Histórias do Mar: leia capítulo inédito do novo livro de colunista do UOL
Nesta terça-feira (19), o jornalista Jorge de Souza, autor da coluna Histórias do Mar, lança o volume 3 da coletânea "Histórias do Mar", série de livros que narram casos verídicos que aconteceram nos oceanos. A noite de autógrafos acontece na Livraria da Vila do Shopping Pátio Paulista (Rua Treze de Maio, 1947), a partir das 19h. Entre as 100 novas histórias do livro, Jorge antecipou para Nossa o incrível caso do navio atacado por homens primitivos em 1981. Leia a seguir este capítulo inédito.
O ataque dos selvagens
Parecia impossível. Mas, em pleno século 20, um navio estava sendo atacado por indígenas
No início da noite de 2 de agosto de 1981, um tufão varreu o mar do Golfo de Bengala, uma enorme porção de água entre a Índia e Myanmar.
Entre os navios que navegavam na região naquela noite estava o Primrose, um cargueiro panamenho de uma empresa de Hong Kong, que partira de Bangladesh com destino à Austrália dias antes, levando um carregamento de ração para frangos e 31 tripulantes - todos chineses, incluindo o capitão, Liu Chunglong.
Quando a tormenta aumentou de intensidade, por volta da meia-noite, o capitão Chunglong não conseguiu impedir que o navio, que já vinha sendo arrastado pelas ondas, encalhasse em um recife de coral, a menos de 100 metros da praia de uma das ilhas do arquipélago Andaman e ali ficasse, impossibilitado de se movimentar — mas sem risco imediato de naufragar. O perigo, no entanto, existia. Mas era outro. E ainda mais apavorante que o simples naufrágio.
Durante dois dias e duas noites não houve como remover da ilha o navio encalhado, por conta da tempestade, que impedia a aproximação de qualquer aeronave ou embarcação. Mas, no terceiro dia, o escritório da empresa a qual o Primrose pertencia recebeu uma perturbadora mensagem do capitão Chunglong, pedindo o envio urgente de armamentos.
Armamentos?
Por que aqueles marinheiros, retidos dentro de um navio encalhado, precisariam de armas? Qual risco o capitão julgava que corriam, entalados diante de uma ilha coberta de densa mata que parecia deserta?
A resposta estava no nome daquela ilha: Sentinela do Norte — a famigerada ilha dos sentineleses, uma tribo de homens primitivos, violentos e ainda arredios a qualquer contato com o mundo exterior, considerados um dos mais hostis e isolados do mundo.
E o capitão do cargueiro tinha motivos de sobra para estar preocupado.
Naquela manhã, a tripulação do Primrose avistara, saindo da mata que margeava a praia, um grupo de homens negros, nus e atarracados, carregando grandes arcos, flechas e lanças. Em seguida, eles trouxeram canoas. Parecia claro que a intenção do grupo era navegar até o navio imobilizado e atacá-lo — por mais absurda que aquela situação parecesse, em pleno século 20.
Ao ser comunicado pela tripulação do movimento em curso na praia, o comandante chinês ordenou que todos se armassem com tudo o que pudesse virar instrumento de defesa (pedaços de cano, pistolas sinalizadoras etc.) e ficassem de vigia no convés, a despeito do mau tempo que ainda imperava na região.
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Quero receberApesar do clima inclemente, aqueles sentineleses, cerca de 50 homens, pareciam determinados a avançar com suas canoas até o grande navio encalhado a pouca distância da praia, no qual três dezenas de homens viviam a angústia de um pré-ataque primitivo.
Por sorte, foi o próprio mau tempo que impediu que o grupo conseguisse o seu intento: grandes ondas que quebravam na praia, consequência da tempestade reinante, impediram que as canoas fossem lançadas ao mar, e os ventos fortes desviaram as flechas, que, ainda assim, eles dispararam contra o navio, da própria areia.
Rapidamente, a notícia de que um navio de aço estava sendo atacado com flechas e risco real para os seus ocupantes, virou manchete no mundo inteiro, o que pressionou o governo da Índia, a quem pertence as Ilhas Andaman (embora isso não se aplique a Ilha Sentinela do Norte, cuja posse legal é dos sentineleses), a fazer algo efetivo para ajudar aqueles apavorados marinheiros.
A primeira tentativa, por mar, foi frustrada: um bote inflável lançado por um navio da Marinha indiana próximo ao Primrose, com o intuito de resgatar os tripulantes do navio, quase virou nas ondas e a operação teve que ser suspensa, antes que a quantidade de vítimas à mercê dos belicosos habitantes daquela ilha aumentasse ainda mais.
Já a segunda tentativa, pelo ar, foi bem-sucedida.
Um ex-aviador americano da Guerra do Vietnã, que morava na capital das Ilhas Andaman, se ofereceu como voluntário para pilotar um helicóptero e pousar a aeronave no acanhado convés do navio, o que fez com extrema habilidade, apesar das flechadas que os sentineleses disparavam da praia.
Ao final de três viagens, todos os 31 tripulantes do Primrose estavam salvos. Mas não o navio. Seria arriscado demais para as equipes de resgate passarem dias tentando desencalhar o cargueiro da praia, sob a constante ameaça de ataques dos sentineleses - que, por serem seres nativos vulneráveis, protegidos por lei, não poderiam ser sequer combatidos.
Com isso, o Primrose acabou condenado a ficar ali para sempre e a se transformar em um amontoado de ferros carcomidos pelo tempo, que, ainda hoje, podem ser vistos encravados em uma das pontas da Ilha Sentinela do Norte, nas imagens do Google Earth.
Dez anos depois, em 1991, naquele que seria o último contato pacífico com os habitantes da Ilha Sentinela do Norte — hoje proibida a qualquer visitante —, um grupo de antropologistas notou que as flechas e lanças que eles portavam continham pontas de metal, material que os sentileneses, até então, desconheciam. A conclusão foi que eles haviam invadido o navio abandonado e retirado materiais que usaram para aperfeiçoar seus armamentos.
Graças ao Primrose, os sentineleses haviam, por fim, atingido a era do ferro — 8 mil anos depois do restante da humanidade.
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