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O legal da Glória: como o bairro carioca virou um dos mais 'cool' no mundo

Uma das rodas de samba da Glória, aos domingos Imagem: Instagram/@timedecriolo

Luiza Souto

Colaboração para Nossa, do Rio de Janeiro

04/10/2024 05h30

Da aldeia tupinambá que deu origem ao termo "carioca" ao romance mais famoso de Machado de Assis, Dom Casmurro, o bairro da Glória preserva a alma do Rio em cada esquina.

Primeiro reduto da zona sul, já foi palco da nobreza imperial e hoje acolhe a maior e mais famosa feira da cidade onde, aos domingos, o aroma das frutas frescas se mistura ao som de pandeiros e tamborins todo fim de tarde, quando sempre tem uma roda de samba, celebrando um bairro que pulsa história, cultura e o jeito carioca de ser.

Recentemente, o bairro da Glória foi reconhecido internacionalmente, alcançando a nona posição no prestigiado ranking dos bairros mais legais do mundo, elaborado pelo guia britânico Time Out. O bairro Notre-Dame-du-Mont, em Marselha, França, ficou no topo da lista.

Rua da Glória em gravura de Auguste Francois Biard, de 1865 Imagem: De Agostini via Getty Images

Foi uma expedição francesa que chegou no local, no século 16, e encontrou ali uma aldeia tupinambá na base de onde é hoje o Outeiro da Glória, chamada Kariók ("casa de carijó") que deu origem ao termo "carioca".

Já o nome do primeiro bairro da zona Sul do Rio de Janeiro veio da igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, uma capela construída no século 18. Quem quiser visitar a igreja onde Dom Pedro 2° foi batizado, pode fazer à pé, através do plano inclinado ou pelo parque Lúcio Costa.

Igreja da Glória Imagem: Fotografia Cesar Duarte/www.ogloria.art.br

Paris tropical

Projetada com inspiração francesa, a Praça Paris, inaugurada em 1929, é um dos cartões-postais do bairro, com lago, chafariz, jardins geométricos e árvores que lembram o jardim do Palácio de Versailles.

Praça Paris Imagem: Fotografia Cesar Duarte/www.ogloria.art.br

Possui ainda estátuas de felinos criadas pelo renomado artista francês François Auguste Hippolyte Peyrol (1856-1929), réplicas das famosas obras "La lionne couchée" e "La lionne à l'affût".

Ali também fica o famoso chafariz "A dança das águas", de Remo Bernucci, premiado no Salão de Belas Artes de 1965. O local é palco de piqueniques, festas e aulas gratuitas como ioga e capoeira.

Tudo com vista para o primeiro relógio elétrico do Brasil, instalado em 1905 pelo prefeito Pereira Passos. De engrenagem francesa, funcionou após um "gato" na rede elétrica dos bondes da Companhia de Ferro Carril do Jardim Botânico.

Junto com o Museu de Arte Moderna e o Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, a Praça Paris se tornou em 2012 Patrimônio Cultural da Humanidade.

Parque do Flamengo e Burle Marx

Parque do Flamengo Imagem: Fotografia Cesar Duarte/www.ogloria.art.br

Projetado por Burle Marx, o Parque do Flamengo, que compreende boa parte da Glória e vai até Botafogo, também é Patrimônio Mundial da Humanidade na categoria "Paisagem Cultural Urbana". O artista plástico utilizou 11.600 árvores de 190 espécies da flora brasileira e de outras regiões tropicais, numa área de sete quilômetros de extensão.

Burle Marx também foi responsável pelos jardins no terraço do prédio da antiga Manchete, imóvel tombado, projetado por Oscar Niemeyer que, aliás, teve escritório no bairro.

Bem ao lado, o primeiro hotel 5 estrelas do Brasil e que recebeu artistas de renome e chefes de Estado a partir de 1922, o Hotel Glória é transformado para virar residencial com um apartamento mais barato valendo cerca de R$ 1,2 milhão.

Fachada do hotel Glória, inaugurado em 1922 Imagem: Divulgação

A museóloga e historiadora Mariana Varzea trocou o bucólico Cosme Velho pela Glória em 2016, e desde então, ela e seu marido, que é arquiteto, ficaram encantados com o bairro. Tanto que em 2021 lançou o site Ó Glória, em que resgata com riqueza de detalhes a história do local até os dias de hoje.

Para ela, o que mais fascina no bairro são as camadas de história presentes a cada esquina.

Você pode fazer um percurso que vai desde a aldeia indígena no Outeiro da Glória até o período imperial, com exemplares da arquitetura e paisagismo do século 18 ao moderno.

Na sua avaliação, o bairro tem potencial para muito mais. "A Glória poderia ser vista como um centro patrimonial tão importante quanto o bairro Gótico de Barcelona ou a Praça Mayor, em Madri. Um bairro modelo de preservação de patrimônio histórico no Brasil."

Meu escritório é na praia?

Praia da Glória Imagem: Fotografia Cesar Duarte/www.ogloria.art.br

Um dos destaques do guia, a Praia do Flamengo voltou a ser frequentada após tornar-se própria para o banho: é que o percurso do Rio Carioca foi desviado para um Interceptor Oceânico evitando que todo esgoto despejado de forma indevida não chegue na praia.

