Pra começar o ano em paz, peruanos trocam socos para resolver as desavenças
Colaboração para Nossa*
06/12/2024 12h00
Os peruanos das províncias de Chumbivilcas e Antabamba, próximas a Cusco — a cidade andina do Vale Sagrado que é a "última parada" antes do Machu Picchu —, celebram o Natal de uma maneira curiosa: com brigas e pancadarias que têm o propósito, ironicamente, de promover a paz.
O festejo chama-se Takanakuy, uma palavra do idioma nativo quíchua que significaria uma "troca mútua de socos". Mas nem só de pancadaria vive o ritual, que é acompanhado de canto e dança, além de máscaras coloridas, atrai plateia e faz a alegria das comunidades. Mais do que briga, o Takanakuy é uma festa cultural.
Para que servem as lutas?
Apesar de durar vários dias, o ápice acontece no dia de Natal, em Santo Tomás, em Chumbivilcas. A arena da cidade recebe centenas de lutadores de cidades vizinhas e cada luta tem como acompanhamento a huaylía, forma de dança e cantoria que foi declarada patrimônio cultural do Peru em 2016. Os versos são entoados sempre por duas mulheres, ao som de harpa, violino e, às vezes, acordeão, bandolim e violão.
A alegria se contrasta com a violência, mas ela tem um propósito na mentalidade dos locais: "lavar a roupa suja" antes de começar um novo ano. Então, é comum que conhecidos que tenham um "arranca rabo" tentem resolver os problemas no braço ali e depois deixem por isso mesmo. As lutas, aliás, devem terminar com um abraço. Entre os motivos que levam os moradores à arena improvisada estão:
- Por esporte
- Demonstrar valentia e talento
- Amizade
- Resolver problemas pessoais ou familiares
- Honra
- Solidariedade
É por isso que os defensores do Takanakuy o veem como uma ferramenta de paz. Em lugares esquecidos pelas autoridades das grandes cidades, a lei e a justiça se impuseram ao longo de séculos de outras maneiras. No Peru, não é diferente: em vez de matanças por vinganças após uma desavença, que iniciariam um ciclo de violência sem fim entre famílias, as discordâncias são resolvidas sob os olhos da comunidade e do Menino Jesus, que na festa veste roupas típicas chumbivilcanas.
Aspecto folclórico
Além de música acompanhando as disputas, há personagens. Um deles, o majeño simboliza os habitantes da região do rio Majes — no departamento vizinho de Arequipa —, que trocavam aguardente por produtos de Chumbivilcas. Por isso, sua máscara inclui um chifre para levar o álcool — que tem especial importância no Takanakuy, já que é uma festa em que se bebe muito.
Já o qarawatana é um personagem que tem um animal dissecado na cabeça — às vezes, cabeças empalhadas de aves, raposas e cabras que são um símbolo de força ou sorte — e um visual de membro de gangue, com casacos de couro. Assim como os outros, ele também usa uyach'ullu, uma máscara de esqui colorida e estilizada que serve para ocultar a identidade da pessoa, algo útil quando se quer dançar em paz ou dar uns tapas em gente conhecida.
Como surgiu a festa?
As origens do festival são incertas, mas uma pesquisa e exposição realizadas pela Universidade Wiener, de Lima, apontou que é possível que a tradição tenha iniciado nas fazendas escravocratas da região no século 19. O comércio com a zona de Majes era intenso, especialmente por cañazo, aguardente de cana-de-açúcar semelhante à cachaça e que hoje é uma bebida um pouco esquecida no país do pisco.
A ausência da ação do Estado transformou a área em uma terra sem lei, na prática, e começaram a surgir rinhas. Como se tornaram mais frequentes, elas começaram a ser organizadas pela própria comunidade — envolvendo até apostas — entre escravizados e majeños. Por isso, outro dos personagens tradicionais é o "negro".
"Briga" com a lei
O Takanakuy chegou às regiões metropolitanas de Lima e Arequipa, com o passar dos anos, e não-indígenas de classe média entraram também nas arenas. A festa é bastante popular, especialmente entre adolescentes e até crianças, o que já gera indignação no Peru há, pelo menos, uma década, quando os vídeos dos confrontos ganharam as redes sociais.
Alguns meninos — e até mulheres, que começaram a participar em vestidos floridos — usam máscaras de Halloween ou encaram os confrontos de cara limpa. Autoridades já tentaram erradicar a tradição em Lima, sem sucesso. Em 2014, o Ministério da Mulher e Povoações Vulneráveis emitiu um comunicado à população no fim do ano lembrando que o Takanakuy afeta o desenvolvimento das crianças e adolescentes, e que as brigas vão "contra o princípio do interesse superior da criança".
"Apesar de o Estado respeitar práticas culturais, estas situações poderiam ter um efeito imediato na vida emocional das crianças, e inclusive pode ser causa de estresse pós-traumático", dizia o texto. Já em 2021, a polícia dispersou um Takanakuy com 600 participantes porque os participantes estariam desrespeitando as medidas sanitárias contra a covid-19.
*Com informações das agências AFP e EFE, além de matérias publicadas em 19/12/2021 e 23/12/2022.