Vinhos, boa comida e paisagens lunares: Salta é a Argentina longe do óbvio
Flávia G Pinho*
Colaboração para Nossa
25/10/2024 05h30
Se você acha que Mendoza é o destino natural para conhecer os vinhos da Argentina, está na hora de dar um zoom out e espiar outras partes do mapa do país hermano. A província de Salta, cujo ponto mais ao norte fica a menos de 50 quilômetros da fronteira com a Bolívia, é "o lugar" para quem gosta de beber vinho, comer bem e variar as paisagens.
Por (ainda) não ser um destino tão bombado quanto Mendoza, Salta oferece a vantagem de custar menos — e a gente não precisa disputar espaço com tantos turistas.
Não sabia que se produz vinho em Salta? Muita gente pensa o mesmo e não é difícil entender por quê. A região é considerada um deserto de altitude. Fica a 1.400 quilômetros de Buenos Aires, o principal porto para escoamento da produção, e não é lá muito amigável para caminhões, que precisam transportar garrafas de vidro serpenteando serra abaixo — em alguns trechos, a estrada atinge 3.500 metros de altitude.
Pelo grau de dificuldade, as vinícolas menores acabam se limitando à distribuição local. As maiores até conseguem exportar, mas os rótulos que desembarcam em São Paulo custam caro e não vão para as gôndolas dos supermercados. Mais um motivo para ir até lá e conferir tudo in loco.
Ao contrário de Mendoza, onde a uva Malbec é protagonista, Salta é a terra da cepa branca Torrontés. Os locais se orgulham de contar que ela nasceu na Argentina, fruto do cruzamento espontâneo de videiras trazidas da Espanha.
Apesar de ser conhecida pelos aromas florais intensos, a Torrontés cultivada naquelas altitudes é diferente. O sol inclemente, que brilha sem obstáculos durante nove meses por ano, faz com que as uvas produzam cascas mais grossas para se proteger, o que aumenta a acidez e o corpo. Na taça, o resultado são vinhos mais frescos e elegantes.
Por onde começar
A capital da província, que também se chama Salta, foi fundada em 1582 e tem seus encantos coloniais, verdade seja dita. Mas quem chega ao aeroporto internacional General Martín Miguel de Güemes, aluga um carro e parte direto para os arredores não se arrepende — as rotas nacionais 68 e 40 cortam o deserto argentino, descortinam os vinhedos mais altos do mundo e reservam as grandes surpresas da viagem.
A paisagem é lunar, como um cenário de Star Wars. Até onde a vista alcança, só se veem montanhas de pedra ou argila em curiosas formações, que vão trocando de cor conforme o sol muda de posição. Só não se engane com o termo "rota", porque estão longe de ser autoestradas. Há muito sobe e desce, trechos estreitos e vertiginosos e vários quilômetros sem calçamento. A aventura é boa, mas quem viaja em carro com suspensão baixa sofre um pouco com os sacolejos.
A cidadezinha de Cafayate, a 185 quilômetros do aeroporto, está a 1.700 metros de altitude, no coração dos Valles Calchaquíes, e merece alguns dias do roteiro. De ruas planas, bastante procurada por ciclistas e motociclistas, lembra as pequenas cidades do interior do Brasil, com sua praça e a indefectível igreja em destaque. Só que tudo por ali tem cheiro e gosto de vinho.
O centro, repleto de wine bars descolados, começa a ganhar vida às quartas-feiras, quando os estabelecimentos abrem as portas, e sem mantém agitado até domingo, quando os visitantes costumam ir embora.
Há lugares como o bar Bad Brothers (badbrotherswe.com), onde o cliente pode produzir o próprio blend, e sorveterias que usam vinho como ingrediente. No Museu das Vinhas e do Vinho (museodelavidyelvino.gov.ar), a exposição permanente mostra como a cultura dos colonizadores espanhóis dependeu da mão de obra dos indígenas diaguitas, calchaquíes e omaguacas para erguer a produção vitivinícola.
Quem precisa dar um tempo no álcool vai à Chinita (@chinita_cafe_cafayate), misto de cafeteria e livraria, que ocupa uma esquina com mesinhas na calçada. E não faltam hospedagens para todos os orçamentos, de hostels a pousadas de charme, como o Iraola Hotel Boutique (iraolahotel.ar).
