'Não existe resíduo zero': chef defende sustentabilidade sem hipocrisia

Quantos restaurantes apresentam os fundos do estabelecimento? E não se trata de um "Visite nossa cozinha". No Corrutela, não só ela, como os bastidores estão prontos para quem quiser ver. Cesar Costa mostra, com orgulho, a compostagem, a separação lixo e muito mais de sua sustentabilidade explícita.

A Estrela Verde Michelin, que premia justamente os restaurantes com essa conduta pró-planeta e sociedade, está logo na entrada, ao lado de mais prêmios. Mas este está longe de ser o canto mais interessante da charmosa casa na Vila Madalena.

Excepcionalmente, a reportagem não foi direto à mesa. Subindo as escadas, atravessando pequeno escritório, atrás das cortinas é onde o jovem chef adoraria receber mais visitantes entre comensais e colegas.

Nós somos 100% abertos em mostrar tudo o que a gente faz. Grandes segredos que não são investimentos financeiros, mas escolhas, acredita o chef de 33 anos.

Se as criações dos cozinheiros têm uma "energia" diferente, Cesar atribui aos 80% que o público não vê - "você acaba sendo uma coisa meio de dentro pra fora".

Diante disso e de outros grandes detalhes apresentados por Cesar durante uma entrevista que começou na visita aos "laboratórios" do restaurante e da mente, ele crava que não quer levantar bandeira, mas dar exemplo e mostrar que sim, é possível ser obsessivamente correto numa indústria mergulhada em problemas.

Por trás das cortinas

Você sabe, por exemplo, de onde vem o chocolate "bean to bar" do seu restaurante favorito? No Corrutela, o bean (grão) é, há oito anos, armazenado em uma leiteira e não vira bar (barra), mas se transforma em base para a torta de chocolate icônica da casa, chás de cacau e até para bolo de aniversário de funcionário.

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Parece detalhe, mas sintetiza uma consciência que fala direto ao bolso e saúde de um restaurante.

Produção do chocolate do Corrutela
Produção do chocolate do Corrutela Imagem: Pedro Ferrarezzi
Famosa torta de chocolate do Corrutela
Famosa torta de chocolate do Corrutela Imagem: Pedro Ferrarezzi

"Comecei pagando R$ 35 no lote, e o último foi negociado a R$ 160. Imagina que outros restaurantes que estão comprando chocolate importado estão sujeitos a aumento de dólar, taxas, fora a questão da embalagem", aponta com a mão cheia dos grãos aromáticos.

Também na "coxia", Cesar mostra uma máquina que funciona como um banho-maria para a limpeza de toda a parafernália que se usa num restaurante e que poupa o pia (a pessoa responsável literalmente responsável pela pia, claro) de arear e produzir mais um resíduo - para onde acredita que vai uma palha de aço?

Não acredito em 'resíduo zero', mas sim em redução. Zero significa que você é 100% e isso não seria verdade. É uma escolha que agrega valor a outras cadeias, explica.

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Corrutela
Corrutela Imagem: Duda Gulman

Na cozinha, uma vida que quis

Sendo "uma pessoa meio calada que tem muita coisa a falar" e de uma sinceridade intrigante e, claro, bem-vinda, Cesar leva a reportagem para a mesa, mas pede um momento em frente à cozinha, onde ninguém usa dólmã ou se chama de chef: "ninguém corre, fala mais alto, ninguém com cara de bravo, viu?".

O coração do restaurante pulsa em balé organizado, preciso, mas calmo e fluido. É tão motivo de orgulho que ocupa literalmente o centro de tudo.

Para conquistar essa calmaria, tão rara às cozinhas profissionais, Cesar sentiu na pele o que queria e o que não queria na profissão.

Cesar Costa
Cesar Costa Imagem: Pedro Ferrarezzi
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Filho e irmão de médicos, foi graças à mãe dona de casa "mineira e cozinheira de mão cheia" que Cesar se criou em Piracicaba com muito gosto pela cozinha, mas não tanto pelo mundo acadêmico.

"Sempre fui muito autodidata, tanto que nunca concluí a faculdade de gastronomia. Talvez conclua porque é um sonho da minha mãe."

Aos 17 anos, estagiava em um restaurante de São Paulo. Aos 19, com faculdade trancada partiu para a República Tcheca e lá já começaria a entender que, para muitos, sucesso é inversamente proporcional a saúde.

Chegou uma caixa gigante de isopor com 300 cabeças de carpa e tinha que tirar a bochechinha individualmente de cada uma. Eu passei, sei lá, horas. Peguei essa coisa um pouco da cozinha rock'n'roll, resume.

De volta ao Brasil, estagiou ao lado dos irmãos Castanho no Remanso do Bosque, no Pará, o que alimentou o sonho de voltar a Piracicaba e servir um menu somente de peixes de rio.

Mas as novas ideias viriam de longe e inesperadamente, em fogo lento.

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Devagar e (nem) sempre

Cesar Costa
Cesar Costa Imagem: Pedro Ferrarezzi

Num grande evento gastronômico em São Paulo, Cesar conheceu a chef e ativista Alice Waters, uma das fundadoras do movimento slow food - uma forma mais consciente de cozinhar e comer.