Com a novidade, o famoso Caribrejo não deixa nem o visitante sentir vontade de ir tão longe conhecer os mares caribenhos. Uma altinha com cerveja e churrasquinho, em frente àquele mar calmo, sem cheiro e vista para o Pão de Açúcar já bastam para o carioca se achar -ainda mais. Tem gente até fazendo reportagem sentada na areia.

E desde o início de setembro deste ano, visitantes podem verificar a qualidade da água da região ao lado da Marina da Glória. O INEA (Instituto Estadual do Ambiente) passou a incluir aquele ponto em seu relatório de balneabilidade para quem frequenta a Praia da Esplanada Verde e a Prainha da Glória, já liberadas para banho também.

Ali do lado, na Marina da Glória, barcos de passeios transportam quem quiser se aprofundar mais na Baía de Guanabara.

Marina da Glória Imagem: Fotografia Cesar Duarte/www.ogloria.art.br

Fruta com sabor de samba

A Glória amanhece todo domingo com cheiro de frutas, verduras e pastel. A considerada a maior feira livre do Rio de Janeiro é mais que um local de compras do mês: é um evento gastronômico, musical e cultural.

Feira da Glória Imagem: Instagram/@edborret

E seu entorno não tem passado despercebido pelo processo de revitalização do bairro -o que o colocou na lista cool. Em 2022, por exemplo, a Praça Edson Cortes foi reinaugurada e, desde então, vem sendo palco de aulas de dança gratuitas a rodas de samba. Toda semana tem uma, como a do Paulão Sete Cordas, que toca aos terceiros domingos do mês.

O premiado arranjador e instrumentista ainda tem um Espaço Cultural que leva seu nome, com roda de samba gratuita toda terça-feira.

Um olhar para o etnoturismo

Tudo bem se feira e samba não forem o forte do visitante, ou ele não quer esperar até domingo pra tomar uma cerva barata - carioca não fala "breja"!

Uma das rodas de samba da Glória, aos domingos Imagem: Instagram/@timedecriolo

Ele pode começar a sexta-feira na feijoada da Tia Cida, no Quilombo Ferreira Diniz, a partir das 11h. E adivinha o que rola junto com a comilança??

Presidente da Associação da Comunidade do Quilombo, Érida Ferreira frisa que foi a população quem revitalizou o local primeiro, e destaca que foram as rodas de samba, a capoeira e a feira de rua que impulsionaram o olhar para o bairro.

Foi um movimento de dentro para fora. Não foi a revitalização que tornou o bairro um dos mais legais. Foi o fato de ser um dos bairros mais legais que obrigou a Prefeitura, de alguma maneira, a olhar para o bairro e revitalizar o local, aponta Érida.

Acrescentando em seguida o que pode ser melhorado: "O olhar pra esse bairro foi bem importante, apesar de a gente ter algumas questões ainda em relação à ordem urbana, pessoas em situação de rua e a questão do lixo."

Érida enfatiza o papel das feijoadas feitas por sua tia e das aulas de capoeira que ela, que é contramestre, ministra, na economia local e na preservação da cultura quilombola:

Público da Feijoada da Tia Cida Imagem: Instagram/@silviaduf

"A feijoada da tia Cida é o momento que a gente abre o quintal para receber o público. Às vezes temos de 200 a 300 pessoas vindo comer feijoada e conhecer a história do Quilombo. Isso traz uma economia para a comunidade, além da venda de feijoadas, bebidas, doces e serviços."

Ela também vê no turismo uma oportunidade de dar visibilidade à luta quilombola e ampliar as redes de proteção: "Nossa comunidade não está desconectada do movimento quilombola como um todo."

Para quem quer ficar só no comes e bebes

Só quer sentar para comer? Tem o tradicional Braseirinho da Glória, na Cândido Mendes, com galeto de verdade. O preço é um pouco inflacionado, mas vale a pena, já que o prato é bem servido.

O tradicional Ximeninho chegou na Glória há um tempinho na Joaquim Silva com suas conhecidas promoções de água que passarinho não bebe, e supergelada.

Aliás, toda aquela área tem botecos variados. Vale conferir o Bar do Adalto e o clássico Bar do Zé, com sua infinidade de garrafas de cachaça nas prateleiras, bem ao estilo dos botecos antigos, localizado na Barão de Guaratiba.

Bar do Zé, na Glória Imagem: @bardoze.gloria

Queridinho da região, o local é frequentado por intelectuais e já foi cenário de gravação de filmes, novelas, curtas, entre outros.

José Anselmo Filho, 75, chegou da Paraíba ao Rio na década de 1960 e morou na mesma rua do bar. Casou-se com a amiga de infância, Ivonete Anselmo, 73, mais conhecida como dona Nete. Juntos, abriram ali um armazém ainda na década de 1980, que se transformou no Bar do Zé dez anos depois.

Dona Nete celebra as amizades que fez ao longo dos anos com os clientes, tornando-se até madrinha de casais que se conheceram no estabelecimento.

É um privilégio morar e trabalhar aqui, numa rua tão charmosa, de paralelepípedos. Dá para subir a ladeira e, a pé, pegar o caminho para o Outeiro da Glória. Desde a minha infância, quando eu morava na Paraíba, ouvia minha tia falando sobre o Outeiro e ficava imaginando conhecê-lo. É uma igreja muito linda, e a vista é maravilhosa para o bairro e o Aterro. Sempre levo minha família e meus amigos, resume a sócia-administradora do bar.

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