As vinícolas se espalham pelos arredores do centro de Cafayate — para chegar a elas, não se dirige por mais de 20 minutos. Quem visita a Bodega Amalaya (amalaya.com) pode degustar os rótulos no terraço do wine bar, debruçado sobre os vinhedos. Bem pertinho também estão as vinícolas El Esteco (elesteco.com.ar), com hotel e restaurante, Vasija Secreta (vasijasecreta.com.ar), que se vangloria de ser a mais antiga da cidade, e Burbujas de Altura (burbujasdealtura.com.ar), que também produz vinhos tranquilos, apesar do nome.
Rumo ao topo
A 114 quilômetros de Cafayate, viagem que leva 3 horas de carro serra acima, pela Ruta 40, chega-se à Bodega Colomé (bodegacolome.com), a 2.440 metros de altitude. É parada obrigatória para conhecer e degustar a alma da região.
A mais antiga vinícola argentina em atividade ininterrupta teve seus primeiros vinhedos plantados em 1831, plantas que seguem em produção e podem ser vistas em visitas guiadas. Mas todo o lugar passou por uma senhora renovação a partir de 2001, quando foi comprado pelo casal de milionários suíços Donald e Ursula Hess.
A antiga residência da fundadora foi transformada em hotel boutique, com nove suítes que revelam a vista de cactos, vinhedos e montanhas. O cardápio do restaurante é assinado pela argentina Patricia Courtois, autora do livro Viaje al Sabor (Editora Planeta), que pratica a chamada "cozinha quilômetro zero": todos os ingredientes, das carnes aos temperos, do iogurte ao doce de leite, são produzidos na propriedade.
Colecionador de arte, Donald Hess, que faleceu ano passado, também construiu um museu para as obras do norte-americano James Turrell — uma das experiências nas instalações do artista é oferecida exclusivamente aos hóspedes do hotel.
Para elaborar os vinhos Colomé, o enólogo francês Thibaut Delmotte usa uvas de três vinhedos, entre eles o Altura Máxima, a 3.100 metros de altitude, um dos mais altos do mundo. Parte do portfólio chega ao Brasil pela importadora Decanter, mas só no hotel é possível provar alguns rótulos. O branco Misterioso, elaborado com as uvas do vinhedo bicentenário, é um deles. No passado, era usual plantar várias cepas misturadas.
Aos poucos, Delmotte e sua equipe foram isolando e classificando as variedades desta pequena parcela, mas uma casta branca, que chegou a ser enviada a uma universidade norte-americana para estudo, nunca foi identificada e compõe o blend Misterioso.
Povoados e ruínas pelo caminho
Quem viaja de carro pelas Rutas 40 e 68 passa por vilarejos que pedem algumas paradas. É o caso de Molinos, onde está a igreja de San Pedro Nolasco, construída em 1659, que abriga o túmulo de Nicolás Severo de Isasmendi y Echalar (1753-1837), último governador espanhol da província — o forro da igreja e as molduras das tapeçarias foram confeccionados com cactos. Diante da igreja, sua antiga residência foi transformada no hotel Hacienda de Molinos (haciendademolinos.com.ar).
Cachi, cidadezinha que vive da produção de páprica, é o lugar para comprar souvenirs e provar embutidos de carne de lhama.
Entre um povoado e outro, é comum topar com residências abandonadas, em ruínas, e formações rochosas instagramáveis. No caminho entre Salta e Cafayate, o descampado que serviu de cenário para uma das histórias do filme Relatos Selvagens, estrelado por Ricardo Darín em 2014, é parada obrigatória para fotos — até a carcaça do automóvel continua lá.
Já existe voo direto da Aerolíneas Argentinas, ligando o aeroporto de Guarulhos a Salta. A frequência é baixa — só um por semana, que sai aos sábados de São Paulo e volta no domingo. Mas sete dias é mesmo o tempo ideal para desbravar a região de carro.
Convém reparar em certos pontos rebaixados da estrada, onde a vegetação rasteira do deserto dá lugar a pedras. Na verdade, são rios secos que só veem água entre dezembro e fevereiro — no verão, tornam-se caudalosos e, não raro, interditam as estradas. Melhor evitar a região nessa época. No restante do ano, em compensação, é puro sol, com noites frias que abrem o apetite para vinhos e as famosas empanadas saltenhas.
*A repórter viajou a convite do Grupo Colomé e Importadora Decanter