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Tem poder afrodisíaco: por que o tráfico lucra com barbatana de tubarão?

Sopa de barbatana de tubarão com vegetais e macarrão Imagem: DigiPub/Getty Images

Colaboração para Nossa

27/09/2024 05h30

A Receita Federal e o Ibama apreenderam pela terceira vez este mês centenas de quilos de barbatanas de tubarão que seriam vendidas ilegalmente para países asiáticos. Segundo uma reportagem do Diário do Nordeste, uma carga de quase 100 kg vinda de São Luís, no Maranhão, foi interceptada em um terminal do Aeroporto Internacional de Fortaleza nesta segunda-feira (23).

Escondido entre outras cargas e bagagens de passageiros, o carregamento tinha como destino o Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, de onde seguiria viagem. Os potenciais destinos, informou a Receita, são Hong Kong, China, Malásia e Vietnã. Chineses e brasileiros estariam envolvidas na operação de tráfico das barbatanas — que são utilizadas para fazer uma sopa afrodisíaca apreciada desde os tempos dos imperadores em Pequim.

Apreensão de carga de barbatanas de tubarões no Ceará em 17 de setembro Imagem: Divulgação/Receita Federal

No dia 10, o Ibama apreendeu 500 kg de barbatanas sem comprovação de origem no Espírito Santo, mas que teriam vindo congeladas de Santa Catarina em um trajeto de avião. O material foi encontrado desidratado de forma inadequada, "em ambiente insalubre" e com contato direto com galinhas a patos. O Ibama também confirmou, na ocasião, que o destino das barbatanas seria a distribuição para restaurantes e lojas de produtos asiáticos no Brasil e também na Ásia.

Entre as espécies encontradas estava o tubarão-galha-branca-oceânico, cujo comércio e pesca são proibidos por ser ameaçado de extinção, além do tubarão azul. No dia 17, outros 230 kg de barbatanas de tubarão azul vindos da capital capixaba foram apreendidos pela Receita Federal em uma transportadora de cargas aéreas na cidade cearense de Cruz. Seu destino era o Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, de onde o lote partiria para a China.

Mas por que a barbatana é tão cobiçada?

Iguaria tradicional para a culinária chinesa, a barbatana de tubarão era tida como um dos oito tesouros gastronômicos marinhos durante ainda a dinastia Ming (1368-1644), revelam textos da época documentados pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), justamente porque a captura de um animal tão grande rende apenas uma pequena porção da delícia. Hoje, ela é um símbolo de status.

"A sopa de barbatana de tubarão é conhecida em cardápios do mundo como "sopa ostentação" pelo alto valor, chegando a custar US$ 500 [R$ 2.732] o prato", informa a Receita Federal, que estima que o quilo da barbatana no mercado internacional atinja os US$ 3 mil. Ou seja, apenas os 830 kg interceptados nas últimas duas semanas poderia custar em torno de R$ 13,6 milhões.

Barbatanas encontradas pelo Ibama no Espírito Santo em 10 de setembro Imagem: Divulgação/Ibama

Mas não é apenas o fato de que a barbatana é cara de se obter que a torna tão especial — especialmente para os chineses, que a consomem há séculos. De acordo com o jornal sul-asiático The Straits Times, as populações da região acreditam que a barbatana de tubarão teria propriedades afrodisíacas e medicinais.

E esta crença, além de o hábito de saborear a sua sopa tida como um prato de sabor delicado, é difícil de contestar de tão enraizada na cultura local — não importa quantos estudos não consigam atestar sua capacidade de prevenir doenças como o câncer ou alertem para os riscos de envenenamento por mercúrio presente nos tubarões.

Ativistas da fundação WildAid encenaram o protesto contra o consumo de barbatanas, em 2016. Elas são frequentemente servidas como uma sopa em banquetes luxuosos chineses Imagem: Issac Lawrence/AFP

Por falar em sabor, a barbatana em si é praticamente insípida, segundo uma reportagem de 2010 do jornal OC Weekly, da costa da Califórnia. No entanto, a textura gelatinosa é o que chama mais atenção e é tida como agradável, além de seu caldo preparado com outros ingredientes clássicos da cozinha chinesa, como frango, cogumelos shiitake e presunto Jinhua seco e curado.

Não à toa, ela é servida em banquetes, casamentos e eventos importantes como o Ano Novo Chinês. Para entender por que, contudo, é preciso voltar no tempo na concepção do que consiste um prato nobre para os chineses.

Cozinha do palácio sempre foi cheia de sopas e itens afrodisíacos

Em 2018, uma reportagem especial do jornal South China Morning Post que teria tido acesso aos arquivos do Museu da Cidade Proibida revelou que, apesar da fama, os imperadores chineses não viviam de banquetes no dia a dia. "A dieta [do imperador] era balanceada, mas surpreendentemente simples. Tanto as dinastias Ming quanto Qing comiam de acordo com o mesmo princípio: a dieta deve promover a saúde", diz o texto.