"Comprei um livrinho dela, ela autografou e colocou um cartãozinho no meio. Eu não vi. Um dia, abri o livro e caiu o cartão dela no meu colo. Imediatamente, mandei um e-mail pra ela e pedi um estágio", lembra

Alice não só topou, como se tornou uma amiga e incentivadora.

Passei um semestre no Chez Panisse, um lugar mágico, atemporal, onde não se gritava. Trabalhei com pessoas de cabelo branco, que estavam na mesma praça há 30 anos, relembra.

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Pratos do Corrutela
Pratos do Corrutela Imagem: Duda Gulman

No meio do caminho, "um grande erro":

Fui para São Francisco, trabalhei num restaurante que estava indo para as três estrelas Michelin. Saí do ambiente super bom, saudável e fui para um restaurante em que você trabalhava seis dias na semana, quase 18 horas por dia. E fui tratado igual um bicho, descreve.

Para que?

"Porque eu tinha essa idolatria das estrelas, eu queria ver o que eram", afirma.

Depois, Dinamarca e sua escala inteligente, redução de resíduos, mas com muito trabalho. E no sul da França, em mais uma estrela Michelin "totalmente insalubre. A equipe morava lá e era gente muito, muito tóxica."

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O eixo da comida consciente viria em um MAD Symposium - evento anual em Copenhagen fundado por René Redzepi, do Noma. Lá, Cesar conheceu Miles Urban, autor do The Forager Cookbook, e estagiou com ele como coletor no interior da Inglaterra.

De volta ao Brasil aos 26 anos, era hora de "corromper".

Ambiente do Corrutela
Ambiente do Corrutela Imagem: Pedro Ferrarezzi

Abaixo ao formal do passado e medo do futuro

Com ajuda do jornalista Gilberto Dimenstein, Cesar encontrou o imóvel ideal - ao lado da Escadaria do Patapio - e encarou dois anos de obra, percalços políticos, um trabalho do tamanho do mundo e... sucesso.

Desde o primeiro dia - ainda que a identidade não estivesse certa nem mesmo para o chef.

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Com isso, prêmios. Muitos mais antes da pandemia (que forçou o fechamento do restaurante por 11 meses e um "renascimento" em 2022), mas a cobiçada Estrela Verde Michelin - como o Bib Gourmand - veio em 2024.

Eu não sei como eles avaliaram, eu não mostrei nada disso para eles. Imagina se eu mostrasse. Nunca ninguém veio que eu tenha visto. De nenhum prêmio, entrega.

Mais do que nunca, o reconhecimento não é ditado por estrelas ou placas, mas por uma clientela fiel e variada — em minutos, na hora do almoço em uma quinta-feira, chegam muitas mulheres, crianças, idosos, a comunidade nipônica, judaica, árabe, gourmands, ciclistas, boêmios e "Vila Madaleners".

"O jovem chef gosta de mostrar as técnicas, seus gostos, mas acho que no fim você tem que ter uma empatia muito grande pelo público e saber caminhar de maneira inteligente para sobreviver".

Resultado é um menu totalmente livre para combinações.

Pratos do Corrutela
Pratos do Corrutela Imagem: Pedro Ferrarezzi
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Você pode comer uma linguiça com uma salada? Com banana da terra? Claro! Com uma berinjela? Claro! Com uma cenoura? Com certeza! Com uma polenta? Uma delícia! Com uma mandioca? Delícia! Com arroz de cogumelo? Isso fica ótimo! Com picles? Ah, pega um pão e uma tábua de queijo e come!, indica com o menu nas mãos e empolgação na voz.

Ao lado da simplicidade e informalidade de tudo, um olhar para a modernidade também fascina Cesar. Já pensou se inteligência artificial e sustentabilidade combinam?

Para Cesar sim e não é pouco. Ele atribui à tecnologia, tão temida por aí, como uma oportunidade de melhorar a gestão da cozinha e do restaurante como um todo.

Acelerado, saca o celular e abre a tela de seu ChatGPT. Bem treinada, a IA otimiza, por exemplo, a substituição de um ingrediente numa determinada receita, ou a medida.

São testes e leituras diárias para treinar o que há de mais burocrático e deixar com que os cozinheiros tenham mais tempo, menos pressa e melhores resultados no fine casual do Corrutela.

A IA torna os chefes de cozinha mais multitarefas e ajuda mesmo em coisas de RH, de cálculo de horas de trabalho, por exemplo. Hoje em dia eu consigo otimizar todos os processos do restaurante através de IA, conta.

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Com tudo isso, Cesar reconhece que o Corrutela é também um lugar que requer uma compreensão intelectual.

Cesar Costa
Cesar Costa Imagem: Pedro Ferrarezzi

"Não posso negar isso. Para você entender esse conjunto da obra que a gente tá falando requer uma sensibilidade da pessoa, certa noção de governança, ESG, esses tópicos", acredita.

E é no paradoxo do simples e complexo, o conhecido e o nunca antes desbravado, sem talheres de prata, um serviço mais livre e água fresca à vontade (na garrafa de vidro, claro), que o Corrutela (corruptela gramatical de... corruptela) tira a formalidade, mas não o que mais importa a quem senta à mesa:

A gente pega toda essa atmosfera do restaurante, esse negócio francês e quebra, sem deixar de entregar a mensagem que é a comida.

1 comentário

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Pedro Miguel de Morais Parizotto

Admiração é uma palavra que reflete bem o César e o Corrutela. Poucos sabem tão bem o que querem e o que não querem.

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