Fim do Futuro? Restaurante pede ajuda para prédio não virar estacionamento
Ana Mosquera
Colaboração para Nossa
24/10/2024 05h30
A frase da artista Ida Feldman "O passado me trouxe até aqui" pode se referir a trajetórias pessoais ou coletivas, de um prédio, bairro ou negócio familiar — ou tudo junto. A preocupação com as origens, seja do edifício, seja do menu com alimentos produzidos do zero, sempre foi prioridade do Futuro Refeitório, restaurante e café no bairro de Pinheiros, em São Paulo.
Fundado pelas irmãs Gabriela Barretto e Karina Muniz Barretto, o negócio ocupa, desde 2018, o lugar que antes abrigou a Bronzes Artísticos Rebellato. Fundada em 1937 por José Rebellato, a fábrica de fundição ficou na mesma família até ter suas atividades encerradas, em 2010.
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Com o intuito de que o local não assista a mais um desfecho, no caso, do próprio prédio, as sócias têm se mobilizado pelo tombamento da construção.
Antes de ser um dos espaços gastronômicos mais badalados do entorno, visitado por pessoas do Brasil e do mundo, o Futuro, como é conhecido pelos mais íntimos, já foi terreno baldio e estacionamento e, entre as duas ocupações, a sede da empresa.
Além de placas para túmulos do vizinho Cemitério São Paulo, estátuas significativas para a cidade e o país saíram daquele galpão. O artista lituano radicado no Brasil Lasar Segall, um dos maiores nomes do Modernismo, era um dos que levavam peças para restauro e fundição.
Obras como o Monumento ao 14 Bis, no Campo de Marte, o Monumento a Ramos de Azevedo, no Butantã, e esculturas no Museu de Arte Contemporânea, o MAC, também somam ao legado do lugar. A permanência dessa história na capital paulista, entretanto, corre riscos.
Novo cenário
Há cerca de três anos, o imóvel onde está o Futuro foi vendido para a construtora São José — mesma que construiu um prédio de luxo sem autorização no bairro paulistano do Itaim, no último ano. Apesar de terem o contrato de locação renovado até 2027, a permanência do imóvel, mais do que a do restaurante no local, tem tirado o sono das sócias que prezam pelas memórias desde a abertura da casa, em 2018.
"O que aconteceu aqui é o motivo pelo qual esse imóvel se mostrou interessante para nós: ele conta uma história", diz Gabriela, ao apontar para as tesouras de peroba rosa onde eram içadas as peças de bronze e as colunas estruturais feitas de tijolo e não de concreto, como nos dias atuais.
Conseguir o tombamento não garante a nossa permanência, mas o imóvel não pode ser derrubado. Ele tem a importância de uma época e de um uso, diz Karina.
"Há galpões que têm traços arquitetônicos característicos, como o Sesc Pompeia, que Lina Bo Bardi resolveu preservar ainda que não tivesse nenhum tipo de proteção", comenta Marianna Boghosian Al Assal, professora da Escola da Cidade.
Das faixas amarelas e pretas do estacionamento ao chão de cimento queimado e as janelas que clareiam o imenso salão dividido em três, tudo foi preservado no projeto do arquiteto Felipe Hess. Foi o Futuro que se adaptou ao lugar e não o contrário.
"Temos que construir a esperança em cima do caos do passado. Não há mais a ideia de um futuro totalmente novo, perfeito, estéril. Em termos de arquitetura e história, é preciso segurar o que consideramos importante", diz Gabriela.
O tombamento de locais que fogem a obras artísticas e arquitetônicas raras, a partir da segunda metade do século 20, é o que torna possível o processo por que hoje passam o Futuro e imóveis similares, segundo Marianna.
Deixamos de lado o pensamento do patrimônio como monumento e caminhamos para sua compreensão como um registro de práticas cotidianas, que tornam cada lugar uma referência cultural para a comunidade e o desenvolvimento da cidade, estado ou nação.
A voz do povo
Não são raros os casos de restaurantes que vêm sofrendo com a crescente verticalização em São Paulo e outras cidades do Brasil.
Quando estava prestes a completar 20 anos na Rua Pará, no bairro paulistano de Higienópolis, o ICI Bistro se viu obrigado a mudar de endereço, assim como o Tip Top, restaurante mais antigo de Belo Horizonte, de 1929, teve que fazer o mesmo por conta da demolição do imóvel em maio.
A casa de 1931 em que ficava o Lilu, antigo empreendimento do chef André Mifano, foi derrubada, enquanto o Bar Balcão, também em São Paulo, segue em luta contra a especulação imobiliária, no auge dos seus 30 anos, com abaixo-assinado que já conta com mais de 14 mil assinaturas.
Desde outubro do ano passado, o espaço que abrigava a Bronzes Artísticos Rebellato é um dos mais de 600 imóveis e manchas urbanas de Pinheiros e Cerqueira César que tiveram o tombamento provisório pelo Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo).
"Os pedidos podem ser feitos por qualquer interessado ou pelo órgão técnico, que vai a campo, faz mapeamento, averigua condições, afere o valor cultural e indica pela abertura ou não do processo", diz Luca Fuser, antropólogo e consultor especialista em patrimônio cultural.
A decisão que favoreceu o imóvel do Futuro aconteceu graças à mobilização da sociedade civil contra a verticalização, somado a um estudo do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH), ligado à Secretaria de Cultura de São Paulo, assim como o Conselho.
São lugares que devem ficar para a cidade, que por si só é objeto cultural relevante, diz Fuser.
Devido ao aumento das pressões dos proprietários do imóvel, as sócias estão à frente de um abaixo-assinado a fim de acelerar o tombamento definitivo.
Queremos gerar consciência, fazendo com que as pessoas entendam a relevância do lugar para o bairro, independente do Futuro. Queremos ter apoio e fazer pressão para que, na hora da votação junto aos órgãos competentes, haja uma força de oposição aos que acham que ele é apenas um imóvel velho, diz Gabriela.
Em dezembro último, o telhado de uma parte do prédio que não está locada para o restaurante foi demolido irregularmente, fazendo com que seu estoque ficasse exposto e boa parte dos produtos fossem perdidos — o que não poderia acontecer, já que o tombamento temporário prevê a "preservação das características arquitetônicas externas da edificação", de acordo com o documento oficial.
"Existe a falsa ideia de que as pessoas que querem preservar são antagonistas do progresso, o que é uma falácia. O Futuro é uma prova de que é possível pegar algo que já existe e, sem destruir, ter resultados econômicos, empregar pessoas, gerar dinheiro, pagar impostos, ter fornecedores", diz Gabriela. "É um negócio que cuida do patrimônio", diz Karina. Quarenta famílias se beneficiam da renda do restaurante.
Procurado pela reportagem, o responsável do Departamento de Patrimônio Histórico não se mostrou disponível para entrevista, mas a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Cultura enviou algumas atualizações sobre o caso:
"O imóvel mencionado pela reportagem está em processo de tombamento e passa por análise dos conselheiros do Conpresp. Neste e nos demais processos, todas as partes envolvidas e a equipe técnica são consultadas. Ao final, cada caso, individualmente, é submetido à aprovação do Conselho".