em alvo deles. Por isso, me preocupei em parecer como um local a todo momento", acredita. Mike tem amigos afegãos, que conheceu em viagens anteriores pelo mundo. E estas pessoas o ajudaram a viajar com mais segurança pelo país.

Ele ficou um total de 10 dias no Afeganistão e, durante este tempo, visitou alguns dos principais atrativos do território, como o Parque Nacional Band-e-Amir, o Vale do Panjshir e a área dos antigos Budas de Bamiyan, gigantescas estátuas budistas destruídas pelo Talibã em 2001.

Em grande parte de suas locomoções, utilizou carros de seus amigos, o que o deixava incógnito nas estradas. Mas isso não impediu que ele se visse frente a frente com o grupo extremista islâmico.

"Medo de ser extorquido. Ou pior"

Área dos Budas em Bamyan
Área dos Budas em Bamyan Imagem: Arquivo pessoal
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Um dia, ao sair da cidade de Cabul e viajar rumo a Bamiyan, Mike conta que chegou a um trecho de estrada que já estava controlado pelo Talibã. "Eu estava em um carro guiado pelo meu amigo afegão e junto com um casal de brasileiros que viajou comigo. E já sabíamos que eram membros do Talibã os responsáveis pelo controle daquela rota", relata o brasileiro.

Eles poderiam pedir os documentos das pessoas e fiscalizar todos os veículos. O medo de sermos reconhecidos como estrangeiros era real. Se isso acontecesse, eles poderiam querer nos extorquir ou nos sequestrar".

Mike conta que, na hora, seu amigo afegão falou para que ele entregasse seu celular para a brasileira que estava no carro. "Ele disse que os talibãs não revistam mulheres. E isso impediria que eles pegassem nossas fotos, mas não impediria que notassem que éramos estrangeiros. Tivemos que apostar na sorte para poder passar sem sermos revistados".

Com todos discretos e vestidos como afegãos dentro do carro, os membros do Talibã não pararam seu veículo — e eles puderam seguir viagem com mais tranquilidade. E Mike se encantou com muitos lugares que visitou nestes trajetos.

"O Afeganistão é um país de lindas belezas naturais. E o local mais belo em que estive lá foi o Parque Nacional Band-e-Amir. É um cenário natural com lagos, vaquinhas pastando na grama, estradas cercadas por cerejeiras e montanhas cobertas de neve".

Mike no Parque Nacional Band-e-Amir
Mike no Parque Nacional Band-e-Amir Imagem: Arquivo pessoal
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Já no Vale do Panjshir, o brasileiro tirou fotos em cima da carcaça de um tanque soviético destruído nos anos 1980, durante a malfadada ocupação da União Soviética no Afeganistão.

E, em Bamiyan, ele pôde ver de perto, em paredões rochosos, os enormes vácuos deixados pela destruição das enormes estátuas budistas, que tinham sido construídas, provavelmente, entre os séculos 6 e 7 d.C. (e com uma delas chegando a mais de 50 metros de altura).

Com poucas pessoas ao seu redor nestes lugares, Mike conseguiu se portar mais como turista, tirando fotos e falando alto sem medo de ser reconhecido por algum possível membro do Talibã.

*Com informações de matérias publicadas em 15/04/2021 e 18/08/2021.

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