As receitas imperiais eram versões sofisticadas de refeições tradicionalmente apreciadas pelos plebeus. Mas o cardápio era ajustado conforme a estação do ano, com pratos mais leves servidos durante o verão e receitas de porções mais fartas e nutritivas no inverno — tudo para garantir a vitalidade do imperador.

Gravura de como teria sido o banquete oferecido a um diplomata holandês no Palacio Imperial em 28 de julho de 1667 Imagem: Sepia Times/Sepia Times/Universal Images Gro

Os chineses acreditavam que refeições leves aumentavam os fluidos corporais, enquanto as mais pesadas aumentavam a energia e disposição da realeza. Por isso, sabe-se que os imperadores comiam bastante carne de porco, carneiro, frango e vegetais. A carne bovina era proibida no palácio porque era considerado pecado comer animais que fossem usados também para carga.

Outros sucessos imperiais eram sopas, como as de barbatana de tubarão, além das de ninhos de andorinha, patos, rabo de veado, pães, bolos, pepinos e pastéis ou doces folhados. O historiador de gastronomia Zhao Rongguang, de 76 anos, um dos pioneiros a estudar os Primeiros Arquivos Históricos da China, revelou à CNN americana algumas curiosidades e preferências excêntricas de imperadores que descobriu em suas quatro décadas de pesquisa.

Segundo ele, a Cozinha Imperial evoluiu ao longo dos séculos para acomodar os gostos e também as convicções pessoais dos monarcas. O costume começou com Kangxi, imperador da dinastia Qing que passou a controlar a China em 1644. Como os Qing tinham laços com os manchus, pratos tradicionais da Manchúria foram incorporados ao palácio.

A sopa de ninho de andorinha, outra iguaria amada desde os imperadores na China Imagem: LightProduction.vn/Getty Images

"Ainda havia bastante assados e comidas incomuns na mesa de Kangxi, como testículos de tigre", contou Zhao à CNN americana. "Os antigos acreditavam que [os testículos] tinham como efeito um aumento da libido. Acredito que Kangxi comeu bastante deles, já que há registro oficial de que ele caçou mais de 60 tigres em sua vida". Outro afrodisíaco popular na época de Kangxi era a crista de galo.

No entanto, quanto mais a sociedade se estabilizava durante o reinado de Kangxi, menos os seus pratos ancestrais apareciam nos menus.

Renascença dos tubarões

Apesar de ter vivido séculos de glória, a sopa de barbatana de tubarão saiu de moda após a ascensão de Mao Tsé-Tung e do Partido Comunista Chinês em 1949 justamente porque era associada às elites e foi considerada "politicamente tóxica" durante a Revolução Cultural. "Apesar de nunca ter sido banida, era desaprovada", comentou a conselheira britânica da Sociedade Protetora dos Animais Internacional, Susie Watts, à revista Slate.

No entanto, tudo isso mudou no fim dos anos 80, com as reformas de mercado de Deng Xiaoping. Com a ascensão de novas elites e classe média na China, nasceu também um desejo de ostentar riqueza. Assim, exibir obras de arte e comer a sopa de barbatana de tubarão amada pelos imperadores se tornou desejável. "Ela foi politicamente reabilitada. Consumir a sopa dava às pessoas a sensação de ser parte de uma nova aristocracia na China".

Mao Tsé-Tung (1893-1976) tornou a sopa de barbatana cafona Imagem: Reprodução/La Casa de La Historia

Com o aumento da busca por ela chegou também, em dois extremos, o aumento dos protestos em cima do consumo por parte de entidades protetoras de animais e, também, o crescimento do tráfico de tubarões e suas barbatanas. Isto porque o método de extração da barbatana é brutal e ameaça às espécies: pescadores capturam os tubarões, cortam suas duas maiores barbatanas e jogam o restante do animal mutilado e sangrando na água.

O tubarão não costuma morrer imediatamente, ele acaba boiando sem conseguir se mover e acaba comido por um predador, morre de fome ou do choque contra algum obstáculo. Um estudo publicado pela revista Science em 2006 apontou que as populações de tubarão caíram pela metade em comparação com os anos 80, em casos de algumas espécies, a queda já era de quase 90% — e a pesca predatória seria a principal responsável.

Tubarão azul é uma das espécies mais caçadas para a sopa Imagem: Alessandro De Maddalena/Getty Images/iStockphoto

Não à toa, a Disneyland de Hong Kong sofreu pressões de ativistas em 2005 para retirar a sopa de seu cardápio, que realmente acabou eliminado. Uma reportagem de 2006 do jornal britânico The Independent revelou que a pesca desenfreada do tubarão justamente para o preparo da iguaria chinesa que só crescia em popularidade estava afetando inclusive os tubarões de Galápagos, na costa da América do Sul.

Hoje, as populações do litoral brasileiro também estão na mira dos traficantes, com um estudo genético da União Internacional para a Conservação da Natureza revelando em 2009 que espécimes da costa dos EUA, de Belize e do Panamá também alimentam os mercados de Hong Kong. E os 15 minutos de fama da sopa ostentação parecem ainda não ter chegado ao fim.

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