Pedreiro ou religioso em fuga: quem é o 'pai' do país mais antigo do mundo?
Colaboração para Nossa
14/10/2024 05h30
O título de país mais velho do mundo é uma daquelas questões polêmicas; nem todo Estado é considerado país, uma definição historicamente recente e que depende de reconhecimento de suas fronteiras internacionalmente.
Mas, para todos os padrões atuais e de acordo com o Guinness World Records — instituição que publica o Livro dos Recordes —, o mais antigo é a República de San Marino, "escondida" no coração da Itália, entre as regiões da Emilia-Romagna e Marche.
Na prática, isto quer dizer que o Egito que conhecemos hoje não é o mesmo Egito da Antiguidade — em termos de fronteiras, formas de governo, idiomas e vida cultural. O mesmo acontece com o Irã, que apesar de ter mais de 5 mil anos de História, foi Pérsia até quase metade do século 20.
A Grécia, considerada o berço das civilizações ocidentais, era na verdade uma região de Cidades-Estados independentes nos tempos de Platão, enquanto a Espanha das navegações era uma península de reinos vizinhos como Aragão e Castela, com os contornos atuais se evidenciando no século 18.
San Marino, por sua vez, foi fundado em 3 de setembro do ano 301, quando conquistou sua independência do Império Romano. Seu título oficial é "Mais Serena República de San Marino"; a mesma desde aquela época. Além de antigo, o país é o terceiro menor Estado da Europa com apenas 61 km² — um pouco menor do que a subprefeitura de M'Boi Mirim, em São Paulo, com 62,1 km².
Menores do que este, que também é o quinto menor país do mundo, apenas o Vaticano e Mônaco na Europa, além de Nauru e Tuvalu, no Pacífico.
Como San Marino surgiu?
Segundo o CIA Factbook divulgado pela agência de inteligência dos EUA, seu nome veio do seu fundador, um pedreiro cristão chamado Marinus — que acabou virando santo.
Marinus nasceu na ilha de Rab, hoje parte da Croácia, e foi perseguido pelos romanos por causa da sua fé, segundo a lenda que só foi documentada séculos depois de sua suposta existência. Em meio à sua fuga, ele veio parar no Monte Titano, uma montanha dos Apeninos onde construiu uma igreja. Ali, logo teria se formado uma comunidade de fiéis que foi crescendo e compôs o país.
Outra versão da história relatada por jornais italianos diz que ele era um diácono ordenado por São Gaudêncio de Rimini, então bispo católico, e que acabou acusado por uma mulher louca de ser seu marido de quem estava separada. Ele acabou fugindo para o Titano e construiu sim a capela e o mosteiro, como compromisso de uma vida de eremita.
Um artigo publicado no período The American Historical Review em 1901 pelo historiador William Miller aponta que a evidência histórica mais antiga de uma comunidade monástica em San Marino seria do século 5, quando um monge chamado Eugippus registrou que outro monge teria vivido em um mosteiro da região — o que indica que, sim, já havia uma comunidade católica estabelecida ali. Só não se consegue dizer com certeza quando ela começou.
Ao longo dos anos, San Marino conseguiu manter sua soberania graças ao isolamento: a república é como se fosse uma fortaleza isolada na montanha. O fato de ser pequena pode também ter ajudado a passar "despercebida" no radar de outros líderes da região, que não se incomodaram em realizar um esforço de guerra genuíno para recuperar a comunidade.
Durante séculos, sua população seguiu pagando impostos ao Vigário de Montefeltro até que, em 1291, o juiz Palamede de Rimini reconheceu sua autonomia e isenção de impostos em relação aos Estados Papais, de acordo com documentos históricos encontrados na Biblioteca de Faenza.
Mas mesmo esta relativa paz e desenvolvimento não indicam que não tenha sofrido ataques durante a Idade Média ou o início da Renascença, especialmente quando mais comunidades se juntaram ao seu território. Por exemplo, em 1503, o filho do Papa Alexandre 6º, César Borgia, ocupou San Marino.
Mas o esforço durou apenas seis meses, já que o Papa Júlio 2º, sucessor de seu pai, restaurou a independência da república, segundo a Sage Encyclopedia of War.
Em 1600, San Marino colocou em vigor aquela que é hoje a segunda constituição mais antiga do mundo — só perde para a Magna Carta do Reino Unido, válida desde 1215.
Outras breves ocupações de algumas semanas ou esforços burocráticos foram feitos para diminuir a independência de San Marino, mas ela conseguiu um aliado poderoso no século 18, segundo o relato do diplomata Christophe-Guillaume Koch: Napoleão também reconheceu sua independência quando invadiu a península italiana em 1797 — e chegou até a oferecer ajuda para expandir o território do microestado.
Sua estabilidade e autonomia a tornaram um refúgio para revolucionários do movimento de unificação italiana, como Giuseppe Garibaldi, no século 19. Com a Itália finalmente formada em 1862, os dois países firmaram um tratado de amizade.
O que ver em San Marino?
Depois de encarar a estrada por apenas 20 minutos partindo de Rimini ou cerca de duas horas partindo de Bolonha, não deixe de conhecer o Monte Titano, onde o país começou, e suas principais torres: Cesta (no ponto mais alto), Montale (a menor) e Guaita, a antiga fortaleza.
O Titano assim como o centro histórico da cidade de San Marino, capital do país, são Patrimônios da Humanidade segundo a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).
Partindo de teleférico do centro, é possível visitar a pequena e idílica cidade de Borgo Maggiore. Já quem fica na cidade de San Marino mesmo pode visitar o Palazzo Pubblico e a Piazza della Libertà, o primeiro com sua arquitetura incrível e a cerimônia da troca da guarda que é um evento para turistas. Já o segundo tem vistas para o horizonte cheio de verde e a paisagem tranquila da cidade.
Há ainda três principais museus que contam um pouco a história do pequeno e mais antigo país do mundo: a Galleria Nazionale San Marino (com arte dos anos 50 para frente), o Museu de Armas Antigas e o Museu de Moedas e Carimbos.
Curiosidades de San Marino
Linguagem nacional: Italiano, mas 83% de seus 47 mil cidadãos falam o samarinês, uma língua derivada do dialeto romanhol falado historicamente na Emilia-Romagna. É mais comum ouvir a língua entre os mais velhos e, por isso, ela é classificada como em risco de extinção. Se não forem realizados esforços de educação e preservação do samarinês, o idioma corre o risco de desaparecer em 2040, segundo a Condé Nast Traveller.
Moeda: Euro. Apesar de não ser parte da União Europeia, o país possui suas próprias moedas de euro que podem ser trocadas especialmente nas lojinhas de souvenir.
Vistos e carimbos de passaporte: Não existe aeroporto ou estação de trem em San Marino (as mais próximas estão em Rimini, na Itália), então você chega por estradas de carro ou ônibus. Apesar de as fronteiras de San Marino serem abertas para a Itália — e não haver necessidade de visto ou carimbo de passaporte na chegada —, eles se tornaram uma novidade para os visitantes e podem ser comprados nos escritórios turísticos.
Principais produtos: queijos e vinhos.
Pratos mais populares: Torta Tre Monti e Torta Titano, que levam avelãs, chocolate e bolos inspirados nas torres da república. Entre os salgados, a Piada samarinesa que leva pão fininho (que lembra o pita ou o sírio) recheado com queijos, saladas e ingredientes variados.
Pior futebol do mundo: Não espere assistir a um jogaço em San Marino, pois sua seleção é famosa por ter vencido um jogo oficial pela primeira vez em 20 anos no último mês de setembro, quando bateu Liechtenstein por 1 a 0.